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Brasil Sempre: O gorila mostra o dente

É preciso se desligar da falsa segurança do “óbvio”, de que vivemos num belo barquinho institucional navegando nas águas do fim da história.
por André Ortega | Revista Opera
(Foto: Victor Soares/ABr)

A maior parte deste artigo foi escrita no dia 17 de Setembro – cito uma coluna do Estadão do começo do mês que reforça minha posição, mas no dia 19 a coluna de Marcelo Coelho na Folha publicou um artigo intitulado “Roteiro pronto para o golpe militar”. No mesmo dia, Elio Gaspari fez uma coluna com o mesmo tema. Leia a continuação em Brasil Sempre [2]: a guerra de Bolsonaro (fuzil, caneta e dinheiro)

Já faz alguns anos que nós, da Revista Opera, falamos publicamente da intensificação da tutela e das movimentações militares na política nacional. É após 2016 que a carta no coturno passa a ser uma preocupação maior – nos ronda o golpismo militar?

Infelizmente, essa tendência vem se confirmando e poucas pessoas parecem levar a sério. Alguns confundem a observação com histeria ou apenas acham graça. Muitos falaram daqueles que confundem a nossa década com os anos 60. Estamos falando de uma situação bem atual e observável.

É preciso se desligar da falsa segurança do “óbvio”, de que vivemos num belo barquinho institucional navegando nas águas do fim da história. Eu não quero discutir se “golpe militar é antiquado”, quero sim falar sobre balança de poder. E a balança de poder cada vez mais pende para os militares.

Eles já têm voz desde a redemocratização. Depois da derrubada de Dilma, essa voz aumentou. Esse episódio merece ser chamado de golpe não só pela falcatrua que fizeram para derrubar a presidente eleita, mas pela desorganização política e a semente do caos que trouxe consigo. A ruptura do bloco dos golpistas não foi seguida de uma mera concorrência entre partidos, mas de uma rachadura no bloco hegemônico das classes dirigentes.

As castas políticas e judiciárias digladiam por poder enquanto facções de industriais, fazendeiros e financistas tentam firmar uma liderança. Há uma lacuna no bloco hegemônico, na sustentação do poder político. A resolução militar fortalece conforme o caminho da resolução institucional desaparece – isso não é mero produto de uma “fraqueza das instituições”, mas um problema político de como se estrutura a nossa ordem social.

Isso é confiar em trilha de cavalo na serra – o cavalo é bicho esperto, grande e forte, mas essa trilha não dá em lugar nenhum. O Estado se vê cada vez mais enfraquecido, quebrantado, cria-se uma sensação de caos aliada a uma percepção de violência na sociedade, ao mesmo tempo que a política se desmoraliza. Cada vez mais os mandatários do exército apresentam sua instituição como “garantidora da ordem” frente a este desmantelamento – com um viés ideológico, como quem reivindica para si a prerrogativa de tutela.

Está claro e aberto.

Não é só general escandaloso fazendo barulho na reserva. É comandante da ativa dando aviso para o STF antes de votar o caso de Lula. Na melhor das hipóteses, o Comandante das Forças Armadas precisa fazer uma política de contenção de gorilas com inclinação golpista (e isso demanda algum tipo de “concessão negociada” a eles).

No início de setembro William Waack, bem relacionado nos meios militares, dedica sua coluna no Estadão “ao que pensam os militares sobre o momento político”, para reverberar o que seria um “Chamado à Razão” de oficiais de alta patente (“na verdade, um alerta e uma advertência” – leiam de novo, “na verdade, um alerta e uma advertência“). Os coturnos reclamam da “esquerdização” no país e comparam a situação atual com a anterior de 64 (que, como verão, não é exatamente o que eu faço).

É verdade que o artigo alude, meio mole, a um “desinteresse” desses militares em intervir.

Ninguém conspira abertamente nas páginas de jornal e não é essa lógica do golpismo. Se for para ter golpe, basta ninguém impedir os poucos que querem.

