O deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) causou uma grande comoção contra si em 2016 ao visitar Israel, se posicionando contra o movimento de boicote BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) e levantando a bandeira do sionismo. Agressivo, o deputado ainda atacou o movimento de solidariedade à Palestina, se voltando contra setores do próprio partido. A revolta foi maior quando o deputado igualou a oposição ao sionismo com o antissemitismo.
Na segunda semana de fevereiro de 2018, Wyllys voltou a causar polêmica se insurgindo contra uma nota da executiva de seu partido, escrevendo mais uma defesa pública do sionismo.
Muitos explicaram a situação com a arrogância e individualismo exacerbados do deputado. De fato, Jean Wyllys não se importou em ouvir lideranças antigas e orgânicas do movimento de solidariedade à Palestina no Brasil, expôs suas conclusões como óbvias e atacou os outros de forma virulenta. Com o ego amaciado pelos anfitriões e patrocinadores sionistas, Jean defenderia com unhas e dentes sua posição em nome de seu orgulho – ataques contra o deputado só reforçariam essa tendência.
Outros, mais atentos, apontaram que o problema ultrapassa os limites das qualidades ou da extensão do ego do deputado. Os argumentos de Wyllys não só espelhavam a cartilha sionista, mas correspondiam a agenda do liberalismo internacional. A questão estaria além dos problemas da Palestina.
Sempre tive uma grande preocupação em ajustar intelectualmente minhas posições – uma obsessão por consumir leitura e informação, na qual o alinhamento intelectual é parte do processo de construção do caráter. Quando me questiono se isso tem algum sentido, olho para desastres como Jean Wyllys e me recordo de uma frase de um autor conservador, que dizia que um erro intelectual pode levar a uma falha moral – ou, nesse caso, a uma falha política.
Das planícies palestinas às estepes da Ucrânia
Se o deputado está tão somente cometendo erros, é fato que o acúmulo de erros intelectuais de Jean Wyllys leva ele a um erro maior. É uma bola de neve que começa a dar cara para o mandato do deputado, que além de tudo é figura pública e referência política fora do Congresso.
Jean Wyllys até pouco tempo estava na Comissão de Relações Exteriores e Defesa da Câmara (CREDN), portanto suas posições internacionais, ao contrário do que pode parecer, são de primeira importância. No final do ano de 2017, o deputado Wyllys estava presente em uma sessão da comissão em que o relator Claudio Cajado (DEM) fez fala e deu parecer positivo à execução do Acordo de Cooperação Técnico e Militar Brasil – Ucrânia.¹
A Ucrânia é um país que afundou na guerra civil depois da derrubada do presidente Viktor Yanukovich. O governo ucraniano sofre com acusações de bombardeios e abusos cometidos contra o próprio povo no leste do país. No restante do país, enquanto alguns partidos ligados a ideologias de esquerda ou pautas de pluralismo nacional são banidos, grupos ultra-nacionalistas e neofascistas atuam livremente. Desde o final de 2015, até os aliados europeus da Ucrânia vêm tentando conter a militarização do governo em prol do desengajamento e das negociações multilaterais.
Quem requisitou o processo relativo a este acordo foi o deputado ucraniano Viktor Romaniuk, da Comissão de Relações Exteriores da Rada (parlamento) de seu país. Romaniuk é do partido “Frente Popular”, casa de alguns dos setores mais radicais da direita ucraniana, ligados ao fascismo e à repressão. É o favorito dos “batalhões voluntários”: grupo paramilitares formados por militantes neofascistas (às vezes por simples criminosos), reconhecidos como batalhões punitivos. O partido até têm uma comissão militar formada pelos comandantes desses grupos, dentre eles dois muito notáveis por seus crimes no leste do país (Dnipro-1 e Aidar) e o Batalhão Myrotvorets, envolvido no assassinato de jornalistas, e que ameaça esse que vos escreve – os líderes dos três batalhões são deputados na Rada ucraniana. Andrei Biletsky, líder do infame Batalhão Azov e do partido que em inglês se identifica como “National Corps” (designação paramilitar) – todas essas organizações, como Biletsky (que é deputado), professam abertamente o neonazismo. Um dos fundadores do partido, Avakov, foi ministro do interior e colocou um subcomandante do Batalhão Azov para chefiar a polícia de Kiev.
Peço desculpas ao leitor pelo volume de informações, este artigo não é sobre Ucrânia: o importante é que Jean Wyllys não fez sequer uma observação sobre isso. Não houve protesto, pedido de reconsideração ou sequer um comentário público. E se fosse um acordo de cooperação técnico militar com a Venezuela? E se fosse um acordo de cooperação militar com os palestinos, com os iranianos?
