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Operação Cadeia Velha: o duro golpe no PMDB do Rio

A hegemonia política do PMDB no Rio de Janeiro se vê, pela primeira vez em décadas, sob ameaça.
por Luiz Matheus | Revista Opera
(Foto: Fernando Frazão/Agênci Brasil)

Terça-feira, manhã de 14 de novembro. Na mais espetacular operação do ano realizada no estado do Rio de Janeiro, a Polícia Federal tenta fechar o cerco a um longevo esquema de corrupção envolvendo políticos e empresários de ônibus. A Operação Cadeia Velha, desdobramento da famigerada Lava Jato no Rio, investiga propinas pagas pelos barões do transporte a deputados estaduais em troca da aprovação de leis favoráveis a seus negócios, como aumento de tarifas e isenções fiscais. Os procuradores pediram a prisão do presidente da Assembleia Legislativa do estado (Alerj), Jorge Picciani, e dos deputados Paulo Melo e Edson Albertassi. Todos do PMDB, partido do presidente de facto Michel Temer e que se perpetua no governo do estado do Rio de Janeiro há quase 20 anos.

Sexta-feira, tarde de 17 de novembro. A Justiça decreta a prisão preventiva dos três deputados dos PMDB, acusados de associação criminosa, lavagem de dinheiro e evasão de divisas, mas submete a decisão à Assembleia Legislativa do estado. Em uma sessão extraordinária, a Assembleia determina a libertação dos parlamentares. No total, 39 deputados voltaram pela soltura dos colegas. Poucas horas depois, os três investigados deixam a prisão e vão para casa.

A decisão do Parlamento de revogar a prisão dos deputados já era esperada. Picciani, Albertassi e Paulo Melo, aliados do governador Luiz Fernando Pezão, contam com o apoio da maioria governista da Casa. Na Assembleia Legislativa, reside o centro do poder político do estado do Rio há décadas. Os governadores vão e vem, mas a maioria parlamentar clientelista permanece.

Porém, pela primeira vez, a velha classe política do Rio enfrenta uma inédita ofensiva judicial contra a corrupção, encabeçada pela Operação Lava Jato. Soma-se à essa conjuntura a gravíssima crise financeira do Rio, com estimativa de déficit fiscal de R$ 20,3 bilhões para 2018, e as medidas de austeridade impostas pelos governos federal e estadual, aprovadas com maioria dos votos na Assembleia Legislativa. O resultado é uma multidão de servidores públicos em revolta não apenas contra seus salários e pensões atrasados, mas contra a desfaçatez das autoridades locais, envolvidas em gordos esquemas de corrupção.

Nesse quadro, é preciso perguntar: como o estado do Rio, que há pouco mais de um ano foi novamente vitrine turística do Brasil para o mundo ao sediar os Jogos Olímpicos, agora assiste a seus mais poderosos parlamentares no noticiário policial, enquanto a população sofre com os maus serviços públicos e a violência? Quais as origens de tal crise política?

Clientelismo à carioca

Qualquer investigação anticorrupção implementada no Rio de Janeiro deve se defrontar com a realidade de uma estrutura de poder historicamente consolidada e capaz de se impor no jogo político. O marco da dinâmica política regional é o intercâmbio de interesses e canais de controle entre a Assembleia Legislativa e o Palácio Guanabara, sede do poder estadual. Partidos políticos de diferentes colorações se alteraram no Executivo, mas se viram obrigados construir alianças e compor maiorias parlamentares. A caneta do Executivo acaba sujeita ao comportamento dos grupos representados na Casa.

Essa rede de trocas de favores entre Legislativo e Executivo do Rio constitui a base do fenômeno político chamado pelos historiadores de chaguismo. A expressão remonta ao governador Chagas Freitas, que comandou o estado no final da ditadura militar (1979-1983), e caracteriza as práticas clientelistas e assistencialistas daquela administração que permanecem entranhadas até hoje na dinâmica política. O chaguismo é marcado pela forma como governantes usam a máquina pública estadual para a cooptação de outras forças políticas, pouco importando as origens ideológicas.

