“É um tempo de impunidade”, resumiu Paulo Malvezzi, assessor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional, quando indagado pela Agência Brasil sobre o que significam os 24 anos do Massacre do Carandiru, que serão completados neste domingo (2). Passado todo esse tempo, ninguém cumpriu pena pela morte dos 111 detentos do Pavilhão 9 do antigo complexo penitenciário do Carandiru, desativado em 2002.
“São mais de duas décadas sem que a gente tenha, efetivamente, alguma forma de responsabilidade do Estado ou dos agentes que participaram ou que foram seus mandantes políticos”, disse Malvezzi. Ele acredita que o governador de São Paulo à época, Luiz Antônio Fleury Filho, e o então secretário de Segurança Pública, Pedro Franco de Campos, deveriam ser responsabilizados pelo massacre. “Toda a cadeia de comando deveria ter sido envolvida na responsabilização. Não digo criminal, mas de alguma forma de responsabilização, seja na área cível, administrativa ou de alguma forma política”, acrescentou o assessor da pastoral.
Cinco julgamentos ocorreram nesse período. No primeiro deles, em 2001, o coronel da Polícia Militar Ubiratan Guimarães, que comandou a operação no Carandiru, foi condenado a 632 anos de prisão pela morte de 102 dos 111 prisioneiros do complexo penitenciário. A defesa do coronel recorreu da sentença e ela foi revertida, sendo anulada pelo Tribunal de Justiça em 2006.
Os outros julgamentos aconteceram entre os anos de 2013 e 2014. Por ser um processo que envolvia uma grande quantidade de vítimas e de réus, o julgamento foi desmembrado em quatro partes. Ao final delas, 73 policiais foram condenados pelas 111 mortes.
A defesa dos policiais decidiu recorrer ao Tribunal de Justiça de São Paulo, pedindo a anulação dos julgamentos, sob a alegação de que não seria possível individualizar a conduta dos policiais, dizendo se cada um deles efetuou os disparos ou que policiais foram responsáveis pela morte de quais vítimas.
Na última terça-feira (27), três desembargadores da 4ª Câmara Criminal do Tribunal do Júri, responsáveis pelo recurso da defesa dos réus, decidiram anular os julgamentos anteriores entendendo que não há elementos para mostrar quais foram os crimes cometidos por cada um dos agentes. Além da anulação, o presidente da 4ª Câmara, desembargador Ivan Sartori, chegou a pedir a absolvição dos réus em vez da realização de um novo julgamento. Porém, o pedido não foi aceito pelos demais membros do colegiado.
Malvezzi concorda que é muito difícil individualizar as condutas. “É legítimo que a gente questione se há possibilidade de individualizar condutas. A perícia no Brasil é tão frágil que você, de fato, não consegue identificar quem fez os disparos. E dentro de uma perspectiva penal mais garantista, há alguma legitimidade na argumentação, sim, de que você não consegue fazer a individualização da responsabilidade pelo massacre. Por isso, achamos importante a responsabilidade política. Mas o que não se pode é negar que existiu”, argumentou.
Durante o julgamento, o juiz Ivan Sartori chegou a dizer que não houve massacre e que os detentos estavam armados e os policiais agiram em legítima defesa.
O secretário estadual de Justiça e da Defesa da Cidadania Márcio Fernando Elias Rosa, também critica a impunidade dos responsáveis pelas mortes no Carandiru. “A Justiça, depois de 24 anos do ocorrido, não se pronuncia de maneira definitiva e não faz justiça. E digo isso não apenas porque me convenço da necessidade de o Estado e o Poder Judiciário darem uma resposta para aquele terrível episódio, terrível pelo número de vítimas e também pelo número de réus, e depois de 24 anos o processo criminal não teve fim. Os julgamentos ocorreram quando eu exercia a Procuradoria-Geral de Justiça e confesso que me empenhei muito para que eles fossem realizados. O que a sociedade espera que ocorra é uma conclusão, uma elucidação, o fim do processo”, disse.
O procurador-geral de Justiça, Gianpaolo Smanio, disse à Agência Brasil que o Ministério Público pretende recorrer da decisão do Tribunal de Justiça.“Da parte do Ministério Público, não estamos conformados, não aceitamos a decisão e vamos apresentar os recursos competentes para reverter a decisão e manter a condenação, evidentemente.”
O massacre
Na tarde do dia 2 de outubro de 1992, por volta das 14h, a dois dias das eleições municipais, dois detentos brigaram no Pavilhão 9, na Casa de Detenção de São Paulo, complexo penitenciário construído nos anos 1920 no bairro do Carandiru, na zona norte da capital. O complexo era formado por sete pavilhões, cada um com cinco andares. Na época, 7.257 presos viviam no Carandiru, 2.706 deles só no Pavilhão 9, onde estavam encarcerados os réus primários, aqueles que cumpriam sua primeira pena de prisão.
A briga se generalizou, começou uma confusão e os funcionários do complexo tentaram acalmar os ânimos dos detentos e recolhê-los às celas. A Polícia Militar foi chamada para conter a rebelião.
Uma tentativa de negociação com os detentos falhou. O comando policial decidiu entrar no local com metralhadores, fuzis e pistolas.
No livro Estação Carandiru, o médico Drauzio Varela, que trabalhou na Casa de Detenção, narra o que aconteceu com base em relatos de presos. “Passava das três da tarde quando a PM invadiu o Pavilhão 9. O ataque foi desfechado com precisão militar: rápido e letal. A violência da ação não deu chance para defesa.”
Cerca de meia hora depois da entrada da PM, as “metralhadoras silenciaram”, contou o médico. Nesse dia, 111 detentos morreram: 84 deles ainda não tinham respondido a processo e ainda não tinham sido condenados.
A ação dos policiais é considerada um dos mais violentos casos de repressão à rebelião em casas de detenção do país.