Conforme o enleio aumentar, todo mundo vai falar disso estatelado – gritar enquanto puder. De repente, tem até petista e toda sorte de comentador já falando dessa possibilidade. Em 2016 não faltou petista e nacionalista à moda Ciro Gomes aplaudindo os militares, com análises sobre seu “nacionalismo”, que iriam derrubar Temer e quantas maravilhas mais.

República vestindo coturnos

A questão não se resume a golpe de estado, mas se define na afirmação política dos militares. A referência a “garantidora da ordem” não é só uma ilusão ideológica, mas o fato do exército ser uma instituição executiva poderosa e das poucas que vem sobrevivendo de maneira unificada.

Quanto mais essa instituição se manifesta, mais poder ela ganha e mais poder ela tende a angariar para si. É como um acúmulo e uma reprodução de capital político. Configurações institucionais procuram se reproduzir e aumentar o seu próprio poder. É como se o poder político fosse um processo orgânico e o exército fosse ou um órgão hipertrofiado ou gene que passa a moldar a aparência do organismo.

Isso é objetivo, uma realidade da física do poder, mas é mais tenebrosa a realidade das forças subjetivas que são golpistas.

O “acontecimento” da tutela militar (que como veremos, é policêntrica) se inscreve em um determinado contexto e o transforma – ele nasce de certas condições, mas gera novas.

Ciro Gomes falou das aspirações ditatoriais de Mourão na Rádio Bandeirantes na manhã do dia 17 de setembro e na madrugada do dia 18 disse no Jornal da Globo que avisou o Comandante Vilas Boas que ia “enfrentar o Mourão porque ele estava escalando um golpe no Brasil” – também denunciou a tutela militar na política e ameaças relativas a voto no Supremo. Ciro Gomes é candidato presidencial com acesso a altos círculos militares e não vem falando essas coisas a toa, não é por seu conhecido gênio forte ou criatividade retórica.

Jogadas

Estamos na época da guerra de quarta geração, da guerra híbrida. A “guerra de comunicação” ganha novos patamares com o advento da internet e atores não-estatais assumem funções preponderantes. Nossos oficiais e mais precisamente os jogadores citados acima são uma mistura da educação do regime militar com um contato recente com essas noções de guerra híbrida.

Não estamos falando nem de intelectuais nem de líderes partidários tentando fazer avançar uma causa, mas de generais brasileiros saídos do sistema da ditadura militar. Sendo conspiradores por vocação e conservadores vindos de uma instituição sólida (corporativista e totalmente distante do voto), se identificam especialmente com a desinformação como arma de preferência, garantindo a desorganização de diversas composições civis em contraposição ao sólido poder que eles mantém enquanto militares.

“Conservador” aqui não implica necessariamente em grandes profissões de fé partidárias e doutrinárias (até porque estamos falando de positivistas), mas a ideia central de que conservar a atual ordem social é necessário e desejável (quem manda, quem obedece, quem é de cima, quem é de baixo…).

O jogo é complexo e nele posições distintas que saem de dentro da instituição militar podem se alimentar mutuamente, pelo simples fato de fortalecerem a instituição. Nesse sentido, o militar legalista pode fortalecer os golpistas indiretamente com seus pronunciamentos.

Enquanto a tal da “blogosfera de esquerda” cantava suas loas ao Comandante Vilas Boas, nós da Revista Opera já havíamos apontado para a função semiótica da exposição do “general democrata” na Rede Globo e sua “defesa da legalidade” logo após da provocação do General Mourão. No fim, a instituição saiu com seu poder reafirmado, Mourão não foi propriamente deslegitimado e as pessoas perderam de vista que a nossa institucionalidade tinha acabado de passar por uma perturbação golpista, que incluiu guerra híbrida (vide o que fizeram com a Petrobras), bombardeio de comunicação e por fim a conspiração dos elementos mais corruptos da política brasileira.

