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Losurdo: Ser a favor da revolução não é somente um sentimento (parte 3/3)

Na terceira parte de sua entrevista à Opera, Domenico Losurdo trata da democracia, Gramsci e da luta contra o fascismo na Itália.
por André Ortega e Pedro Marin | Revista Opera – (Foto: Pedro Marin / Revista Opera)
(Foto: Pedro Marin / Revista Opera)

Em visita ao Brasil para lançar seu novo livro, “Guerra e Revolução – O mundo um Século após Outubro de 1917” (disponível na Livraria da Opera), o professor italiano Domenico Losurdo se dispôs a conceder uma entrevista ao editor-chefe da Revista Opera, Pedro Marin, e ao colunista e ex-correspondente internacional, André Ortega.

O que segue é a íntegra da parte final da entrevista. Confira a primeira e a segunda parte.

Revista Opera: Nós falamos desta “certa esquerda”, dessa “outra esquerda”, e eu gostaria de pontuar algumas coisas. Porque aqui no Brasil temos um professor da Universidade de São Paulo que escreveu um artigo sobre você onde ele diz que Losurdo é um “stalinista recauchutado”, por conta do seu foco na questão colonial, que ele diz ser um foco na “questão do estado.” Então gostaria que você falasse desse tipo de pensamento na esquerda, sobre a questão do micropoder, das relações de micropoder, e do papel que esse tipo de pensamento cumpre na esquerda nos anos recentes. Porque do outro lado temos essa onda das chamadas “revoluções democráticas”, você falou por exemplo de Popper, mas nós conhecemos também o bilionário George Soros, que também se apresenta como um filósofo, gosta de Popper e de Kant, apresenta-se como um Kantiano, e tem sido uma figura importante nas chamadas “revoluções democráticas”, como na Ucrânia, onde estas bandeiras foram usadas para expandir o poder da OTAN na Ucrânia. O que o senhor pensa disso? Da chamada “onda pós-moderna.”

Domenico Losurdo: Primeiro nós devemos considerar, de maneira bem séria, a questão democrática. No entanto, nós temos de considerar essa questão sob uma ótica correta.

Por exemplo: se lemos o discurso inaugural de Bill Clinton, quando eleito presidente dos EUA, ele diz o que é senso comum na ideologia hegemônica, que os EUA foram a primeira democracia do mundo e, portanto, os norte-americanos estariam destinados a reger o mundo. “A nossa missão é eterna”, essa é a palavra de Bill Clinton. Nós devemos responder: não consideramos a questão democrática uma questão sem importância, pelo contrário, devemos dizer que quando Bill Clinton fala que os EUA foi a primeira democracia, ele diz que a “primeira democracia” é um lugar onde os negros eram escravizados e os nativos exterminados, ou seja, devemos dizer que Bill Clinton é um racista, porque ele considera que o destino do povo negro e dos nativos é algo que pode ser negligenciado. Considera que não é importante. Isso é supremacismo branco, supremacismo ocidental. Ou seja, é o contrário da democracia. Eu repito: o contrário.

E a primeira coisa que devemos levar a cabo se considerarmos o problema da democracia de maneira séria é a democratização das relações internacionais. Se um país ou um grupo de países declara e decide que têm o direito de provocar uma guerra; ou pior, uma guerra mundial, sem a autorização do Conselho de Segurança [da ONU], eles estão desenvolvendo uma teoria na qual o ocidente tem o direito de exercer o despotismo contra o resto da humanidade. É o despotismo aberto; os EUA e o ocidente declaram, abertamente, que têm o direito de intervir militarmente em todos os cantos do mundo. Isso é despotismo. Peguemos, por exemplo, a Síria; muitos falam da guerra na Síria, mas a chamada “revolução neoconservadora” nos EUA já disse, no começo do século, que Assad deveria ser derrubado. Diziam que deviam levar a cabo uma mudança de regime na Síria porque Assad é contra Israel, contra o ocidente, etc. Isso é despotismo, e aqueles que lutam contra tal despotismo são os reais defensores da democracia.

