No último sábado (29) ocorreu, em São Paulo, o evento “Os Muçulmanos e o enfrentamento ao Terrorismo e Radicalismo“, que contou com a presença do aiatolá iraniano Mohsein Araki.
Organizado pelo Centro Islâmico no Brasil, o evento teve a participação de importantes figuras do Brasil e do mundo, que se reuniram para identificar as raízes e propor soluções para enfrentar o terrorismo. Representantes cristãos e oficiais de armas brasileiras também estiveram presentes.
“O terrorismo é um flagelo, é um problema sério. E uma maneira importante de se combater o problema do terrorismo é pela educação, porque a maior parte daqueles que fazem atos de terrorismo de maneira indiscriminada são jovens que de alguma maneira recebem uma formação, ou uma deformação, seja no seio da família ou alguma instituição de seu bairro, na qual se pratica uma filosofia que absolutamente não é comum no Islã”, disse o diplomata paraguaio Alejandro Hamed Franco, ex-Ministro de Relações Exteriores durante o governo de Fernando Lugo.
A fala mais esperada do evento, no entanto, era a do aiatolá Mohsein Araki. Nascido em Najaf, no Iraque, em 1956, o clérigo foi representante em Londres do líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, e atualmente é um dos 88 membros do Conselho dos Especialistas, que elegem o líder do país.
Antecedido pelo discurso firme da Presidente do Conselho Mundial pela Paz, Socorro Gomes, Araki re-afirmou os pontos da brasileira em relação à resistência libanesa, Israel e o imperialismo. “Que culpa tem o Hebollah por resistir a uma invasão?”, questionou a respeito do Líbano. Denunciando o terrorismo na região como a disseminação de falsidades travestidas de Islã, o aiatolá focou seus ataques aos Estados Unidos, dizendo que o país “quer submissão total, não quer que sobre um só povo ou cultura [fora de seu domínio]”.
Enquanto tratava da “perda de direitos por parte da humanidade”, o iraniano atacou o contrato bilionário de armas dos Estados Unidos com o Reino Saudita. Saudou a diversidade entre os povos e especificamente “a diversidade e liberdade religiosa no Brasil”, defendendo a necessidade do intercâmbio entre “pessoas de consciência” para combater o terrorismo e o imperialismo que ele descrevia como origem do primeiro.
Alertou também sobre intentos de dividir a Síria e o Iraque em “bases sectárias”, pregando a unidade nacional. “Meu irmão do Iraque me falava outro dia como antes ninguém perguntava se você era Sunah ou Shia, Árabe ou Curdo, todos eram iraquianos e não se interessavam nisso – isso começou depois da invasão americana”.
Dado que a oposição à sua vinda ao país uniu deputados como o pastor evangélico Magno Malta (PR-ES) e Jean Willys (PSOL-RJ), figuras pró-Israel e uma extensa gama de comentaristas e jornalistas dos grandes meios do país, a Revista Opera buscou entrevistar o aiatolá. O que segue é a íntegra da entrevista, concedida no domingo (30) em um hotel na Zona Norte de São Paulo:
Sabemos que o Sr. é um grande conhecedor da obra do Grande Aiatolá iraquiano Muhammad Baqir al-Sadr¹. E seria interessante, dada a extensão política, social e econômica da obra de Al-Sadr, que o Sr. nos falasse, já que tratou tanto dos valores humanos em sua palestra, no que sua obra pode contribuir do ponto de vista humano.
Infelizmente as obras do Aiatolá Baqir Al-Sadr são muito pouco conhecidas no mundo. Existem algumas traduções de livros sobre Economia e Filosofia, que no entanto não são traduções completas, de toda sua obra. E mesmo assim há outras obras; como a que trata dos princípios da lógica, cuja tradução para o inglês também é incompleta. Os livros de Sua Eminência, o martirizado Muhammad Baqir al-Sadr, são grandes obras, há um livro, por exemplo, “O Banco Sem Juros no Islam” (Al-Bank al-la Ribawi fi al-Islam), mas o livro “Fundamentos Lógicos para o Raciocínio” (Al-Usus al-Mantiqiyyah lil-Istiqra’) é a sua principal obra no sentido da possibilidade de transformar o mundo. Ele fundou uma nova base inicial de lógica para a humanidade.
