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Vijay Prashad: quando crianças são assassinadas, o que há para comemorar?

Poucos sabiam do potencial da bomba atômica quando os EUA as lançaram em Hiroshima e Nagasaki, mas todos sabemos dos efeitos das bombas de Israel sobre Gaza
Vijay Prashad
Fogo e fumaça na cidade de Gaza em meio a bombardeio israelense, em 7 de outubro de 2023. (Foto: Ali Hamad / APAimages / WAFA / Wikimedia Commons)

Após a divulgação da notícia de que Han Kang, a autora sul-coreana, havia ganhado o Prêmio Nobel de Literatura, seu pai, o romancista Han Seung-won, lhe perguntou onde ela gostaria de realizar uma coletiva de imprensa para falar sobre o prêmio. Ela publicou sua ficção com a editora Changbi e sua poesia com a Munhakdongne, e ambas esperavam acolhê-la para o anúncio. Inicialmente, Han Kang, a autora de 53 anos do livro The Vegetarian, vencedor do Booker Prize de 2016, pensou que falaria com a imprensa. Mas, depois de refletir, ela disse ao pai que ele deveria fazer uma declaração em seu lugar. “Com a guerra se intensificando e pessoas sendo assassinadas todos os dias”, disse ela à imprensa por meio de seu pai, “como podemos fazer qualquer comemoração ou coletiva de imprensa?”.

O Comitê Nobel concedeu o Prêmio da Paz este ano à organização Nihon Hidankyo “por seus esforços para alcançar um mundo livre de armas nucleares e por demonstrar, por meio de depoimentos de testemunhas, que as armas nucleares nunca mais devem ser usadas”. O grupo foi formado em 1956 por sobreviventes dos ataques nucleares dos EUA em Hiroshima e Nagasaki. Sua missão, desde o início, tem sido banir as armas nucleares e outras armas devastadoras. Parte de seu sucesso foi a realização de eventos no Dia de Hiroshima, em 6 de agosto, para divulgar os perigos de tais armas (infelizmente, esses eventos se tornaram menos impactantes, mas talvez o Prêmio Nobel aumente seu status). Na coletiva de imprensa do grupo, um dos co-diretores da Nihon Hidankyo, Toshiyuki Mimaki (que foi atingido pela radiação atômica em Hiroshima aos três anos de idade), disse: “Pensei que o prêmio iria para aqueles que trabalham duro em Gaza… Em Gaza, crianças sangrando estão sendo agarradas [pelos seus pais]. É como o Japão de 80 anos atrás”.

É como o Japão em seus efeitos: as “crianças sangrando” a que Mimaki se referiu têm sido uma imagem constante ao longo do ano. Mas Gaza não é como o Japão em sua execução. Poucas pessoas sabiam do potencial mortal da bomba atômica quando as Forças Armadas dos EUA a lançaram em Hiroshima e, três dias depois, em Nagasaki. Após a queda das bombas, primeiro o Japão e depois os Estados Unidos impediram que os jornalistas relatassem seu impacto. 114 funcionários do Chugoku Shimbun, o principal jornal de Hiroshima, morreram no ataque. Os que restaram criaram o Verbal Reporting Corps, ou kudentai, para se mobilizarem e fornecer informações sobre os auxílios ofertados. Yoshito Matsushige, do jornal, tirou algumas das fotografias mais evocativas da devastação. Dois repórteres estrangeiros – Leslie Nakashima (asiática-americana) e Wilfred Burchett (australiano) – atravessaram as barricadas para fazer uma reportagem sobre Hiroshima. “O que havia sido uma cidade de 300 mil habitantes desapareceu”, escreveu Nakashima para a United Press International em 31 de agosto de 1945.

As bombas não param de cair

Na verdade, a cidade não havia desaparecido. Apesar do devastador bombardeio israelense (o poder de fogo usado em Gaza é  muito maior do que em Hiroshima e Nagasaki), os palestinos permanecem em Gaza, em suas casas e em abrigos. Eles se recusam a sair, como muitos deles me dizem, porque se lembram das histórias de seus avós e pais de 1948; após os israelenses os expulsarem de suas aldeias, nunca permitiram que voltassem. Esse sentimento de resistência, combinado com o fato de que realmente não há para onde ir, manteve os palestinos em meio aos escombros.