A grande jogada atual, no entanto, é um garfo. O garfo no Xadrez é um ataque bilateral em que duas peças são ameaçadas e portanto uma delas será capturada na próxima rodada. O garfo aqui consiste em enquadrar um segundo turno entre Fernando Haddad do PT e Jair Bolsonaro. Eles consolidam sua base de massa na desinformação, tem seus aliados no judiciário e na disposição do capital financeiro, criando o cenário perfeito ou para elevar Bolsonaro ou para pressionar um Fernando Haddad que já chega com a máxima disposição de negociar – negociará com uma arma na cabeça. Também preparam o terreno para derrubar o PT caso ele vença as eleições – a ideia é que as opções ficam em aberto.

Poderíamos pensar numa situação terrível em que PT já estaria enquadrado e os comunicadores que ficam nos atacando por falar dos militares agora estarão rebatendo qualquer crítica como sabotagem frente a ameaça iminente do golpe militar. Em nome da “democracia”, vamos ter que engolir qualquer coisa. Não podemos descartar esse cenário, o cenário Lenin Moreno.  De toda forma, observo que não considero essa a possibilidade a mais provável e acredito que querem atacar o PT de forma mais decisiva.

Ciro Gomes, por sua vez, é um inconveniente que desarma a jogada dos conspiradores que dependem da dinâmica do antipetismo, dinâmica que não funciona tão bem contra o cearense. Afirmar isto não é em “ceder ao jogo dos golpistas, aceitar sua posição como referencial”, como pode dizer o petista indignado. Nesse momento de ruptura, em que os golpistas tentam construir um novo tipo de hegemonia, Ciro Gomes serviria como resposta que constrói uma hora, um ponto momentaneamente contra-hegemônico (e enquanto eu escrevo esse texto, o “advogado do PT” Dias Toffoli, nomeação de Lula para STF, se converte numa espécie de arauto conservador com militar de direita com assessor).

Muito me impressiona a posição de Fernando Haddad frente a essas ameaças, que segue com seu discurso formalista e liberal de “reformar e fortalecer as instituições”; ele mesmo descreveu uma certa alergia à política mais dura no seu texto “Vivi na pele o que Aprendi nos Livros”(publicado na revista Piauí), o que seria sinônimo de modernidade frente ao “patrimonialismo” atrasado. O PT tem sido um pouco assustador, porque sua estratégia não parece nesse momento um arroubo de ousadia, mas uma dança no abismo em que eles quase convidam um golpe, entrando nas provocações discursivas de um lado (José Dirceu falando de “tomar o poder”) e mantendo a estratégia conciliadora de outro.

Podemos considerar que a estratégia do PT é se identificar perfeitamente com o legalismo e a construção de uma coalizão civil supra-partidária, incluindo até mesmo o PSDB, daí a conversa de instituições e o tom sereno de Haddad. Dessa forma, o PT se apresentaria como o defensor das instituições.

Não é difícil, porém, alimentar dúvidas devido às práticas passadas do partido marcada por uma confiança no jogo institucional e nos adversários: vide o que aconteceu no golpe (sequer uma declaração pública em rede nacional chamando o povo às ruas) e como as coisas foram depois com a prisão de Lula. “Não acreditam” no pior e pensam que se acumular forças para negociar de acordo com os termos das classes dominantes serão poupados.

O “General Lula” não parece pensar muito além das eleições, e mesmo nelas estão tendo de lidar com o fenômeno da facada em primeiro plano e o incômodo do Ciro Gomes que não foi completamente eliminado pelas manobras do PT.

Concessões tradicionais e pusilanimidade não tendem a ser a resposta para quem está babando para tomar o máximo possível; pensar estritamente em termos de “narrativas” ou depender da confiança nas instituições também não vai salvar o nosso país.

Pelo menos há um número de apoiadores do partido conscientes da nossa situação, apesar de outros falarem em tom de negação (e muitos receberam no passado as avaliações da Revista Opera sobre militarismo com bastante ceticismo, precisamente por confiar em uma normalidade institucional). Existe muita relutância em tratar a política nesses termos.