Mesmo no que se refere às relações pessoais; se considerarmos o Oriente Médio: onde os EUA provocaram guerras? Não em países como a Arábia Saudita ou nas monarquias do Golfo, os alvos dos EUA sempre foram países que tiveram uma revolução anticolonial e antifeudal. Iraque, Líbia, Síria – é claro que podemos criticar um aspecto ou outro – mas qual é a diferença destes países em relação à Arábia Saudita e as monarquias do Golfo? Na Arábia Saudita e nas monarquias do Golfo não houve nem uma revolução anticolonial, nem uma revolução antifeudal. E qual é o resultado das guerras neocoloniais dos EUA e do ocidente? – Não somente a destruição do estado e a criação de uma massa de refugiados desesperados que, muitas vezes, morrem durante a fuga. Mas peguemos por exemplo a situação das mulheres no Oriente Médio; essa situação foi melhorada ou piorada? Todos podem ler, mesmo na imprensa ocidental, que há agora no Oriente Médio a reintrodução da escravidão das mulheres. Após a derrubada de Kaddafi há agora na Líbia a poligamia – talvez a reintrodução da poligamia seja uma conquista pós moderna [risos]. Nós temos a reintrodução do poder marital ditatorial sobre as mulheres; ou seja, o imperialismo significou, na prática, o agravamento da condição das mulheres, um agravamento terrível.

Nós precisamos considerar o problema da democracia em todos estes aspectos. Eu cito Hegel; a verdade está na totalidade. Bill Clinton, quando falou dos EUA como o primeiro país democrático, não considerou a totalidade, somente a situação da comunidade branca. “Israel é a única democracia no Oriente Médio” – esse é o senso comum – mas Israel também é, por outro lado, o despotismo contra o povo palestino. Onde está a lei para os palestinos? Os palestinos podem ser presos, expropriados e mortos sem haver intervenção do judiciário, os militares podem decidir o destino de todos os palestinos. Ou seja, o imperialismo é o maior inimigo da causa da democracia, se considerarmos a democracia em todos estes aspectos.

Revista Opera: Em “Hipocondria da Antipolítica” temos um tema fundamental, que é a questão da posição política do intelectual, de como apesar do intelectual ter uma posição política, ele frequentemente foge desta posição, tenta ser neutro, antipolítico, etc. E você tem em todo o seu trabalho um elemento gramsciano forte… então gostaria de perguntar: Como você vê essa questão do papel do intelectual e, por quê não, do jornalista?

Domenico Losurdo: Nós precisamos distinguir os intelectuais entre si. Há muitos intelectuais que são, digamos, manipuladores profissionais. Algumas vezes são comprados pelo imperialismo, há mesmo livros que explicam que muitos jornalistas são pagos. Esse é um aspecto, mas este aspecto não é tão importante no sentido de que sempre há intelectuais pagos pela classe dominante. Mas, talvez, o aspecto mais interessante seja outro. Nós temos muitos intelectuais que têm aspirações de superar a ordem existente, muitos intelectuais que não se identificam com a sociedade capitalista, que querem um mundo melhor, uma sociedade melhor. No entanto, muitos destes intelectuais não entendem o que é a ação política, e no livro que você citou eu estudei Hegel, e ele é o primeiro grande filósofo que buscou explicar o que é a política.

Em “Hipocondria da Antipolítica” eu faço uma comparação entre Hegel e Lênin; ambos lutaram contra a fraseologia. O que é a fraseologia nesse sentido? É a afirmação que é somente a expressão de sentimentos, mas que não é um esforço para estudar a situação concreta. Nós temos a grande frase de Lênin: “Marxismo é a análise concreta de uma situação concreta.” Não há muitos intelectuais que podem fazer a análise concreta da situação concreta. Expliquei, por exemplo, a diferença entre a Primeira e a Segunda Guerra, e do perigo de uma Terceira Guerra; nós devemos fazer a análise concreta da situação concreta. E ser a favor da revolução não é somente um sentimento, você não pode fazer uma transformação concreta da realidade somente com sentimentos.