E os israelenses não pararam com os bombardeios. Não há uma bomba atômica, mas milhares de bombas letais que continuam despencando dos jatos israelenses. Em dezembro de 2023, as autoridades israelenses designaram al-Mawasi, a oeste de Khan Younis, como uma zona humanitária ou segura. Apesar disso, Israel continuou atacando assentamentos e abrigos dentro dessa zona segura, reduzindo uma área que já era insignificante a uma fração do que havia sido designado como refúgio para a população. A densidade populacional por quilômetro quadrado nessa zona é de aproximadamente 35 mil pessoas, muito maior do que o lugar mais denso do mundo (Macau, uma cidade pequena, com uma densidade populacional de 21 mil pessoas) e, para comparação, a densidade populacional nos Estados Unidos é de 35 pessoas por quilômetro quadrado.

Em uma semana deste mês, os israelenses atacaram três escolas que se tornaram abrigos em Deir al-Balah, 15 quilômetros ao norte de al-Mawasi, conforme reportado por Abubaker Abed: Escola Ahmed al-Kurd (5 de outubro), Escola al-Ayesha (3 de outubro) e Escola Secundária para Meninas Rufaida al-Aslamia (10 de outubro). Os ataques israelenses à escola Rufaida, pouco antes das 11h30, mataram 28 palestinos, muitos deles crianças e idosos, entre eles dois funcionários do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). As bombas caíram, conforme relatou Imad Zakout, quando os coordenadores do abrigo estavam distribuindo leite em pó para as crianças e seus pais.

As bombas lançadas por Israel – as GBU-39 – são fabricadas pela Boeing e foram projetadas para espalhar estilhaços e causar grandes danos físicos mesmo àqueles que sobrevivam à explosão. Ninguém no abrigo aceita a alegação de Israel de que atingiu agentes do Hamas. As pessoas foram identificadas, e todos as conhecem e sabem que elas não fazem parte de nenhuma estrutura do Hamas. A pessoa mais jovem morta foi Mila Alaa al-Sultan (seis anos) e a mais velha foi Sumaya Younis al-Kafarna (87 anos). Entre os mortos estão um policial muito querido chamado Salem Ruwaishid al-Waqadi (26 anos) e o administrador da escola, chamado Ahmed Adel Hamouda (58 anos).

Os humanos são assustadores

Quem leu o livro Human Acts (2016), de Han Kang, não ficará surpreso com a reação dela ao Prêmio Nobel e ao genocídio em Gaza. Quando ela tinha dez anos de idade, em 1980, a ditadura militar sul-coreana de Chun Doo-hwan usou uma força terrível contra a Revolta de Gwangju pela democracia. Essa violência, na cidade natal de Han Kang, causou a morte e deixou feridas de milhares de pessoas. Quando ela tinha 13 anos, seu pai lhe mostrou um álbum de fotografias da violência. “Se eu fosse mais velha”, refletiu Han Kang em 2016, ”teria experimentado um despertar social por causa da raiva contra o novo regime militar. Mas eu era muito jovem. Meu primeiro pensamento foi que os humanos são assustadores”.

Human Acts conta a história de vários personagens de maio de 1980 até o presente: Jeong-dae morre no levante, Eun-sook e Kang Dong-ho recolhem os mortos, Kim Jin-su vai para a prisão e comete suicídio dez anos depois, enquanto Seon-ju é torturada pelos militares. Essas são histórias poderosas de coragem e dignidade humanas diante de uma violência terrível. É isso que Han Kang e outros veem na situação dos palestinos: a violência israelense é horrível, mas a notável resiliência dos palestinos exige que os seres humanos cometam atos que recusem a sensação de que “os seres humanos são assustadores”.

(*) Tradução de Raul Chiliani

Globetrotter O Globetrotter é um serviço independente de notícias e análises internacionais voltado aos povos do Sul Global.

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