Infelizmente, o ambiente que domina o mundo é um ambiente de dominação da própria cultura e política, o que faz com que o pensamento do grande al-Sadr não possa ser inserido nas universidades. Existem grandes sábios do Mundo Islâmico, como Morteza Motahari, Muhammad Husayn Tabataba’i, Ruhollah Khomeini… estes nomes talvez sejam desconhecidos para vocês, mas são realmente de grande importância para o Mundo Islâmico. Há algumas teorias que estudamos às vezes, de filósofos ocidentais, que tratam da filosofia islâmica…. mas nós temos muito o que dizer, no campo da Antropologia, das Ciências Humanas. Há esse ambiente geral no mundo ocidental em que se acha que somente eles [o Ocidente] pensam, e que os demais não podem pensar, nem merecem ser estudados. Eu tenho certeza que se as universidades do mundo destacassem o conhecimento dos sábios islâmicos, haveria sem dúvida um grande avanço no mundo todo. Temos muito a dizer no campo das Ciências Humanas, mas infelizmente há muitos que fazem questão de não apoiar a expansão e divulgação destas obras.
Por isso convidamos as universidades de todo mundo, em especial as brasileiras, que têm maior liberdade, a fazer intercâmbios com nossas universidades, e mesmo com as Escolas Islâmicas de Teologia, para que esse conhecimento possa ser expandido. Nós temos no Irã um grande tema, que está sendo discutido, que é o tema da jurisprudência do sistema; este será o principal tema de um grande congresso que ocorrerá no próximo ano, e que tem como foco o pensamento do Grande Sábio Muhammad Baqir al-Sadr, que foi o mentor dessas teses.
Bom, nós falamos um pouco de colonialismo neste momento, do colonialismo cultural; mas quando pensamos em um colonialismo político, propriamente, temos a ascensão de uma série de movimentos no Oriente Médio, principalmente em países árabes, como no Iraque, Líbano, e Iêmen, de movimentos em que existe um protagonismo xiita, que o Hezbollah e o Irã chamam de “Eixo de Resistência”. Por outro lado, a mídia ocidental, porta-vozes ocidentais e alguns elementos também do Mundo Árabe, como o Reino Saudita, atribuem a este Eixo de Resistência uma espécie de “ofensiva iraniana”, ou um movimento de caráter sectário, ou de alguma maneira anti-sunita. O que o Sr. tem a dizer sobre isso?
Certamente é muito claro para todos nós que existe um grupo imperialista que busca lucrar com as crises. Os Estados Unidos as criam, e lucram com elas. Para que uma crise, uma guerra se inicie, é necessário algum motivo; para criar um problema entre o Irã e o Iraque, por exemplo, começaram a chamar os iranianos de “persas”, criaram uma ruptura entre os árabes e os persas, e incentivaram Saddam Hussein, na figura de um árabe, para defender a causa árabe, contra os iranianos. Mesmo o povo árabe sendo tão próximo do Irã, mesmo com o fato de que o povo árabe tenha ótimas relações com o povo iraniano… dentro do Irã nós temos mais de cinco milhões da etnia árabe, que compõem a sociedade e a nação iraniana. A população árabe no Irã é muito maior do que em todos os países do Golfo Pérsico, contando Qatar, Emirados Árabes, Bahrein e Omã. Hoje em dia, um dos maiores e mais importantes cargos no Irã, que é o de Secretário de Segurança Nacional, é ocupado por alguém de origem árabe.
Então depois dessa provocação dos “árabes contra os persas”, se iniciou a provocação no sentido de “sunitas contra xiitas”. Dentro do Iraque, sunitas contra xiitas, e árabes contra curdos; fizeram o mesmo na Síria. Tudo isso é um plano muito bem pensado para dividir e, em seguida, dominar. O Irã, desde o início, afirmou a importância da união de todas as nações, e pediu para que todas as nações se unam por princípios e valores comuns.
E a “culpa” do Irã é o de ser sempre considerado o maior apoiador do povo oprimido palestino. Defender a causa palestina não é defender o Hamas, mas sim o povo palestino – um povo que tinha uma terra, tinha um território, que foi tomado. Os governos da Europa e dos Estados Unidos fizeram um plano, levaram alguns povos para a Palestina, expulsando os palestinos de suas casas, e lá estabeleceram um país que se chama Israel. O único país do mundo que não tem limite de fronteiras é Israel. Que país é este? O único país que não tem um número exato de sua população.
Para que um país seja considerado um país, há três regras, de acordo com as regras das Ciências Políticas: um governo, um povo, e uma terra. Em primeiro lugar; não se sabe qual é a terra, não se sabe quais são as características do povo, de onde vem, e até o momento não se tem uma forma em relação ao governo. Com base nisso, o Irã fez uma proposta para estabelecer a paz e a solução deste problema; essa solução é um referendo, que pode ser feito na Palestina para definir quais deverão ser as características do governo deste país. A ideia é que este referendo fosse supervisionado pela ONU, que nele participasse todos os habitantes originais da Palestina, todos aqueles que já não vivem mais neste país – inclusive os que foram refugiados para os países vizinhos – e que eles escolhessem as características e forma do governo que desejam ter para representá-los. O que ocorre hoje é a dominação de uma terra não pelos donos daquela terra, mas sim por pessoas que vieram de fora.