O Brasil já fornece bombas que os sauditas usam para massacrar civis no Iêmen, vítima do maior desastre humanitário de 2017 (dias depois na mesma Comissão, o relator Cajado deu parecer positivo a acordo de cooperação técnica com o governo do Iêmen sustentado pelos sauditas).
O deputado ucraniano está atuando segundo a agenda do seu partido e do governo de prosseguir as ações de guerra no leste do país e evitar o isolamento em seus intercâmbios militares. Não é nada diferente da estratégia israelense de evitar o próprio isolamento. Os israelenses estão entre os primeiros a auxiliar o governo ucraniano na sua guerra contra o leste do país e é possível ver uma semelhança com o modelo de cerco aplicado contra a Faixa de Gaza. No Brasil nós também já tivemos a incorporação dos métodos repressivos de Israel; agora temos um novo acordo com outro país dedicado à repressão e a guerra interna.
Jean Wyllys nunca falou sobre nada disso. A única vez em que falou de Ucrânia, declarou que seu “olhar sobre o episódio é mais humanitário e menos preocupado com a geopolítica”. Que ironia – o “olhar humanitário” de Jean Wyllys passou batido para o neofascismo, para o Massacre de Odessa, para os bombardeios. O tal episódio referido era a derrubada do avião MH17 da Malaysia Airlines. O deputado questionava:
“o fato de haver especialistas em HIV/AIDS a bordo do avião terá sido uma mera coincidência ou pode apontar para uma outra explicação sobre o abatimento da aeronave numa região da fronteira entre dois países conservadores?”
Ou seja, a preocupação dele era cavar um “ataque homofóbico” na tragédia, exemplificando um oportunismo ad hoc. “Olhar humanitário” desinteressado nas populações do leste da Ucrânia e dos territórios ocupados da Palestina, “olhar humanitário” que nas suas versões mais Clintonianas oferece uma atenção racista a esses povos que mereceriam ser massacrados devido a seu “conservadorismo religioso, machista e homofóbico”.
Dois presos, duas medidas
Quando o brasileiro Jonatan Diniz foi preso na Venezuela, o deputado Jean Wyllys rapidamente se mobilizou e foi a público, inclusive fez fala no Congresso e atacou a postura do Itamaraty. Diniz havia saído dos Estados Unidos e se dirigido à Venezuela supostamente para atuar em nome de sua ONG humanitária. O deputado declarou:
“Como membro da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados e também do Parlamento do Mercosul, além de atuar junto a organismos internacionais pelo pleno cumprimento dos tratados internacionais sobre direitos humanos, estou acompanhando o caso e é meu dever me posicionar publicamente, ainda que diante da mais absoluta ausência de informações.”
Exigiu “plena transparência” e aproveitou para repetir um dos seus discursos favoritos de denúncia contra a Venezuela, rechaçando o governo venezuelano por uma postura “autoritária e antidemocrática”, defendendo os direitos da oposição daquele país.
No fim das contas o brasileiro foi solto e tudo ficou esclarecido como um stunt de publicidade de alguém que só queria chamar atenção. Não existia ONG estruturada.
Jean Wyllys ficou exposto ao ridículo, mas mais do que isso: os seus atos e sua hipocrisia se escancararam.
O deputado ignorou o caso do brasileiro preso na Ucrânia, Rafael Lusvarghi. A Revista Opera foi o primeiro veículo a publicar informações exclusivas sobre a prisão do brasileiro e como ela se deu em uma armadilha. Posteriormente, até a Rede Globo exibiu o caso no programa Fantástico, exibindo imagens de Rafael com metade do rosto desfigurado por torturas. A prisão do brasileiro foi injusta e ilegal, violando acordos internacionais e executada por um serviço preenchido por neofascistas (o SBU). No cárcere Rafael foi ameaçado de morte e em carta repassada por seu advogado foram expostas denúncias contra a inatividade do Itamaraty e do serviço diplomático, sofrimento compartilhado por seus familiares no Brasil. Passou meses em condição incerta e até agora sua situação não é transparente.
[button color=”” size=”” type=”” target=”_blank” link=”https://revistaopera.operamundi.uol.com.br/2017/05/02/em-carta-ex-combatente-rafael-lusvarghi-denuncia-torturas-na-ucrania-e-diz-que-itamaraty-nao-faz-nada/”]Leia também: Em carta, ex-combatente Rafael Lusvarghi denuncia torturas na Ucrânia e diz que Itamaraty “não faz nada”[/button]
O deputado campeão dos direitos humanos não se interessou pelo caso do brasileiro, tão pouco aproveitou para denunciar práticas “autoritárias e antidemocráticas” do governo ucraniano e seu aparato de repressão. Não tinha interesse: o caso de Jonatan Diniz era muito melhor, pois permitia o sr. Wyllys brilhar com suas opiniões e tensionar o governo venezuelano.
