“Aproveitando-se de uma ocasião, certa manhã em Cesena mandou que o expusessem em praça pública, cortado em duas partes, tendo ao lado um bastão de madeira e uma faca ensanguentada. A ferocidade daquele espetáculo fez o povo ficar, ao mesmo tempo, satisfeito e estupefato.”
– O Príncipe, Nicolau Maquiavel
A cadeirada que o candidato José Luiz Datena (PSDB) desferiu ao vivo, no último debate dos candidatos à prefeitura de São Paulo da TV Cultura, contra o candidato-coach Pablo Marçal (PRTB) não foi suficiente para quebrar nenhum osso, como Marçal quis fazer parecer em seus vídeos para a internet. Mas quebrou algo mais importante: o personagem. Há uma série de elementos que colaboraram para isso.
Primeiro, a cadeirada de Datena não foi imotivada. Marçal já vinha, no debate, centrando seus ataques ao apresentador. Chegou a chamá-lo de estuprador (“jack”), e, pouco antes de ser atingido, sugeriu que Datena não tinha coragem suficiente para fazer nada contra ele. A interpretação de alguns de que a cadeirada colaboraria com Marçal, e que teria sido desejada por ele, não tomou em conta as acusações gravíssimas que Marçal fez; nem tomou em conta o fato de que, fora do quadrilátero Tatuapé-Vila Mariana-Santa Cecília-Jardim São Paulo, bater em alguém pode até não ser bonito, mas é definitivamente mais feio apanhar. Marçal acusou Datena de estupro; não pôde provar, e levou uma cadeirada. Ele, que tanto gosta de falar “para a quebrada”, esqueceu-se que lá a pena mínima para sua façanha seria outra: faça o M; não “cadeirada”, madeirada.
Segundo, Marçal colaborou com a própria ruína ao fugir do debate como um coelho assustado buscando uma toca e tentar adotar desesperadamente a postura de vítima, fazendo comparações entre a agressão sofrida e o atentado contra Trump e a facada contra Bolsonaro, e tentando mimetizar este último, postando vídeos da cama do hospital. Uma cadeirada certamente não é uma facada ou um tiro – poderíamos perguntar: “quem nunca deu ou sofreu uma cadeirada?” –; e uma cadeirada recebida de um senhor de quase 70 anos, e por alguém que buscou a todo momento construir a imagem da força e resiliência, ao mesmo tempo em que se comporta como um provocador, definitivamente não é suficiente para que colha muita compaixão.
O fato de Marçal ter adotado esta postura, no entanto, revela não um covarde, mas um mitômano. Não é que ele acreditasse que uma facada ou um balaço fosse comparável a uma cadeira voadora: é que ele efetivamente acredita ser comparável a Bolsonaro e Trump (para quem crê que realizará milagres como o da ressurreição, não é muito impressionante). Ao mesmo tempo, dada a frequência com a qual, em entrevistas, o ex-coach fala em possíveis atentados contra sua vida, sua reação à cadeirada revela que ele esperava, talvez ansiosamente, um atentado. Provavelmente trabalhando com essa hipótese há algum tempo, precipitou-se, pensando que o acaso lhe havia entregado aquilo que ele só planejava como uma hipótese. Mas, de novo, não foi um atentado: foi uma resposta bem dada por um senhor às parvoíces de Marçal. Somente quem acredita com uma certa intensidade nas próprias mentiras poderia supor que estas diferenças bem visíveis passassem despercebidas ao público.