Neste contexto, qual é o significado político do surgimento de um grupo como o DAESH (“Estado Islâmico”), o que ele implica nesta equação geopolítica?
Os próprios norte-americanos respondem à sua pergunta; o DAESH foi criado por eles. Da mesma forma que a Al-Qaeda foi criada por eles, o Talibã… todos os grupos terroristas foram criados por estas forças. Esses grupos têm apoio teológico, financeiro, logístico e até mesmo político deles, e é desta forma que surgiram. O motivo destas guerras… Iraque e Síria, por exemplo, foram os únicos países que não aceitaram assinar um tratado de paz com Israel, e se mantiveram livres e independentes, sem serem influenciados pelos demais países do Golfo. Depois da derrubada do regime no Iraque, com a mudança de governo, o governo formado em 2003 apoiou a causa palestina e rejeitou o imperialismo na região, e desta forma tivemos três países com fronteiras comuns: Irã, Iraque, Síria e a resistência no Líbano. Estes quatro representam um risco para o imperialismo na região.
Para que pudessem castigar estes países pelo fato de não apoiarem suas investidas na região, criaram estes grupos terroristas. Vocês vejam agora que, assim que a guerra contra o DAESH no Iraque terminou, eles começaram uma outra guerra, criaram uma crise que é a questão da independência do Curdistão no Iraque. Os curdos foram pressionados pelos imperialistas a agir neste sentido, declarando sua independência, porque assim existirá uma crise. A próxima crise na região, depois que o problema do Iraque e da Síria for resolvido, com o terrorismo, será árabes contra curdos. Na própria Turquia, depois da guerra contra o terrorismo acabar, começarão a provocar a guerra étnica entre os turcos e curdos. Nós esperamos que os países e líderes árabes e curdos não caíam nesta intriga, porque certamente isso não será bom para ninguém. É importante que os líderes saibam que quando os Estados Unidos incentivam a independência do Curdistão, não o faz porque gosta deles, mas sim para provocar uma nova guerra.
Podemos encaminhar para a finalização… Gostaria de deixar uma mensagem ao Brasil?
Nós desejamos sucesso e felicidade para o povo brasileiro. Existe uma passagem do Alcorão Sagrado que diz o seguinte: uma boa terra, e um bom senhor. É isto que desejamos para o Brasil e para o seu povo. Progresso, avanço, felicidade e muito sucesso para o povo brasileiro é o que desejamos, e que mantenha seus excelentes laços e relações com o Irã, ambos os povos têm características e interesses em comum, e esperamos que isso sirva para iniciar e expandir relações em diversos campos, político, social, econômico, etc.
Aproveitando e explorando as grandes potências que existem nestes dois países, poderíamos elevar o nível da cooperação no comércio, de três para mais de 20 bilhões de dólares. Creio que exista condições boas para que possamos levar este projeto adiante; fora do aspecto comercial, podemos também trabalhar muito no aspecto científico e de conhecimento. Se abrirmos as portas culturais entre os dois países, sem dúvidas teríamos projetos e manifestações culturais novas e excelentes, representando ambos os países, e certamente se as relações econômicas forem expandidas, as relações políticas também serão melhores.
Só o fato destas duas nações serem vítimas do imperialismo já nos possibilita um encontro. Desejo sucesso e felicidade para vocês. Obrigado!
Obrigado!
Enfim aprendi uma palavra no Brasil, “Obrigado!” [risos]
¹Ayatollah Muhammad Baqir al-Sadr é dos grandes filósofos e acadêmicos do ramo Shia na segunda metade do século XX, com influência mundial entre muçulmanos e principalmente em países como o Iraque, Irã e Líbano. Seu pensamento influencia até hoje não somente os estudiosos da comunidade de clérigos (o caso é que se tratam mais de “acadêmicos do Islã”, especialistas na religião e na sua Jurisprudência, do que propriamente sacerdotes realizadores de serviços espirituais como seriam os padres católicos, por exemplo), mas movimentos políticos em toda região, principalmente os xiitas, a começar especificamente pela própria Revolução Iraniana, o Partido Dawa (que fazia oposição a Saddam Hussein e hoje governa o Iraque) e o Hezbollah. Suas ideias políticas têm coincidências importantes, porém seguem um caminho distinto daquela do Ayatollah Ruhollah Khomeini, líder da Revolução Islâmica no Irã.