E no que se refere ao Gramsci, hoje todos gostam de falar de Gramsci…

Revista Opera: Até os stalinistas [risos]

Domenico Losurdo: [risos] mas Gramsci é um filósofo e um militante revolucionário que falava da importância da questão nacional. Não há hegemonia se não considerarmos a questão nacional, somente o Partido que considerar a questão nacional é capaz de desenvolver hegemonia. Primeiro, Marx e Engels. Sim, eles falaram da revolução proletária, mas se nós olharmos as obras de Marx e Engels, há em muitos destes trabalhos a questão nacional, na Polônia, na Irlanda, ou em outros países, no mundo colonial. Por quê? Foi uma distração deles? Não! A revolução concreta deve considerar a situação concreta, e as situações concretas são as diferentes situações nacionais.

E, no que se refere a Gramsci, ele escreveu muitas e muitas páginas sobre o “ressurgimento italiano”, por exemplo, porque se vamos exercer a hegemonia devemos considerar a situação concreta. Mas podemos resumir o pensamento de Gramsci com um episódio, que cito em meu livro sobre Gramsci; quando ele foi condenado pelo tribunal militar, ele disse: “Vocês estão provocando a destruição da nação italiana e nós, os comunistas, vamos reconstruí-la.” E, neste caso, Gramsci foi profético, porque Mussolini tinha a tentação de criar um “novo império romano”, ele levou a cabo a guerra na Etiópia com a palavra de ordem do “reaparecimento do império nas colinas de Roma”, ou seja, temos um novo império em Roma. Essa era a grande ambição de Mussolini. É claro, isso era uma loucura, mas qual é a conclusão? que a Itália, no fim da Segunda Guerra, foi ocupada pelo exército do Terceiro Reich. Se tornou uma colônia do Terceiro Reich, e para reconquistar a independência nacional era necessária a resistência antifascista, e que o Partido Comunista liderasse essa resistência. Gramsci viu a situação de forma muito clara, e nesse sentido o Partido Comunista na Itália, que tinha grande hegemonia no mundo intelectual, era o partido da maior parte dos grandes intelectuais e, ao mesmo tempo, dos trabalhadores…

Revista Opera: E por que eles não tomaram o poder nos anos 50? Tendo as armas, grande popularidade… Sabemos que as primeiras eleições da Itália após a guerra foram compradas pela CIA, que deu dinheiro aos democratas-cristãos…

Domenico Losurdo: Não somente dinheiro [risos]. Agora que temos os documentos da CIA liberados, sabemos que se os comunistas tivessem ganhado a eleição a CIA teria declarado a independência de Sardenha e da Sicília, contra o estado italiano. É claro, Togliatti tentou evitar a terrível guerra que foi provocada na Grécia. Ele conhecia a situação e, ao invés de provocar uma guerra em que estavam destinados a perder, já que na Itália haviam tantos soldados americanos, Togliatti buscou desenvolver outra estratégia, e essa estratégia só foi derrotada por conta da derrota do campo socialista.

Revista Opera: Então o compromisso histórico não foi exatamente um erro, você diria?

Domenico Losurdo: O compromisso histórico foi pensado por Berlinguer depois do golpe de estado no Chile, no qual sabemos, é claro, o papel que teve a CIA. O golpe no Chile foi a demonstração, para Berlinguer, que não é suficiente ter uma pequena maioria, de que sim, com uma pequena maioria se pode ganhar as eleições e construir um governo, mas que a CIA é capaz de fazer uma contra-revolução sangrenta. E Berlinguer tentou evitar esta situação. Mais tarde, vimos a crise, a capitulação de Gorbachev na União Soviética, e a situação do mundo era totalmente diferente.

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