De qualquer forma, é bastante impressionante que um ato de violência restrita, como uma cadeirada, tenha sido suficiente para quebrar o personagem. O ato intempestivo e violento de Datena, embora também apropriado pela dimensão espetacular, rompeu com o espetáculo produzido por Marçal, precisamente por dobrá-lo, forçando o candidato ou a reconhecer a aura unicamente espetacular que construiu ao redor de si, ou a reagir também violentamente, dando consequência à imagem que construiu de si mesmo. Tendo se erguido por meio do espetáculo, uma vez atingido pelo golpe Marçal não poderia prosseguir como se nada tivesse ocorrido. Ou respondia Datena à altura – coisa grave, que possivelmente jogaria o espetáculo contra si, abrindo a visão do público, que poderia passar a ver em Marçal não mais um líder de seita com fala interessante, mas um animal irascível e perigoso; ou denunciava o ato, no bloco seguinte do debate, e mantinha-se firme. Tentar transformar a cadeirada em um mérito espetacular seu, como fez, não foi só ridículo, nem só colocou em evidência sua fraqueza frente à violência (notável, para quem sugere dar socos em tubarões), mas de fato colocou em causa todo o seu personagem. A fenda entre a representação e a coisa a ser representada tornou-se evidente na sua reação à agressão. Manipulador nato, a cadeirada transformou Marçal num mero falador, precisamente porque também este ato – o da violência de outro contra si – ele buscou manipular na esfera do espetáculo. Ocorre que a violência, embora produtora de imagens, não é redutível ao campo da representação: há quem a pratica, e há a quem sofre, e nenhum dos dois pode negar seus efeitos. É antes de tudo um ato de soberania de quem a pratica sobre o que a sofre: não havia o que Marçal “controlar”, porque o que estava sob controle era, literalmente, ele mesmo; seu corpo de carne e osso, e com isso sua imagem.
O espetáculo, como representação da realidade que só pode ser vista, não pode com a concretude da violência: a simulação do conflito não pode com o conflito em si porque os mortos não simulam. Contra a violência do espetáculo de Marçal, que tudo transforma em imagem e todos torna ou espectadores ou coadjuvantes, o espetáculo da violência de Datena, que na mesma medida em que impôs um limite ao espetáculo – um limite físico – e o sobrepujou também como espetáculo – a cadeirada transferindo os “atributos mágicos” de Marçal ao ex-apresentador, tal qual a força de um guerreiro, segundo alguns ritos, poderia ser transferida por meio da antropofagia –, também foi capaz de recuperar a todos os candidatos a condição de sujeitos, primeiro a Datena, mas inclusive a Marçal. A partir de então, Marçal poderia ser ignorado ou confrontado como um qualquer: como um homem de verdade, físico, não como uma representação; um homem de carne e osso que, como todos, pode levar uma cadeirada. E todos poderiam confrontá-lo ou ignorá-lo como candidatos, não como coadjuvantes ou espectadores de seu espetáculo.
De fato, foi o que se viu no debate seguinte, na RedeTV. Marçal foi ou confrontado ou ignorado por todos, suas tentativas de buscar a polêmica não deram nenhum resultado, e sua participação foi uma sombra das anteriores. Marçal perdeu o controle; e este descontrole se traduziu, ironicamente, num Marçal mais passivo: a perturbação de sua imagem gerou um candidato quase sereno, não fosse por um momento em que simulou uma altercação com Nunes, numa busca desesperada de recompor seu personagem. Ao mesmo tempo, Datena teve ali, provavelmente, seu melhor debate – comeu o personagem depois de destruí-lo.
A pesquisa Quaest divulgada na última quarta-feira (18) parece confirmar a análise. Marçal ainda está em empate técnico, levando em conta a margem de erro, com Boulos e Nunes. Mas caiu três pontos (de 23% a 20%), enquanto Boulos e Datena subiram dois (de 21% a 23% e de 8% a 10%, respectivamente). Como escrevi, a postura agressiva de Marçal era uma virtude, e os que buscavam enfrentá-lo deveriam ser mais combativos, sem simulacros. Não foi a seriedade, a bondade inata, um bom plano de governo ou uma concordância correta nas palavras que fez Datena subir e Marçal cair: aparentemente, literalmente o prêmio para quem bater no candidato-coach são pontos percentuais: o sangue que o homem-espetáculo derrama quando ferido são oscilações positivas nas pesquisas eleitorais.
As cascas de banana e as pedras no caminho das quais falei há um mês apareceram, afinal. A ver qual espetáculo feroz o coach-candidato buscará produzir nas próximas semanas para deixar o povo satisfeito e estupefato frente à urna.
(*) Pedro Marin é fundador e editor-chefe da Revista Opera. É editor de Opinião de Opera Mundi, autor de “Aproximações sucessivas – O Partido Fardado nos governos Bolsonaro e Lula III”, “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016”, e co-autor de “Carta no Coturno – a volta do Partido Fardado no Brasil”.