Chagas Freitas se notabilizou pela relação pessoal direta com o eleitorado e setores empresariais, tornando-se credor de fidelidades políticas. Para o cientista político João Batista Damasceno, o principal problema do chaguismo é a hierarquização das relações políticas de acordo com o poder de barganha: “No clientelismo não há programa de governo, nem cidadania, nem direito de exigir do poder público o que é por ele devido. Os direitos são convertidos em dádiva ou moeda de troca”.

Com a derrocada da ditadura militar e a primeira eleição direta para governos estaduais em 1982, o povo do Rio elegeu seu primeiro governador de esquerda, o nacionalista e ex-exilado Leonel Brizola. Apesar de ter uma grande base na Assembleia Legislativa, Brizola sabia que precisava do cacife político da bancada parlamentar clientelista do governo Chagas Freitas, então composta por 16 deputados do PMDB. Assim, ficava claro que o pacto firmado entre Freitas e o Parlamento, incluindo nesse jogo de interesses o PMDB, se perpetuaria nos governos seguintes e formaria uma poderosa rede de corrupção e tráfico de influência.

“Palerj”: o poder nacional do Legislativo do Rio

Na prática, tal rede de poder dentro da Assembleia Legislativa do Rio formava aquilo que o filósofo Renato Janine Ribeiro apelidou ironicamente de “PARLEJ”, ou “Partido da Alerj”. Isto é, independente do partido a qual cada deputado pertença, todos integravam o mesmo bloco fisiológico e corrupto na defesa de seus interesses de compadrio. É como se o Legislativo fosse eternamente controlado por um grande Centrão, sem compromisso com um projeto político regional, seja ligado à direita ou à esquerda. O principal projeto é a micropolítica de atendimento ao varejo das demandas da população e às pressões de outros grupos corporativistas, como o Judiciário.

Ribeiro também ressalta que o Brasil é marcado por um histórico de concentração de poder no Governo Federal, fazendo com que os estados tenham pouca autonomia e que o país seja cada vez “menos federalista e mais unitário”. Assim, as assembleias legislativas estaduais têm menos assuntos para regulamentar sob a forma de lei do que o Congresso Nacional ou as câmaras municipais: “O Congresso legisla sobre praticamente todos os assuntos. As câmaras municipais decidem o plano diretor de seus municípios e podem regular qualquer tema que afete a vida cotidiana. Aos deputados estaduais, pouco resta”.

Entretanto, para o filósofo, a Assembleia Legislativa do Rio é uma exceção: a assembleia com maior presença da população, realiza eventos e dispõe de uma sigla conhecida de todos os habitantes do estado – Alerj. “Nos demais estados do Brasil, a sigla de seus respectivos parlamentos é só para iniciados; já no Rio, todos sabem o que é”, afirma Ribeiro.

Além disso, o Rio de Janeiro tem outra peculiaridade: por ser ex-capital do Brasil, os deputados demonstram pouco caso com os problemas locais e a vocação de priorizar os temas nacionais. “Os políticos sérios de outros estados pensam as questões regionais. No Rio, os políticos sérios só pensam as questões nacionais”, opina o economista Mauro Osório, coordenador do Observatório de Estudos sobre o Rio de Janeiro. Tal mistura entre a ausência de atribuições e a mania de grandeza marcou o exercício de poder do “Palerj”, com clara hegemonia do PMDB ao longo das décadas.

Prisão de Cabral: o primeiro golpe contra o PMDB

Um dos principais artífices desse modelo clientelista deixou as fileiras do Parlamento para ocupar a chefia do Executivo. Do Palerj, surgiu o ex-governador do PMDB Sérgio Cabral (2006-2014), que governou o estado do Rio durante o boom econômico do Brasil na última década e ajudou a trazer as Olimpíadas de 2016 para a capital. Na década de 90, ainda como deputado estadual, Cabral ocupou a presidência da Alerj e usou de sua influência para aprovar os projetos de privatização do patrimônio público estadual durante a fase áurea do neoliberalismo no Brasil.