A tradição do gorila

Existem exemplos históricos para nos informar a situação atual e a variedade de intervenções que podem sair de uma carta no coturno.

Na Argentina dos anos 50, os militares com uma liderança “moderada”, próxima a aspirações da elite e de inclinação liberal, derrubaram o populista Perón em nome de uma transição à democracia política e a economia liberal.

O General Aramburu como Presidente realizou reformas voltadas à liberalização da economia e a redução do Estado, retirando subsídios, liberando aluguéis dos controles de preço e fazendo declarações semelhantes a de Mourão ao dizer que “o consumidor deve aprender a defender a si mesmo”. Enquanto ele afirmava esse programa como compromisso da chamada “Revolução Libertadora”, era obrigado a ceder e mediar a posições do “gorilato” (possivelmente sem se sentir muito contrariado); militares mais radicais que defendiam diretamente uma ditadura.

Foram realizadas eleições em 1958 sem os peronistas, com a vitória de um candidato de esquerda da União Cívica Radical Intransigente, Arturo Frondizi, um nacionalista defensor da industrialização e do monopólio estatal do petróleo (e que foi apoiado pelo peronismo). Frondizi, no entanto, teve o governo limitado e cerceado por generais que não compreendiam a necessidade de se negociar com os peronistas para buscar a paz social, mas entendiam fatos como a greve geral de 1959 como “sabotagem”. Os militares impuseram liberais no Ministério da Economia a despeito da posição de Frondizi, primeiro Álvaro Alsogaray e Roberto Alemann (que seria ministro dos militares golpistas anos depois).

Frondizi não conseguia controlar os militares nem mesmo em questões cruciais da política externa, como quando os gorilas apoiavam a passagem de guerrilheiros e o contrabando de armas para o Paraguai,  apoiando os blancos do Partido Liberal contra os colorados do ditador militar Alfredo Stroessner (guerrilheiros de tendência comunista também foram beneficiados). Os militares argentinos também apoiavam movimentos subversivos na Bolívia a despeito do presidente, mas com a anuência e a orientação do comandante do exército, o general Toranzo Monteiro. A derrubada de Perón havia quebrado o comando hierárquico na Argentina e as Forças Armadas se consideravam guardiãs da política contra a ameaça comunista, não obedecendo ao presidente constitucional mas sim mantendo-o sobre vigilância.

O Brasil, aliás, foi a “filial principal” da Operação Condor na América Latina. O Brasil não foi só academia de torturadores, mas de esquadrões da morte bem versados em técnicas terroristas. Houve uma contribuição decisiva a tradição conservadora apropriada pela extrema direita de juntar “homens influentes” em uma mesa informal no intuito de criar um poder paralelo e paramilitar.

O Uruguai tem um bom exemplo dessa aprendizagem, onde os militares preferiram manter uma aparência constitucional maior, deixando um presidente fantoche e alguns aparatos da democracia, com a perseguição correndo por debaixo dos panos.

Em outros países, militares governaram como “homem forte” sem assumir diretamente a presidência da república.

Algumas lembranças para estimular a inteligência:

– O General Góis Monteiro pode ter apoiado Vargas, mas depois articulou sua primeira derrubada ao lado de outros generais que eram supostamente leais. Provavelmente foi guiado por considerações de estabilidade e ordem social.

– Góis Monteiro foi isolado por companheiros mais conservadores.

– Vargas apoiou o não tão talentoso general Eurico Gaspar Dutra contra o candidato da conservadora UDN, o Brigadeiro Eduardo Gomes. Dutra se voltou contra o trabalhismo e o edifício varguista, se aproximou dos Estados Unidos e adotou uma linha mais liberal na economia.

