O que segue é a terceira parte da série de artigos “Carta no Coturno.” A leitura dos artigos anteriores é recomendada: primeira parte e segunda parte.
No último dia 7 de setembro, como ocorre em todos os anos no País, desfiles cívico-militares foram realizados em todo o território nacional, com a mobilização de milhares de soldados, tanques, aviões e veículos militares que se alinharam na maior parte dos municípios brasileiros para comemorar o 196º aniversário da declaração de Independência.
No dia anterior, no entanto, uma lâmina fez a situação política brasileira avançar (ou retroceder) em velocidade incomum. Os milésimos de segundos que separaram o punho de Adélio Bispo de Oliveira, o homem que agiu porque Deus mandou, do abdômen do candidato à presidência Jair Bolsonaro, que também diz fazer política por ordem de Deus, poderiam ter se convertido em meses, quiça anos, no quesito qualitativo.
Na política o tempo constantemente não obedece às leis físicas que deveriam regê-lo. Nestes momentos, o que costuma separar horas de dias, semanas de meses e anos de décadas é a audácia dos homens. Bolsonaro, imóvel numa cama hospitalar, tinha um braço direito apto à tarefa: seu vice, general Hamilton Mourão. Não podendo contar com o atrevimento dele, deveria ter tido a disposição de seus apoiadores: civis afundados em desespero e bastante avessos à “normalidade pacífica” por um lado, militares dos mais variados tipos do outro. Como Mourão declarou após o atentado: “Se eles querem usar violência, os profissionais da violência somos nós.”
Às vésperas da mobilização nacional pelo aniversário da Independência e em meio a rumores de uma nova greve de caminhoneiros, a audácia poderia ter levado Mourão e Bolsonaro às estrelas; o país à lama. Mas no Brasil os candidatos a caudilhos têm constantemente se demonstrado estéreis garganteiros. Hamilton Mourão, que poderia ter golpeado o Brasil numa reedição fac-símile da marcha do general Olímpio Mourão em 1964, que partiu também de Juiz de Fora para golpear João Goulart no Rio, preferiu no entanto golpear sua chapa, buscando a cabeça. Submeter o Capitão às ordens do General, afinal, é mais importante do que submeter o País ao seu poder. É a pequeneza estratégica de quem é moralmente minúsculo; no Brasil os generais também não são mais os mesmos.
Falta de atrevimento à parte, os movimentos dos últimos tempos enfim tornam óbvio o que dizia há dois anos: as fachadas institucionais enferrujam, o poder militar cresce. Dois anos passaram-se para que as previsões da Revista Opera apareçam em editoriais como “Imprudência fardada“, da Folha de São Paulo, ou que a CBN, das Organizações Globo, reconheça o “momento de ingerência das Forças Armadas na vida civil do país.” A CBN se referia ao fato de Dias Toffoli, agora presidente do STF, ter chamado um general quatro estrelas para ser seu assessor. Os coturnos, agora, na antesala do STF.
Há alguns anos, os militares eram figuras esquecidas no País. Cumpriam suas funções dos quartéis, e quando chamados a público era sempre em razão da Defesa do País. Agora, dão declarações políticas, sabatinam candidatos, fazem previsões sobre as eleições e sobre a legitimidade dos governos. Outros chegam até a falar em novas Constituições, feitas não com uma discussão pública, em uma Constituinte, mas por um “conselho de notáveis.”
Admitir enfim que os coturnos ganharam espaço no cenário político nacional deve levar à pergunta: serão estes flexíveis o suficiente para acatar a eleição de um candidato à esquerda, ou responderiam com seus bicos de aço? Se o fizerem, estaremos preparados para responder, ou chamá-los de jumentos de carga bastará para impedí-los? Temos preparado as condições subjetivas para responder à degradação das condições objetivas?Afinal, temos nos preparado para lidar com “profissionais da violência”?
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