Dois ex-líderes de importantes países do sul da Ásia teriam acusado os Estados Unidos de realizar operações secretas de mudança de regime para derrubar seus governos. Um dos líderes, o ex-primeiro-ministro do Paquistão Imran Khan, está preso por uma sentença perversa que comprova a sua afirmação. A outro líder, a ex-primeira-ministra de Bangladesh, Sheik Hasina, fugiu para a Índia após um violento golpe em seu país. Suas graves acusações contra os EUA, conforme relatado na imprensa internacional, deveriam ser investigadas pela ONU, pois, caso fossem verdadeiras, as ações dos EUA constituiriam uma ameaça fundamental à paz mundial e à estabilidade regional no sul da Ásia.
Os dois casos parecem ser muito semelhantes. Os fortes indícios da atuação dos EUA na derrubada do governo de Imran Khan no Paquistão suscitam a suspeita de que algo semelhante possa ter ocorrido em Bangladesh.
No caso do Paquistão, Donald Lu, secretário de Estado adjunto para o Sul da Ásia e Ásia Central, reuniu-se com Asad Majeed Khan, embaixador do Paquistão nos EUA, no dia 7 de março de 2022. O embaixador Majeed Khan imediatamente escreveu de volta para sua capital, transmitindo o aviso de Lu de que o primeiro-ministro Khan ameaçava as relações entre os EUA e o Paquistão devido à “posição agressivamente neutra” de Khan em relação à Rússia e à Ucrânia.
A nota do embaixador do dia 7 de março (tecnicamente uma mensagem diplomática) citou o secretário assistente Lu da seguinte forma: “Acredito que se o voto de desconfiança contra o primeiro-ministro for bem-sucedido, tudo será perdoado em Washington porque a visita à Rússia está sendo vista como uma decisão do primeiro-ministro. Caso contrário, acho que será difícil seguir em frente”. No dia seguinte, os membros do parlamento tomaram medidas processuais para destituir o primeiro-ministro Khan.
Em 27 de março, o primeiro-ministro Khan brandiu esse telegrama e disse a seus seguidores e ao povo que os EUA estavam tentando derrubá-lo. Em 10 de abril, o primeiro-ministro Khan foi retirado do cargo quando o parlamento acatou a ameaça dos EUA.
Sabemos disso em detalhes por causa do telegrama do embaixador Khan, exposta pelo primeiro-ministro Khan e brilhantemente documentada por Ryan Grim do The Intercept, numa reportagem que inclui o texto do telegrama. De forma absurda e trágica, o primeiro-ministro Khan está preso, em parte, por acusações de espionagem, ligadas ao fato de ter revelado essa mensagem cifrada.
Os EUA parecem ter desempenhado um papel semelhante no recente golpe violento em Bangladesh. A primeira-ministra Hasina foi aparentemente derrubada por distúrbios estudantis e fugiu para a Índia quando os militares de Bangladesh se recusaram a impedir que os manifestantes invadissem os escritórios do governo. No entanto, a história pode ser muito mais complexa do que parece.
De acordo com relatos da imprensa na Índia, a primeira-ministra Hasina teria alegado que os EUA a derrubaram. Especificamente, ela teria dito que os EUA a tiraram do poder porque ela se recusou a conceder instalações militares aos EUA em uma região que é considerada estratégica para os norte-americanos em sua “Estratégia Indo-Pacífica” para conter a China. Embora esses sejam relatos de segunda mão da mídia indiana, eles coincidem com vários discursos e declarações que Hasina fez nos últimos dois anos.
Em 17 de maio de 2024, o mesmo secretário adjunto Lu, que desempenhou um papel importante na derrubada do primeiro-ministro Khan, visitou Daca para discutir a Estratégia do Indo-Pacífico dos EUA, entre outros tópicos. Dias depois, Sheikh Hasina supostamente convocou os líderes dos 14 partidos de sua aliança para fazer a surpreendente afirmação de que um “país de pessoas de pele branca” estava tentando derrubá-la, dizendo claramente aos líderes que ela se recusava a comprometer a soberania de sua nação. Assim como Imran Khan, a primeira-ministra Hasina vinha adotando uma política externa de neutralidade, incluindo relações construtivas não apenas com os EUA, mas também com a China e a Rússia, para grande consternação do governo dos EUA.