– Dutra consolidou uma reconciliação entre as elites políticas e econômicas do país em um bloco liberal-conservador, tendo como objetivo a garantia e a segurança para investimentos estrangeiros, reinando sobre uma repressão contra movimentos populares diversos: nacionalistas (“O Petróleo é Nosso”), comunista, sindical e o queremista (pro-Vargas).

– Lacerda, ultra direitista, um raivoso digno do antipetismo de hoje, apoiou o golpe em 1964 para ser calado pelos militares em 1966 quando foi contra a consolidação da ditadura – ele queria somente que os militares fizessem o “serviço” de depor os trabalhistas para depois voltar as casernas.

“Vivemos outra época, essa época já passou”

Sim. Vamos olhar para a nossa época.

  • No cenário internacional, a estratégia de Trump é diferente daquelas dos falcões democratas e dos patrões neoconservadores que procuram atuar na política dos países manipulando movimentos ligados à sociedade civil, partidos e revolucionários liberais. Ao invés de apostar em terroristas na Síria e nas operações subterrâneas, os Estados Unidos decidiram fortalecer a Arábia Saudita como potência regional através do exército e endossar a política agressiva de Israel no Levante.
  • Trump promove uma ruptura no globalismo, reafirma uma abordagem unilateralista na política internacional e protecionismo no comércio, iniciando uma guerra econômica contra a China.
  • Os Estados Unidos tem uma oportunidade de desarticular mais ainda o BRICS no Brasil. As políticas liberais abriram espaço para o capital chinês e agora há um candidato que flerta perigosamente (para os EUA) com a China, a nível geopolítico, falando de transferência de tecnologia e tratados bilaterais de comércio (Ciro Gomes).
  • Há uma nova situação do mundo que beneficia deslocamentos políticos fora da “normalidade”.
  • Na América do Sul, a prioridade geoestratégica dos EUA é sufocar o estado venezuelano.
  • Nesse mesmo estado venezuelano, os militares ocupam uma posição de protagonismo político e os militares brasileiros são bem conscientes disso.
  • Militares brasileiros influenciam diretamente a política paraguaia desde antes de 1964 até os dias de hoje.
  • É claro que em diversos países existem formas de autoritarismo conservador, inclusive disfarçados de democracia. Em Honduras os militares de fato deram um golpe de estado.
  • O “Comando Sul-Americano” dos Estados Unidos (Southcom) publicou recentemente seus eixos estratégicos, que incluem “reduzir o desafio do extremismo e garantir ambiente seguro para inversão” –  o Brasil é citado como coordenador de uma “resposta ao extremismo”. Ênfase no crime organizado e na integração cibernética das nossas forças, “fundamentar o avanço tecnológico para a guerra, fundamentalmente a cibernética”, inclusive o aprimoramento do uso de big data.

A nova cruzada “democrática”

“Cruzada Democrática” foi o nome de um grupo de oficiais ligados à UDN, favoráveis aos Estados Unidos e anti-varguistas. No mundo militar, se contrapunham aos nacionalistas, que de volta os chamavam de entreguistas. Na política dos clubes militares, boa parte do conflito entre essas facções giraria entorno da campanha do “O petróleo é nosso”. A Cruzada trabalhou para expurgar os nacionalistas das posições de comando e avançar seus aliados no oficialato, no que eles tiveram algum sucesso nos anos 50 (para alcançarem o poder finalmente em 64). Um dos momentos marcantes dessa virada foi a eleição de Alcides Etchegoyen, avô de Sérgio Etchegoyen.

Historicamente, os Estados Unidos se preocuparam em patrocinar e avançar uma educação anti-nacionalista nas Forças Armadas de vários países da América Latina. A penetração do neoliberalismo, o neoconservadorismo e ideias anti-nacionais, no entanto, precisa dos seus promotores nativos. Hoje pode até existir oficiais e comandantes com inclinações diversas, não tenho dúvidas, mas não é um grande salto considerar que existem os que promovem a política de direita.