Durante seu governo, projetos bilionários foram deslanchados, como novas linhas de metrô, o arco rodoviário e a reforma do estádio do Maracanã para a Copa do Mundo de 2014. Como descobriram as investigações da Operação Lava Jato anos depois, todos esses projetos tiveram cobranças de propina por parte do então governador e seus comparsas. Cabral liderou uma organização criminosa que desviou R$ 224 milhões em contratos de infraestrutura de construtoras com o governo estadual. Em novembro de 2016, o ex-governador – já sem mandato e, portanto, sem o foro privilegiado – e sua mulher Adriana Ancelmo foram presos acusados de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

A prisão do ex-governador, agora sentenciado a 72 anos de prisão, representou um golpe inédito nos pilares do poder do PMDB no Rio. Apesar disso, seus principais aliados nos poderes Executivo e Legislativo tentam manter a força política de seu partido nas instituições. Nesse contexto, o atual presidente da Alerj, Jorge Picciani, é um quadro fundamental para a hegemonia do partido.

Pecuarista com investimentos na reprodução assistida de gado, Picciani se tornou um dos principais representantes políticos do PMDB no Brasil. É pai do colega deputado estadual Rafael Picciani e do ministro dos Esportes do governo Temer, Leonardo Picciani. No âmbito legislativo do Rio, é Jorge Picciani quem comanda as relações com variadas instituições e é o fiador dos acordos que mantêm o controle de uma base suprapartidária que dificulta a emergência de opositores, como afirma o jornalista Cristian Klein.

No controle do sistema político-administrativo do Rio pelo PMDB, Picciani é um dos patronos da aliança do Poder público com empresários que fizeram fortunas em contratos com o Estado. Além das grandes construtoras, o caso mais simbólico é o da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor), sindicato patronal das concessionárias privadas de ônibus, conhecidas por prestarem um péssimo serviço à população. As passagens caras chegaram a motivar uma onda inédita de protestos que repercutiu por todo o Brasil em defesa da mobilidade urbana e de melhores serviços públicos em junho de 2013.

No caso específico do Rio, é de notório conhecimento que a Fetranspor, presidida pelo empresário Jacob Barata Filho – conhecido como “o Rei do Ônibus” –, sempre manteve uma relação promíscua com as autoridades do Estado. A famosa “caixinha da Fetranspor”, isto é, as propinas pagas pelas concessionárias a políticos em troca de vantagens como reajustes injustificados de tarifas, foi finalmente revelada com a Operação Ponto Final, em que a força-tarefa da Polícia Federal prendeu temporariamente Barata Filho e outros empresários.

A operação mostrou que as empresas de transporte pagaram mais de R$ 260 milhões em suborno a agentes públicos. A Fetranspor se valia de um “banco paralelo”, que operava livre do controle público das atividades bancárias, para depositar as propinas, e usava carros blindados para carregar o dinheiro. A ação da Polícia Federal à “máfia dos transportes” foi uma avant-première do próximo duro golpe aos tentáculos de poder do PMDB: a Operação Cadeia Velha.

A cúpula do PMDB presa (e solta)

A hegemonia política do PMDB se vê, pela primeira vez em décadas, sob ameaça. O governo de Luiz Fernando Pezão – ex-vice-governador de Sérgio Cabral e eleito seu sucessor em 2014 – enfrenta a queda brusca do preço do barril de petróleo no mercado internacional, que fez com que o estado perdesse arrecadação de R$ 1 bilhão em royalties. A desindustrialização nacional também fez com que o Rio fosse proporcionalmente mais atingido que o resto do Brasil, fazendo com que o governo tivesse uma arrecadação incompatível com suas despesas.

A agência internacional de risco Standard & Poor’s rebaixou o Rio como o pior estado do Brasil em grau de investimento. Às vésperas das Olimpíadas de 2016, o governo decretou estado de calamidade pública, alegando incapacidade de arcar com suas obrigações financeiras. Protestos massivos de servidores públicos de categorias como educação, saúde e justiça, foram reprimidos com bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta.