A cidade sagrada e terra prometida
A visita de Jean Wyllys a Israel não causou indignação pela visita oficial somente, mas porque o deputado violou um ponto nevrálgico do boicote ao participar de um evento em uma universidade israelense em Jerusalém. Jerusalém é um dos pontos de tensão da ocupação israelense, visto que o governo israelense reivindica a cidade como capital do país, a despeito dos acordos internacionais identificarem Jerusalém Oriental como capital de um Estado palestino.
A cidade é conhecida por episódios de controle, repressão e radicalismo judaico (tanto religioso como sionista). Países poderosos como os europeus exigem que Jerusalém seja tratada como cidade internacional e essa questão é fonte de uma série de problemas diplomáticos para Israel.
Para compensar o isolamento internacional e as denúncias contra suas ações de guerra, Israel adota uma estratégia de propaganda e cooptação. O país tenta limpar sua imagem e desafia os movimentos de boicote convidando grandes personalidades para visitar o país, vender uma narrativa específica para atender grupos de interesse e legitimar o sionismo. Buscar esses porta-vozes é mais efetivo do que simplesmente comprar espaço na mídia, por isso é necessário ir em diversos espectros com diferentes pacotes (um pacote para LGBTs, outro para evangélicos, etc). O nome disso é soft power, uma projeção do país através da ideologia e da influência não-violenta. O soft power complementa e protege a execução de políticas de hard power, de guerra, que Israel usa contra os palestinos e outros estados da região (como a Síria e o Líbano).
É do interesse do sionismo e do governo de Israel que um deputado estrangeiro faça uma atividade de alto valor estratégico como participar de um evento acadêmico em Jerusalém. As particularidades do discursos do deputado, como sua oposição ao atual gabinete ou a defesa de um solução de dois Estados, são um pequeno custo a pagar pelo o que em última instância justifica a presença sionista nos territórios ocupados.
Mais importante, a visita foi realizada em um momento de preparação para uma nova reivindicação total e unilateral de Jerusalém pelo governo israelense, reivindicação anunciada pelo chefe de governo em tons messiânicos. A atitude acompanha a nova política de Trump para o Oriente Médio.
A irresponsabilidade de Jean Wyllys se estende a um problema interno do Brasil. O anúncio israelense e o reconhecimento de Donald Trump à decisão ufanizou diversos setores da direita brasileira, especialmente aqueles mais virulentos, ultraconservadores e fundamentalistas neopentecostais.
Páginas fundamentalistas brasileiras comemoraram e fizeram referências religiosas para justificar o ato, conclamando o governo brasileiro a reconhecer a pseudo-capital. O que eles estão dizendo basicamente é que não importam os acordos internacionais, não importam regras, resoluções, não importam os procedimentos de paz na região.
Da mesma maneira, repetirão no Brasil o mote “Bíblia sim, Constituição não”. Vão passar por cima de qualquer convenção civil ou republicana, se possível vão contornar a lei. Vão impor candidaturas religiosas.
A consciência e a ideologia se adaptam em função do debate, que é internacional. Simbolicamente, Jair Bolsonaro começou o seu processo presidencial indo a Jerusalém para ser batizado pelo Pastor Everaldo. Israel é uma referência para os cultistas da repressão no Brasil, que anseiam por aplicar métodos de repressão, militarização e isolamento que são aplicados na Palestina contra fatias da população brasileira (fatias de pobreza com maioria negra e especialmente no contexto carioca, com fortes demarcações territoriais). Uma reflexão sobre racismo perceberá como esse modelo pode contribuir para políticas genocidas e supremacistas – é muito estranho que um deputado que se posiciona como antirracista no estado do Rio de Janeiro visite terras ocupadas e ao invés de ver estes riscos se contenta em justificar os conquistadores.
O deputado foi para Jerusalém numa afronta pública e direta aos movimentos de solidariedade a Palestina. Ele realmente posicionou os seus atos como um desafio; no mesmo período ocorriam ofensivas de colonos sionistas em território ocupado. Jean Wyllys fez repetidos ataques contra Estados vizinhos e o movimento nacional palestino com as etiquetas mais comuns da mídia corporativa e do ocidentalismo. Colocou o “terrorismo” e o “atraso” dos árabes frente uma “modernidade democrática” do sionismo. Essa falta de sofisticação é um reforço ao campo neoconservador. O partido da repressão adora se referir ao “terrorismo” para reforçar a própria identidade e defender suas medidas.