A nova cruzada agora orquestra a desinformação que guarda a campanha de Bolsonaro, desorganiza os opositores e prepara as condições do garfo. Em verdade, não se trata só de conseguir manipular o resultado político das eleições de 2018, mas de contribuir para a construção de uma nova hegemonia, fazer um novo deslocamento decisivo da nossa política internacional para o atlantismo e influir na arena interna pelo menos por duas décadas.

Eles se acreditam patriotas por valorizar a ordem. Não falham em fazer uma leitura militar de movimentos contestadores como um tipo de ameaça subversiva. Em última instância isso se converte na promoção da propaganda anticomunista mais vil, absurdos sobre “ditadura gay bolivariana”, com general muito bem formado prestando seu nome para assinar textos com esses absurdos (os quais ele não acredita), mas que servem à estratégia de guerra híbrida.

No passado, Carlos Lacerda, jornalista golpista e político gangster com pose de puritano, um tanto fascistóide, metralhava notícias falsas e misturava o “perigo comunista” que projetava em Vargas (sim, em Vargas) com uma conspiração envolvendo a Argentina, Péron e os peronistas. E isso só eram as maiores narrativas de um histriônico moralista que não hesitava em promover mentiras e difamações pessoais contra seus adversários.

Hoje não é tão diferente. A rede de mentiras cria desinformação e consolida as bases do golpismo. Essas pessoas não se preocupam com a verdade e nem mesmo em esclarecer ninguém. Como disse atrás, não estão pensando em levantar uma bandeira, mas em prejudicar todos aqueles que querem mudança social (e são vistos como subversivos, fator de desordem, irracionalidade política e econômica) e garantir o fortalecimento do próprio poder – que é um poder de força, de gabinetes, de burocracia e militarismo, não é nem moral, nem democrático.

Eles querem, sim, redefinir o significado de democracia no Brasil, para implantar um regime ainda mais conservador que o nosso (como fica demonstrada pela atuação histórica do nosso judiciário, a “elite esclarecida” que garante os limites da “loucura democrática”), ainda mais imune a mudanças.

Etchegoyen – Sérgio, o neto de Alcides, o nosso Etchegoyen – em 2017 falou a um seminário sobre a nova Estratégia Nacional de Inteligência, assinada por Temer. O início do discurso é uma lamentação sobre as decisões do povo, se referindo ao voto, “não ser capaz de enxergar aonde esse caminho levaria, não ser capaz de perceber as consequências de longo prazo, não ser capaz de perceber as repercussões que isso daria no resto da vida nacional” – como discordar quando existe uma massa de bolsonaristas com o cérebro lavado por desinformação?

Ainda estamos ouvindo e sentido os ecos das doutrinas de segurança nacional, de contra-insurgência e “ação cívica” das Forças Armadas. Sobre “ecos”, não é muito parar pensar que Bolsonaro e Mourão foram subordinados daqueles quadros da ditadura que viram superiores barrados na carreira por conta da redemocratização. É a geração RioCentro (Bolsonaro que o diga…). Aliás, os filhos desses quadros em geral seguiram carreiras militares e estão hoje dentro do nosso exército, professando essas ideologias – um tipo de endogenia que merece nossa atenção.[1]

No geral, não faltam novos oficiais ressentidos com os governos do PT, que não mudou nada e ao mesmo tempo não colaborou muito com a vida dos militares.

O candidato

Sempre quando perguntado, respondia que o risco Bolsonaro era o risco do capital financeiro assumir ele como alguém com um mínimo de popularidade e capital político, capaz de aplicar o projeto deles com algum verniz de legitimidade ideológica e aparência populista (capaz de competir com os populistas que elegem como inimigos).

Confesso que recuei muitas vezes perante o ceticismo das pessoas e eu mesmo trazia a dúvida razoável que era apontar a candidatura de Alckmin como a reunião do golpe (o que também era recebido ceticamente, mas demonstrando uma ignorância maior da política).

O primeiro cenário parecia relativamente aceitável, só que negado pelos paladinos do “óbvio” da banalidade institucional.

