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Quem paga o preço pelo retorno do militarismo alemão?

Gastos militares mais altos não elevarão os padrões de vida da Europa. Investir em hospitais cria 2,5 vezes mais empregos do que investir em armas
Peter Mertens
Militares carregam a bandeira da União Europeia. (Foto: European Parliament / Flickr)
Militares carregam a bandeira da União Europeia. (Foto: European Parliament / Flickr)

Movido por interesses geopolíticos e pela disputa por recursos, o conflito ucraniano já causou inúmeras mortes e deslocou milhões. A ideia de que mais armas trarão paz é uma ilusão perigosa.

Como escrevi em Mutiny: How Our World is Tilting (2024), essa guerra sempre teve uma face de Jano. De um lado, está a violação da integridade territorial da Ucrânia, contra todas as leis internacionais, por meio da agressão russa. Isso é bem compreendido até pelos países do Sul Global. Do outro lado, há uma guerra por procuração entre os EUA e a Rússia, travada sobre as costas dos ucranianos, na qual dezenas de milhares de jovens se tornam carne de canhão em um conflito geoestratégico.

Washington agora admite sem vergonha: trata-se de uma guerra por procuração alimentada e dirigida pelos Estados Unidos. Trump, no entanto, afirma que esta é a guerra por procuração errada – que a Rússia não é o adversário dos Estados Unidos, e todos os esforços devem ser concentrados na guerra que os EUA estão se preparando para travar contra a China. Tudo porque Washington vê sua dominância econômica e tecnológica sendo desafiada pela China.

A estratégia dos EUA para prolongar a guerra na Ucrânia por meio de investimentos massivos, esperando exaurir a Rússia econômica e militarmente, está chegando ao fim. Washington há muito enfrenta uma escolha: intervir de forma mais aberta com o risco de levar a uma Terceira Guerra Mundial ou buscar saídas diplomáticas.

De forma oportunista, e não pacífica, os EUA escolhem a última opção, buscando extrair o máximo de vantagem. Através de um acordo imposto, Trump quer que a Europa arque com os custos da guerra enquanto os EUA ganham o controle sobre a extração de minerais e recursos da Ucrânia. Trump trata a Ucrânia como uma colônia, da mesma forma que os EUA tratam as nações do Sul Global. Isso deixa claro que a guerra nunca foi sobre valores, mas sobre interesses geoestratégicos e controle sobre recursos e terras férteis.

O fracasso da estratégia europeia

O fracasso dos estados europeus em adotar iniciativas diplomáticas sérias por um cessar-fogo nos últimos três anos agora está cobrando seu preço. Um líder europeu após o outro afirmou buscar a “vitória militar”, o que era irreal desde o início.

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Em vez de aprender com esse desastre, partes do establishment europeu querem insistir na estratégia fracassada, prolongando a guerra a qualquer custo. Agora, Trump toma a iniciativa unilateral de negociar diretamente com a Rússia.

As contradições são evidentes. As mesmas vozes que ontem insistiam que a vitória sobre Moscou era iminente hoje afirmam que Moscou poderia estar “na Grand-Place de Bruxelas amanhã” a menos que nos rearmemos urgentemente. Ambas as afirmações não podem ser verdadeiras. Esse alarmismo serve para justificar planos massivos de rearmamento.

Muitos dos que cresceram no século XX aprenderam que combinar Alemanha, chauvinismo e militarismo é uma péssima ideia. Os fabricantes de canhões do Vale do Ruhr alimentaram duas devastadoras guerras mundiais. Após 1945, a Europa estabeleceu um acordo: nunca mais o militarismo alemão.

No entanto, o hoje parece um déjà vu de um filme B ruim. Os fabricantes de tanques estão de volta, e diz-se que a Alemanha precisa se rearmar rapidamente. Em 18 de março de 2025, o parlamento alemão votou alterações constitucionais que possibilitam o maior programa de rearme desde a Segunda Guerra Mundial. A Alemanha já ocupa o quarto lugar mundial em gastos com Defesa, mas agora está mudando acelerando o ritmo para abertamente se tornar kriegstüchtig (“pronta para a guerra”).

Esse rearmamento será financiado por meio de dívidas – uma mudança radical para Berlim, que anteriormente bloqueava quaisquer propostas que aumentassem o endividamento. Isso prova que os debates orçamentários são políticos, moldados por dinâmicas de poder, e não por dogmas financeiros.

Ao lado dos gastos da Alemanha, a Comissão Europeia lançou um pacote de militarização financiado por dívida e empréstimos. Ela saqueou os fundos de coesão, clima e desenvolvimento.

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Alimentando uma psicose

O chefe da OTAN, Mark Rutte, recentemente alertou os europeus a abrirem suas carteiras para as armas ou correrem o risco de “falar russo em breve”. O medo está sendo incitado.

