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As manifestações contra o Hamas em Gaza e o anseio por certeza

Manifestações em Gaza contra o Hamas são apropriadas pelo Estado de Israel, que reforça sua máquina de guerra culpabilizando os palestinos por sua própria morte
Abdaljawad Omar
Manifestantes cantam "Fora Hamas" durante protesto em Beit Lahia, no norte de Gaza. (Imagem: Reprodução / Youtube)
Manifestantes cantam “Fora Hamas” durante protesto em Beit Lahia, no norte de Gaza. (Imagem: Reprodução / Youtube)

Em 18 de março, aeronaves de guerra israelenses retomaram o feroz bombardeio de Gaza, matando mais de 800 palestinos em questão de dias. Após nove dias dos novos ataques a Gaza, manifestantes em Beit Lahia saíram às ruas. Segurando cartazes com os dizeres “Não ao genocídio”, alguns deles também culparam as organizações armadas palestinas, especialmente o Hamas. Na mídia israelense, essa cena foi imediatamente aproveitada e reembalada: uma prova, segundo a imprensa, de que a campanha de Israel estava funcionando, criando uma cunha entre a população palestina e os grupos de resistência. Essa representação do protesto palestino – fragmentada, desesperada e ambígua – tornou-se fundamental para a estratégia de guerra de Israel. Ela sustenta uma narrativa dupla: a de que o ataque militar é necessário e a de que os próprios palestinos passaram a reconhecer a violência como fruto de suas próprias ações. A guerra em Gaza não é mais apenas uma campanha de destruição; é uma operação psicológica, com o objetivo de produzir a aparência de rendição, de que os palestinos estão assumindo a responsabilidade por sua própria morte.

Essa representação também tem outra função: legitima a solidificação interna do poder de Israel. As manchetes em Israel agora falam de um governo que se reconfigura, seguindo uma estratégia dupla – a reordenação de sua arquitetura institucional e a continuação de sua guerra perpétua. Esses objetivos não são distintos; cada um sustenta o outro. A campanha genocida em Gaza não é apenas um exercício militar – ela apresenta a possibilidade de limpeza étnica, garante um ambiente regional volátil e abre espaço para o confronto com o Irã. Internamente, o projeto da direita – marcado por reformas judiciais e redesenho das fronteiras civis – baseia-se na manutenção da emergência. A guerra, por sua vez, é justificada pela necessidade de coesão nacional, numa narrativa de uma unidade forjada sob cerco, e os sinais de capitulação palestina só servem a essa narrativa mais ampla da direita. Juntas, essas dinâmicas formam um ciclo fechado: auto-reforçado e mutuamente dependente. Hoje, essas são as manchetes em Israel: a demissão do chefe do Shin Bet, Ronen Bar (ainda não efetivada), a demissão do Procurador Geral do Estado (ainda não efetivada) e a aprovação de um projeto de lei de revisão judicial que deverá entrar em vigor no próximo Knesset. Tudo isso acontece enquanto Israel está supostamente engajado em uma guerra de expansão na Síria e no Líbano, uma guerra para pôr um fim decisivo à questão palestina, e uma guerra para se declarar como o único hegemon no Oriente Médio. Um golpe doméstico e uma guerra sem fim. 

E, no entanto, mesmo esses protestos – por mais frágeis e fragmentados que sejam – não recuperam a figura da inocência na imaginação israelense. Os manifestantes em Beit Lahia que pedem o fim da guerra, que clamam contra o genocídio e o Hamas, não são recebidos como vozes aquém do domínio da culpa, de pessoas que anseiam pela vida sem a ameaça da morte. Sua aparição não interrompe a narrativa da culpabilidade coletiva palestina que Israel cuidadosamente criou durante essa guerra; em vez disso, ela a recodifica. No discurso israelense, os manifestantes são enquadrados não como vítimas, mas como colaboradores em potencial – palestinos dispostos a trair os seus, a confessar o erro da resistência, a se ajoelhar diante do poder. O espetáculo da capitulação se torna a prova final da culpa: não a culpa de ter lutado de armas na mão, mas a culpa de ter se recusado a se submeter. Dessa forma, até mesmo a dissidência é instrumentalizada. Ela não interrompe a guerra; ela reitera sua lógica. Ela torna a violência não apenas justificada, mas necessária, confirmando que a rendição é possível, que a fragmentação é real e que a dominação ainda pode ser aperfeiçoada.