Alguns podem questionar minha comparação com os militares venezuelanos por lá existir um movimento político, mas nada impede que militares enxerguem no incipiente bolsonarismo precisamente uma base política em potencial, mobilizada, de massa, ideológica e distinta do fisiologismo regional. Não obstante, devo colocar uma pitada de sal contrária a isso: a tendência no comando do exército não é a de abraçar o histrionismo político, a demagogia e a agitação de massas como formas centrais da política.

No plano econômico, a julgar pelas declarações, Mourão não é muito diferente de Paulo Guedes. Mesmo assim Mourão pode ser vítima de suspeitas que o mercado internacional pode manter por segurança frente os militares.

Existem setores importantes no mercado que querem um “Pinochet do século XXI”(é uma paródia com “socialismo do século XXI”). Eles, como vários ideólogos do sistema (do jornalismo às comunidades epistêmicas do capital internacional), acreditam que existe um confronto central entre populismo com algo de nacional e a “racionalidade econômica”. Como o povo sempre está sujeito ao primeiro, resta comprometer a democracia armando a tal da “racionalidade econômica”.

Guedes representa uma aplicação tosca e unilateral de todo receituário neoliberal de até agora. Ainda que um governo desses seja incerto e dificilmente seria simplesmente a aplicação das medidas de Guedes, elas continuarão servindo de referência.

Os militares em geral estão tutelando cada vez mais. Vilas Boas faz “tutela dupla” para segurar os dois lados, mas existem outros de onde saiu Mourão, inclusive piores e dispostos a bancar uma “reforma constitucional” nos termos que Mourão descreveu nessa semana.

O risco Bolsonaro é o risco da renovação dos quadros militares e policiais com elementos mais a direita.

O futuro incerto

A física do poder pode impressionar os incautos que não pensam a realidade como movimento e o encadeamento de confrontos, os que acreditam em política como um mero choque de opiniões ou a competição entre apostas fixas. No entanto, as vezes ela é bastante simples. Força atrai força – tanto a força concreta como a força ilusória.

Não estamos assistindo somente a uma corrida eleitoral, mas a um confronto de forças e grupos que tentam se aproveitar dessa situação para impor uma nova ordem. Nessa tensão, pequenos movimentos podem gerar viradas determinantes.

No que concerne aos militares, não tenho dúvidas de que existem comandantes preocupados e empenhados na modernização, no progresso e fortalecimento de nosso país. O que dificulta é que isso não virá das amarras da dependência e mesmo o mais brilhante dos generais não conseguirá muito associado a velhas oligarquias. Um projeto nacional demandaria uma aliança dos militares com os trabalhadores e as classes médias, não de conversas com barões do capital financeiro e amizades de longa data com fazendeiros.

No campo dos direitos e usurpações, também acredito que existam militares de inclinação mais legalista e que mesmo conservadores contém os mais militantes de extrema direita.

Nós civis não podemos depender da boa vontade de um general anônimo ou da inércia do pensamento militar tradicional conter o ativismo de extrema direita. Não somos só reflexo de condições exteriores, os movimentos crescem com a política, não a mera reação aos eventos e as imposições, mas a ação pensada e consequente.

Leia o artigo seguinte, Brasil Sempre: a guerra de Bolsonaro (fuzil, caneta e dinheiro)

[1]  – Imagino que a formação do pensamento de alguns gere críticas sobre o que aqui parece uma ênfase na questão ideológica. Nós não ignoramos a evolução estrutural da nossa política, mas essa conversa sociológica não pode nos divorciar as modalidades de ação concreta dos atores que participam do processo e as formas de representação que eles dão a sua própria ação. Alguém notou que a fala do professor Safatle, apesar de chegar às nossas conclusões anos depois, possui uma tônica mais teórica um pouco distinta. É muito bom que a crítica se fortaleça: nós não negamos a análise mais geral, porém nós temos uma preocupação especial com a política no mais duro, num nível mais “microeconômico”.

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