Dando mais credibilidade às acusações de Hasina, Bangladesh atrasou a assinatura de dois acordos militares pelos quais os EUA vinham fazendo muita pressão desde 2022, por meio de ninguém menos que a ex-Subsecretária de Estado, Victoria Nuland, a neoconservadora linha-dura com seu próprio histórico de operações de mudança de regime apoiadas pelos EUA. Uma das minutas do acordo, o General Security of Military Information Agreement (GSOMIA), vincularia Bangladesh a uma cooperação militar mais estreita com Washington. O governo da primeira-ministra Hasina claramente não estava entusiasmado em assiná-lo.
Os EUA são, de longe, os maiores praticantes mundiais de operações de mudança de regime, mas negam categoricamente seu papel em tais operações, mesmo quando pegos em flagrante, como no caso do infame telefonema interceptado de Nuland no final de janeiro de 2014, planejando a operação de mudança de regime liderada pelos EUA na Ucrânia. É inútil apelar ao Congresso dos EUA, e menos ainda ao Poder Executivo, para que investigue as alegações do primeiro-ministro Khan e da primeira-ministra Hasina. Qualquer que seja a verdade sobre o assunto, eles negarão e mentirão conforme necessário.
É nesse ponto que a ONU deve intervir. Operações de mudança de regime são flagrantemente ilegais de acordo com a lei internacional (notadamente a Doutrina de Não-Intervenção, conforme expresso, por exemplo, na Resolução 2625 da Assembleia Geral da ONU, 1970) e constituem talvez a maior ameaça à paz mundial, pois desestabilizam profundamente as nações e, com frequência, levam a guerras e outros distúrbios civis. A ONU deve investigar e expor operações secretas de mudança de regime, tanto para revertê-las quanto para preveni-las no futuro.
O Conselho de Segurança da ONU é, obviamente, especificamente encarregado, de acordo com o Artigo 24 da Carta da ONU, da “responsabilidade primária pela manutenção da paz e da segurança internacionais”. Quando surgem evidências de que um governo foi derrubado por meio da intervenção ou cumplicidade de um governo estrangeiro, o Conselho de Segurança da ONU deve investigar as alegações.
Nos casos do Paquistão e de Bangladesh, o Conselho de Segurança da ONU deve buscar o testemunho direto do primeiro-ministro Khan e da primeira-ministra Hasina para avaliar os indícios de que os EUA tenham desempenhado um papel na derrubada dos governos desses dois líderes. Cada um deles, é claro, deve ser protegido pela ONU para prestar seu testemunho, de modo a protegê-los de qualquer represália que possa resultar de sua apresentação honesta dos fatos. O testemunho deles pode ser feito por videoconferência, se necessário, considerando o trágico encarceramento contínuo do primeiro-ministro Khan.
É bem possível que os EUA exerçam seu veto no Conselho de Segurança da ONU para impedir essa investigação. Nesse caso, a Assembleia Geral da ONU pode tratar do assunto, de acordo com a Resolução A/RES/76/ da ONU, que permite que à Assembleia Geral da ONU considerar uma matéria bloqueada por veto no Conselho de Segurança da ONU. As questões em jogo poderiam então ser avaliadas por todos os membros da ONU. A veracidade do envolvimento dos EUA nas recentes mudanças de regime no Paquistão e em Bangladesh poderia então ser analisada objetivamente e julgada com base nas evidências, e não em meras afirmações e negações.
Os EUA se envolveram em pelo menos 64 operações secretas de mudança de regime entre 1947 e 1989, de acordo com a pesquisa documentada de Lindsey O’Rourke, professora de Ciência Política do Boston College, para não mencionar de várias outras operações abertas (por exemplo, por meio de guerras lideradas pelos EUA). O país continua se envolvendo em operações de mudança de regime com uma frequência chocante até hoje, derrubando governos em todas as partes do mundo. É uma ilusão esperar que os EUA cumpram a lei internacional por conta própria, mas não é ilusão que a comunidade internacional, que há muito sofre com as operações de mudança de regime dos EUA, exija seu fim nas Nações Unidas.
(*) Tradução de Raul Chiliani