Não é novidade para ninguém que o estado do Rio de Janeiro enfrenta hoje a pior crise financeira de sua história, com um déficit fiscal superior a R$ 19 bilhões e arcando com atrasos nos salários de servidores, congelamento de contas, fechamento de unidades hospitalares, precarização da segurança pública e falta de verbas para escolas e universidades estaduais[1]. A saída encontrada pelo governo Pezão está em um termo de compromisso assinado com o governo federal para receber o socorro financeiro da União.
Para que o governo do estado tenha suas dívidas suspensas por três anos e esteja autorizado a receber novos empréstimos, a contrapartida exigida pelo Palácio do Planalto é amarga: a privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), responsável pela coleta e tratamento de água e esgoto para mais de 10 milhões de fluminenses em 64 dos 92 municípios do estado[2]. Essa é condição estabelecida para que o governo do estado receba o primeiro empréstimo de R$ 3,5 bilhões do Tesouro, e os recursos arrecadados com a venda do capital social da empresa serão, a princípio, destinados ao pagamento dos salários atrasados[3].
Convém frisar, portanto, que a privatização da Cedae é motivada estritamente por uma negociata, acordada em caráter emergencial, entre o governo estadual e a União. O objetivo desse processo feito às pressas é tão somente fazer caixa aos cofres públicos fluminenses. Entretanto, apresentar como pretexto o refinanciamento da dívida ativa estadual parece insuficiente para aquietar os ânimos de milhares de servidores, que foram protestar energicamente em frente à Alerj contra a venda da estatal[4].
Assim, os defensores da privatização precisam recorrer a outros argumentos, e o mais manjado deles é a da suposta “ineficiência do setor público”, valendo-se dos problemas reais nos serviços prestados pela companhia para entregá-la de vez ao capital privado. Mas qual será a veracidade dessa tese quando se analisa os resultados e balanços da Cedae em comparação ao das empresas privadas de saneamento?
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que a Cedae é uma companhia superavitária. Mais do que isso, é a única empresa pública lucrativa do estado do Rio. Entre 2011 e 2015, rendeu R$ 1,35 bilhão aos cofres públicos e entregou R$ 68 milhões em dividendos ao governo do estado só em 2016. O repasse será ainda maior neste ano, dado o crescimento do lucro de R$ 248,8 milhões em 2015 para R$ 395 milhões em 2016[5]. A companhia também não recebe repasses do governo estadual, ou seja, não é possível alegar que ela representa uma despesa para o estado[6].
A despeito do papel da empresa na arrecadação estadual, a iniciativa de privatizar a empresa não é recente e faz parte de um contexto mais amplo. Em setembro, o governador interino Francisco Dornelles propôs a inclusão da Cedae no Programa de Parceria de Investimentos (PPI), anunciado pelo governo Temer, que destina projetos de infraestrutura para parcerias público-privadas (PPPs)[7]. A medida previa a divisão do estado do Rio em quatro áreas para exploração dos serviços de água e esgoto por concessionárias privadas, mantendo a Cedae apenas na captação e entrega de água[8]. O plano não só não garantia a melhora na qualidade dos serviços, como também geraria a cobrança de novas tarifas.
No mesmo período, a Casa Civil da Presidência da República apresentou um documento intitulado “Diagnóstico Saneamento”, com propostas de estímulo e de garantias jurídicas à participação privada no setor de saneamento. O relatório, não por acaso, foi elaborado por representantes da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Água e Esgoto (Abcon), a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) a Associação Brasileira dos Engenheiros de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes), Instituto Trata Brasil e o Ministério das Cidades[9]. Convém pontuar que a Sabesp é a maior sociedade de economia mista do setor de saneamento, bem como o Instituto Trata Brasil é um exímio disseminador do ideário neoliberal de gestão privada dos serviços de água e esgoto, já que é patrocinado pela Coca-Cola, Amanco, Braskem, CAB Ambiental e GS Inima Brasil. Por outro lado, universidades e sindicatos não foram ouvidos pelo governo no estudo[10].
Todos esses fatores reforçam a afirmação de que a venda da Cedae não tem relação direta com a estatal e sim com um contexto político maior. Os defensores da privatização tendem a apelar reiteradamente ao argumento da “melhor qualidade do serviço prestado pelo setor privado”. Basta, porém, analisar o atendimento oferecido pelas concessionárias privadas no estado do Rio para ter uma amostra do que estar por vir com a privatização da companhia. Na Região dos Lagos, por exemplo, a população de Cabo Frio enfrenta regularmente a falta de água nas áreas atendidas pela Prolagos[11]. Já a Água de Niterói promoveu, em 2011, uma verdadeira enxurrada de esgoto nas ruas de Ponta d’Areia após uma parede da ETE Toque-Toque se romper[12].