Dissidência palestina

Desde a eclosão da violência entre os grupos armados em Gaza, em 2007, a sociedade palestina – tanto em Gaza quanto na Cisjordânia – tem sofrido uma profunda divisão interna, sustentada pela presença de dois grupos políticos concorrentes, cada um oferecendo uma posição distinta em relação à condição colonial. A primeira, liderada por Mahmoud Abbas e pela Autoridade Palestina, defende a cooperação, a colaboração e a acomodação – uma estratégia baseada na negociação, na construção do Estado e na cooperação em matéria de segurança. A segunda, personificada pelo Hamas e por outras forças de resistência, insiste no confronto, na resistência e no enfrentamento, vendo a configuração colonial como uma luta existencial. Esse cisma não é simplesmente institucional; ele penetrou no próprio tecido da vida política palestina, estruturando os afetos, discursos e as condições sob as quais a dissidência, a sobrevivência e a esperança são negociadas.

Essa divisão viria a desempenhar um papel dominante no discurso político palestino após a Tempestade de al-Aqsa, polarizando gradualmente o debate intelectual e público em torno de três binômios inter-relacionados: vitória e derrota, responsabilidade e abandono, resistência e sobrevivência. Essa narrativa, no entanto, não era totalmente interna. Ele também foi moldada – se não ativamente engendrada – por meio de uma contínua guerra psicológica e informacional, especialmente por meio de veículos de mídia árabes (financiados por países do Golfo) que buscavam atribuir a responsabilidade pela campanha genocida de Israel à própria resistência. Nessas narrativas, a “derrota” não era apenas um resultado, mas uma condição permanente – um horizonte político ao qual os palestinos deveriam se acomodar, desarmados, desiludidos e disciplinados.

Nesse domínio, as vozes da oposição organizada em Gaza podem ser agrupadas em três categorias sociais e políticas. Primeiro, as estruturas familiares tradicionais – clãs poderosos – que entenderam a guerra como uma oportunidade de afirmar o controle interno, restabelecer seu domínio e obter ganhos financeiros com a ajuda e os esforços de reconstrução que chegariam. Em segundo lugar, a grande base social de partidários do Fatah, especialmente aqueles alinhados com Mahmoud Abbas ou Mohammad Dahlan, que procuraram explorar a situação para enfraquecer o Hamas, fazendo circular argumentos e narrativas que culpavam a resistência pela devastação. Seu objetivo era enfraquecer politicamente o Hamas e, ao mesmo tempo, posicionar-se para uma possível governança em um cenário pós-guerra. O terceiro era o desejo desesperado, compartilhado por muitos palestinos comuns, de que o genocídio acabasse, que a violência cessasse, que houvesse qualquer coisa que pudesse restringir a vontade implacável de Israel de cometer monstruosidades.

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O desejo de que a guerra termine – e termine imediatamente – tornou-se a marca registrada do que tem sido, em muitos aspectos, uma campanha psicológica amplamente eficaz, na qual a dissidência organizada por parte do Fatah colabora voluntária ou involuntariamente com as guerra psicológica e informacional israelense. O ponto central desse esforço é a atribuição de culpa, um tipo de discurso autoflagelante que coloca o peso da responsabilidade diretamente sobre os ombros da resistência. Dentro dessa perspectiva, o genocídio não se torna o crime do perpetrador, mas a consequência da rebeldia palestina. Tal perspectiva induz os palestinos a internalizarem a culpa não por sua subjugação, mas por ousarem resistir a ela. 

Mas, além da construção discursiva, sua eficácia também decorre dos riscos envolvidos – da posição insuportável de ser mantido sob a mira de uma arma e ser obrigado a resistir. Essa tem sido a condição de Gaza: um lugar onde a sobrevivência é sempre negociada, onde o custo da fala é a morte e onde as declarações de autorrenúncia não são novas, nem sempre voluntárias. Elas são produzidas sob cerco, sob bombardeio e sob a longa sombra de um colonizador que exige submissão como o preço para respirar.

Além disso, o bombardeio implacável de Gaza e a destruição em massa de seu espaço construído produziram uma realidade radicalmente alterada. Essa nova realidade tem duas vertentes. Em primeiro lugar, ela acarreta um grave enfraquecimento das estruturas de governança e da capacidade das autoridades palestinas de fornecer serviços básicos ou de administrar a sociedade, principalmente no que diz respeito à prevenção de crimes e à contenção de retaliações pessoais. Em segundo lugar, criou uma sensação de vácuo político e administrativo, exacerbado ainda mais pelos assassinatos direcionados de funcionários do governo de Gaza por Israel após a quebra do acordo de cessar-fogo. A erosão da presença institucional, tanto física quanto simbólica, deixou para trás não apenas uma crise de prestação de serviços, mas uma ruptura na própria ideia de ordem – um ambiente no qual a autoridade é cada vez mais frágil e no qual formas alternativas de controle e poder informal estão começando a se afirmar na falta da infraestrutura estatal. A segunda é a utilização improvisada de Gaza como base para a compra de lealdades e fidelidade política por forças também hostis ao Hamas ou à resistência de forma mais ampla. Isso se deve, em parte, ao esgotamento das economias e dos bens das pessoas e à destruição dos seus meios de subsistência. Mas talvez o mais importante seja o fato de que Gaza não é mais a Gaza de antes da guerra, em decorrência das mudanças demográficas e espaciais que ocorreram desde o início da violência.