A questão internacional é importante
Um grande diplomata brasileiro lamenta² que no Brasil os políticos dão pouca atenção a política externa. Eles pensam ainda no país como um país fraco, subordinado, dependente, quase uma colônia. Não podemos resolver os problemas de nosso país sem uma concepção da nossa posição do mundo; mais do que isso, a ausência de pensamento internacional nos condenará ao caos e à dissolução.
Quando o governo Lula tinha Amorim na chancelaria o Brasil ampliou sua relevância internacional com a inserção consequente do país nas questões do Terceiro Mundo. Fomos mediadores importantes no Oriente Médio, atuando dentro das limitações causadas por nosso sistema político e nossa dependência externa.
As posições do deputado Jean Wyllys, por mais erráticas que sejam, possuem coesão programática. Se o deputado Jean as assume pelo seu famigerado egoísmo e arrogância incomparável, temos uma demonstração do perigo que esse tipo representa e prova de irresponsabilidade com o mandato.
O discurso do deputado não responde só ao soft power israelense. É do interesse dos Estados Unidos que o Brasil não se afirme e não reforce posições diversas no campo internacional, que se mantenha submisso e que quando se posicione seja de maneira alinhada com a política deles, como Jean Wyllys faz repetidamente. A vulnerabilidade ideológica externa condiciona a formação das nossas elites, nossa política externa e nosso rumo de desenvolvimento – é o que permite o enfraquecimento do nosso Estado. O deputado que toma as posições de acordo com essa pauta pré-definida não faz mal só para os outros países, mas também para o próprio Brasil. Wyllys esboça o que é uma defesa de um sistema de condomínio hegemônico liderado pelos Estados Unidos.
“O sistema de condomínio hegemonial, para obter reconhecimento e legitimidade internacional, exige que a Potência líder projete a imagem de uma democracia perfeita, que promove os direitos civis e humanos, e os defende no mundo de forma imparcial; de ser o sistema econômico mais dinâmico e mais honesto do mundo; (…) de ser um país generoso (…); de ser uma sociedade progressista, liberal e humana, aberta a crítica e a divergência. São essas características da imagem do centro que permitem às elites cooptadas dos países periféricos controlar e conduzir os seus sistemas políticos altamente assimétricos e de grande potencial explosivo e cooperar com os objetivos do condomínio em busca de um ‘mundo melhor’.”²
Repetidamente Wyllys e sua famosa assessoria de comunicação reproduzem um discurso liberal e globalista, sem originalidade. Essa é a coroa ideológica de uma dominação muito concreta. Já até fizeram homenagens simbólicas aos Estados Unidos relativizando ideias como “imperialismo”, ridicularizando os críticos e fechando os olhos de muita gente de boa-fé para uma história mundial de intervencionismo.
O parlamentar pode ter uma atividade progressista e até nobre em certos campos, porém o seu vínculo com pautas setoriais não pode desculpar essa postura, muito menos intimidar as críticas. A importância do deputado só reforça o dano e a irresponsabilidade de suas posições. Essa preocupação está relacionada com a superação das mazelas de nosso país, mazelas de uma população imersa na pobreza que não serão resolvidas com as pautas setoriais, por grupos de interesse ou parlamentarismo mesquinho.
O PSOL deveria usar os seus mandatos para defender um país independente, pois isso é um caminho para a superação dos problemas que o PSOL diz combater em primeiro lugar. Entretanto, nada faz de consistente e é refém do poder eleitoral do deputado.
Talvez seja excesso de otimismo de minha parte esperar isto do PSOL que, ainda que solidário com a Palestina, em outros momentos reproduz a agenda internacional hegemônica. O exemplo ucraniano é mais uma vez sintomático: dirigentes e páginas partidárias somente louvaram a “revolução ucraniana”, sem mencionar a coalizão de fascistas com liberais e sem mencionar o envolvimento norte-americano (agora exposto em documentário de Oliver Stone) – apesar de toda a pose internacionalista pelos povos do mundo, contra a opressão e pelos direitos humanos, os acontecimentos posteriores foram tratados com o silêncio.
Nem todo internacionalismo é bom. E que o PSOL aprenda a “lição Jean Wyllys”: não existe silêncio ruim que não possa ser quebrado por declarações piores.
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¹Vide sessões: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/credn/videoArquivo?codSessao=71845&codReuniao=50584#videoTitulo
13/12/2017
http://www.camara.leg.br/internet/ordemdodia/integras/1632866.htm
Dentre outros registros das atividades da Comissão.
²Samuel Pinheiros Guimarães, “Reflexões Sul-Americanas” prefácio a MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto em “Brasil. Argentina e Estados Unidos – CONFLITO E INTEGRAÇÃO NA AMÉRICA DO SUL (Da Tríplice Aliança ao Mercosul)”, editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2010. pgs. 18-19 e 32. Serve também como referência para as posições do texto.