O PIB da Rússia não é maior que o de Benelux, a união aduaneira da Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo. Após três anos de guerra, as tropas russas controlam apenas 20% da Ucrânia. Elas lutaram por meses para capturar a cidade ucraniana de Pokrovsk, no leste, contra um exército opositor exausto. Devemos acreditar que essa mesma força poderia derrotar Polônia, Alemanha, França e Reino Unido combinados? Absurdo.

Mesmo com ajuda da Coreia do Norte, a Rússia levou meses para retomar dois terços de Kursk. Hoje, a Europa tem quatro vezes mais navios de guerra, três vezes mais tanques e artilharia, e o dobro de caças que a Rússia.

A verdadeira paz exige negociações de desarmamento a partir de uma posição de força.

É dito que a “capacidade de defesa” da Europa não tem um “preço”. Mas o preço é literal: cortes em escolas, saúde, seguridade social, cultura e ajuda ao desenvolvimento. Figurativamente, a própria sociedade está sendo militarizada.

Para posicionar a UE em uma nova disputa global, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, fala de uma “era de rearmamento”. Para os povos da Europa, isso significa uma era de desmantelamento social.

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Bilhões para a guerra significam que os orçamentos climáticos, saúde e aposentadorias serão cortados. As ações de armas na bolsa sobem – Rheinmetall, Dassault, BAE Systems lucram, enquanto os trabalhadores arcam com a conta.

Como disse a líder sindical francesa Sophie Binet: “Para os trabalhadores, nada é pior do que uma economia de guerra”. Cada euro para armas é um euro negado às escolas e hospitais.

A indústria armamentista afirma que o rearmamento impulsionará a economia – um “keynesianismo militar” por meio do qual os estados sustentam os fabricantes de armas. Com o setor automobilístico europeu em crise e a Alemanha em recessão, eles empurram uma transição, de carros para tanques.

Mas famílias não compram tanques. Tanques devem ser vendidos e usados, perpetuando a guerra.

Gastos militares mais altos não elevarão os padrões de vida da Europa. A produção de armas não beneficia ninguém. Investir em hospitais cria 2,5 vezes mais empregos do que investir em armas. A Defesa ocupa o 70º lugar entre 100 setores em eficiência de empregos.

Para onde a Europa está indo?

As tarifas propostas por Trump sobre os carros alemães podem matar a indústria automobilística da Alemanha. Antigamente firmemente atlantista, os círculos financeiros de Frankfurt agora pressionam por uma soberania europeia independente de Washington.

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Isso se alinha ao novo livro branco de Defesa da UE: 78% das compras de Defesa atualmente vêm de países não pertencentes à UE (principalmente os EUA), mas até 2035, 60% devem vir da Europa.

Mas a fragmentada indústria armamentista da Europa – com empresas concorrentes da Alemanha, França, Itália e Reino Unido – coloca isso em risco. A Alemanha investe dinheiro na Rheinmetall, enquanto alianças franco-italianas e britânico-francesas brigam por contratos.

A Europa está fragmentada politicamente e em crise de identidade. Os capitalistas enfrentam dois caminhos: aprofundar as divisões em frações concorrentes ou formar um bloco imperial militarizado. Os socialistas devem imaginar uma Europa diferente: uma Europa socialista e pacífica.

Quebrando ciclo mortal das corridas armamentistas

As corridas armamentistas globais seguem a mesma lógica: o upgrade de uma nação força as outras a segui-la. Perseguir a dissuasão até o fim significa armar a Alemanha e a Europa com armas nucleares.

No pior cenário, essa espiral termina em uma guerra catastrófica. A história mostra que apenas tratados de desarmamento mútuo e movimentos anti-guerra fortes podem impedi-la.

Para justificar o rearmamento, figuras como o primeiro-ministro belga Bart De Wever invocam o antigo provérbio romano: Si vis pacem, para bellum (“Se quer paz, prepare-se para a guerra”). Isso nunca foi um lema de paz, mas sim um lema militarista – e não salvou Roma, que entrou em colapso décadas depois.

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Em contraste, antes das duas Guerras Mundiais, o movimento operário resistiu ao militarismo. A esquerda deve desafiar os duplos padrões do Ocidente, a belicosidade e as destrutivas corridas armamentistas.

A realidade é simples: se você quer guerra, prepare-se para a guerra. Se você quer paz, prepare-se para a paz. Devemos forjar a paz de baixo para cima, de mãos dadas com a luta pela justiça social e pelo socialismo.

(*) Tradução de Raul Chiliani

Globetrotter O Globetrotter é um serviço independente de notícias e análises internacionais voltado aos povos do Sul Global.

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