Outro pretexto apresentado pelos liberais é a crítica à tarifa de consumo cobrada pela Cedae aos usuários, entre R$ 3,11 a R$ 3,54 por metro cúbico de água para domicílios[13]. O jornal “O Globo” chegou a publicar um editorial apresentando o atendimento da Águas de Niterói como modelo alternativo, já que a tarifa no município é de R$ 2,94[14]. Entretanto, o que não foi divulgado é que a concessionária privada niteroiense compra e fornece a água produzida pela Cedae[15]! O abastecimento do município vem da Estação de Tratamento Laranjal, em São Gonçalo[16]. Além disso, a privatização torna incerta a existência da tarifa social para moradores de baixa renda.
Assim, fica claro que o processo de venda da Cedae não só corresponde a um projeto político macro, como também não se justifica por critérios técnicos. É importante essa consideração porque o Estado e a grande mídia, advogando interesses corporativos, contrapõem um “viés ideológico” na defesa do serviço público a um presumido “pragmatismo” privatista. Contudo, toda essa mistificação caminha na contramão de 235 cidades que remunicipalizaram a gestão do abastecimento hídrico. Grandes centros urbanos como Paris, Berlim, Buenos Aires, Johannesburgo, Indianópolis e La Paz retomaram a gestão pública da água[17]. Em Berlim, por exemplo, a Prefeitura comprou de volta as ações das duas concessionárias privadas em 2012, após o impopular aumento em 35% das tarifas prestas pelas empresas[18].
Evidentemente, a população sofre com a falta de abastecimento de água e tratamento de esgoto, como em Nova Iguaçu, São João de Meriti, Duque de Caxias e Belford Roxo[19]. Porém, a venda da estatal interromperá o pacote de investimentos de mais de R$ 7 bilhões, do qual metade é destinada ao programa de abastecimento da Baixada e às obras do Novo Guandu[20]. Portanto, ao assumir a Cedae como moeda de troca para empréstimos da União, o governo Pezão pune não só os trabalhadores da empresa por uma crise financeira que não pertence a eles, mas também a todos os fluminenses que desejam serviços de água e esgoto gratuitos. O suposto “pragmatismo” que reveste o pensamento neoliberal reveste, com ares de tecnicidade, a ideologia de quem vê os recursos hídricos como mercadoria.
Fontes:
[1] – http://www.cartacapital.com.br/politica/entenda-a-crise-e-a-revolta-dos-servidores-no-rio-de-janeiro [2] – http://www.cedae.com.br/portals/0/ri_cedae/financeiras/demonstracoes_financeiras/demonstracoes_financeiras_padronizadas/demonstracoesfinanceiras_2015.pdf [3] – http://oglobo.globo.com/rio/pezao-assina-acordo-com-governo-federal-para-suspender-dividas-20827522 [4] – http://oglobo.globo.com/rio/tumulto-marca-manifestacao-em-frente-alerj-20855288 [5] – https://ctbrj.wordpress.com/2017/02/01/muspe-e-comunidades-lanca-manifesto-contra-a-privatizacao-da-cedae/ [6] – http://oglobo.globo.com/rio/governo-do-rio-cogita-privatizar-cedae-para-reforcar-caixa-19122217 [7] – https://www.brasildefato.com.br/2017/01/26/servidores-e-movimentos-populares-se-posicionam-contra-privatizacao-da-cedae-no-rio/ [8] – http://oglobo.globo.com/economia/mais-estados-aderem-privatizacao-de-saneamento-20092088 [9] – http://outraspalavras.net/blog/2016/10/27/como-temer-pretende-privatizar-saneamento/ [10] – http://www.stipdaenit.org.br/artigo_ler.php?id=633 [11] – http://g1.globo.com/rj/regiao-dos-lagos/noticia/2017/01/moradores-protestam-contra-falta-de-agua-em-unamar-em-cabo-frio-rj.html [12] – http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/04/estacao-de-tratamento-de-esgoto-se-rompe-e-deixa-feridos-em-niteroi.html [13] – https://www.cedae.com.br/Portals/0/Estrutura_tarifaria_2016.pdf [14] – http://oglobo.globo.com/opiniao/a-melhor-alternativa-de-privatizacao-da-cedae-19148701 [15] – http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/11/1545444-niteroi-corta-perdas-e-leva-agua-a-100.shtml [16] – http://www.ofluminense.com.br/pt-br/cidades/niter%C3%B3i-e-regi%C3%A3o-podem-sofrer-com-falta-d%E2%80%99%C3%A1gua [17] – http://www.ocafezinho.com/2017/01/13/cedae-rj-e-as-mentiras-que-os-neoliberais-contam-sobre-privatizacao/ [18] – http://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/05/politica/1433533748_741282.html [19] – http://odia.ig.com.br/odiabaixada/2015-05-22/cidades-da-baixada-entre-as-piores-em-saneamento-basico.html [20] – http://oglobo.globo.com/economia/universalizacao-de-agua-esgoto-no-rio-exigira-26-bi-19964317