Essas mudanças na capacidade financeira da população, na sua própria movimentação e na composição espacial significam que a política local em Gaza não pode mais ser lida com as mesmas lentes de antes. A guerra não apenas deslocou as pessoas fisicamente, mas também distorceu os tecidos sociais e as relações de solidariedade baseadas na vizinhança que antes sustentavam a vida política. Áreas que antes eram identificáveis por suas tendências políticas – seja em relação ao Hamas, ao Fatah ou a outras formações – agora estão dispersas, com suas populações fragmentadas e realocadas, às vezes várias vezes. As famílias de Beit Hanoun estão agora em Rafah, as de Shuja’iyya estão em escolas que se tornaram abrigos em Deir al-Balah. Em tais condições, a própria ideia de uma “base local” fixa perde consistência. 

As vinculações políticas são prejudicadas pelas urgências da sobrevivência, e a lógica da representação é fraturada pelo colapso do próprio espaço. Não se pode falar de política local no tempo passado, mas apenas em um tempo suspenso – de comunidades mantidas em trânsito, forçadas a reconstituir posições políticas sob cerco, tristeza e exaustão. O que surge não é apenas uma crise de governança ou resistência, mas uma crise da própria política. Não é um bom indício que um analista diga, por exemplo, que Beit Lahia, onde ocorreram algumas dessas pequenas manifestações, costumava ser um reduto do Fatah ou do Hamas.

Dito isso, o que continua sendo nada menos que milagroso é que, após 17 meses de guerra, a sociedade palestina continua a exibir formas profundas de solidariedade interna. Apesar da escala inimaginável de destruição, da fragmentação do espaço e da erosão da governança institucional, as pessoas ainda encontram maneiras de compartilhar, de fazer circular recursos e de estar juntas em conjunto. A ideia de comunidade não desapareceu; ela persiste, obstinadamente, mesmo quando as pressões da guerra empurram cada vez mais os indivíduos para a busca da salvação pessoal ou familiar. Em um cenário de fragmentação, desapropriação e violência implacável, a existência contínua da vida comunitária não é simplesmente um resíduo do passado – é uma forma ativa de resistência, uma recusa em permitir que a guerra atomize totalmente o tecido social.

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O desejo de certeza

A guerra é frequentemente descrita como um turbilhão – um colapso do passado, do presente e do futuro em um único momento indistinguível. Ela suspende a cronologia, fragmenta a coerência e dá início à primazia da desorientação, da desordem e da incerteza. Na guerra, o tempo deixa de se desenrolar; ele implode. O significado se torna errático, e as estruturas que antes ancoravam a vida – ritual, rotina, memória, antecipação – são consumidas pelo imediatismo da sobrevivência. Para muitos palestinos, a certeza é desejada, mesmo que seja a certeza da derrota ou da rendição. 

Essas manifestações são um grito por certeza – por ordem, por coerência, por qualquer coisa que possa estabilizar um mundo que está se transformando em uma espiral de ambiguidade, especialmente a incerteza insuportável de saber se se viverá ou morrerá, se amigos e entes queridos sobreviverão à noite. Não se tratam apenas de gestos políticos, mas de súplicas existenciais: tentativas de reafirmar a legibilidade diante do caos, de agarrar-se a fragmentos de significado quando o próprio significado está sob cerco. E, no entanto, elas também são performances de agência – atos de afirmação de alguma forma de controle, mesmo quando esse controle inadvertidamente reforça o próprio mecanismo de massacre que elas buscam deter.

Essa também é a tragédia da vida sob o monstruoso. Uma vida em que o Outro é onipresente, assombrando cada respiração como um anjo da morte – mas o único rosto para o qual você pode gritar, objetar ou implorar é o rosto que espelha o seu, marcado pela mesma linguagem, pelas mesmas características. O maquinário de extermínio sempre prosperou com esses arranjos: ele fabrica as condições para a necrose, para o fratricídio, para a internalização da culpa. Ele faz isso estando em toda parte, mas também permanecendo fora, tanto presente quanto ausente. Ele torna a vítima cúmplice não em atos, mas em desespero, transformando a resistência em autoflagelação e a tristeza em autocensura. No entanto, os gritos, mesmo os de rendição, tragicamente ainda não serão ouvidos ou, na pior das hipóteses, apenas alimentarão ainda mais a máquina de guerra. 

Mondoweiss O Mondoweiss é um site independente que fornece informações aos leitores sobre os acontecimentos em Israel/Palestina e sobre a política externa dos EUA. O site fornece notícias e análises sobre a luta dos palestinos pelos direitos humanos que não estão disponíveis na mídia convencional.

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