Para reequilibrar as finanças, Pezão propôs um pacote de medidas de austeridade radicais, incluindo o aumento da contribuição previdenciária de 11% para 14%, corte em programas sociais e congelamento de aumentos salariais até 2020. Também assinou o duro Plano de Recuperação Fiscal com governo Temer, visando a suspensão do pagamento da dívida do Rio com a União de R$ 29,6 bilhões em três anos e a autorização para fazer novos empréstimos de até R$ 3,5 bilhões. Em troca, o Rio deveria privatizar a Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE), na contramão da tendência das metrópoles mundiais, que reestatizaram o serviço de abastecimento.

Tal conjuntura caótica fez com que o PMDB perdesse o pouco de legitimidade política que restava entre a população. Na capital o governo Pezão conta hoje com míseros 3% de aprovação popular. A mudança na correlação de forças explica o aprofundamento das investigações do Ministério Público e da Polícia Federal nos casos de corrupção no estado. A investida contra a classe política do Rio e nas suas relações corruptas com o empresariado teria algum efeito “higiênico”.

Meses depois de a Polícia Federal ter promovido uma faxina no Tribunal de Contas do Estado, que teve cinco dos seus sete conselheiros presos por corrupção, o governador Pezão indicou seu líder do governo na Assembleia Legislativa, o deputado do PMDB Edson Albertassi, para a presidência do órgão. De acordo com a Constituição estadual, o governador deveria indicar um auditor de carreira para o Tribunal de Contas, e não um aliado político.

Essa escandalosa nomeação política foi um sinal para a Polícia Federal começar a agir. Os órgãos deflagram a Operação Cadeia Velha, que apura o uso da presidência da Assembleia Legislativa para a prática de corrupção, associação criminosa, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Os procuradores pediram a prisão de Edson Albertassi, do ex-presidente da Alerj, Paulo Melo, e do todo-poderoso presidente da Alerj, Jorge Picciani. A polícia também cumpriu mandado de prisão contra Felipe Picciani, filho do Jorge Picciani, e outras dez pessoas.

Os deputados são acusados de receberem pagamentos mensais da Fetranspor para aprovarem projetos favoráveis aos interesses dos empresários de ônibus. Segundo o Ministério Público, entre 2010 e 2015, foram pagos da conta da Fetranspor para Picciani R$ 58,58 milhões, e para Paulo Melo R$ 54,3 milhões. Albertassi recebia R$ 60 mil até maio de 2017. Detalhes exclusivos da investigação foram revelados com a delação premiada do ex-presidente da Fetranspor, Marcelo Traça.

Dois dias depois, os desembargadores federais do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) decidiram por unanimidade pela prisão preventiva de Jorge Picciani, Paulo Melo e Albertassi. “Essas pessoas precisam, lamentavelmente, ser afastadas do convívio da comunidade”, argumentou o juiz Azulay Neto. O tribunal, no entanto, teve de submeter a decisão a um território em que os acusados tinham amplo domínio: o Plenário da Assembleia Legislativa, que precisaria ratificar as prisões.

Em uma sessão extraordinária a portas fechadas, marcada pela repressão policial ao movimento de servidores públicos do lado de fora, os deputados libertaram Picciani, Paulo Melo e Albertassi, alegando que a Constituição só prevê a prisão de parlamentares em caso de crime inafiançável em flagrante. A oposição dos partidos de esquerda, como PT e PSOL, foi derrotada por uma larga margem de 39 a 18 votos.

Mais uma vez, ficava claro que a Assembleia Legislativa do Rio permanecia em uma dinâmica corporativista, oriunda do fenômeno político do chaguismo e que mantêm as redes de clientelismo como marco de poder. A lógica do “Partido da Alerj”, mesmo defrontada com as inéditas ações policiais contra sua cúpula e a revolta social iminente, mantém raízes tão profundas na cultura política do estado do Rio de Janeiro.

 

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