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Carta no coturno – Anatomia da intervenção no Rio

No xadrez da intervenção no Rio de Janeiro, Michel Temer não é rei; é peão.
por Pedro Marin | Revista Opera
(Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil)

O que segue é a primeira parte da série de artigos “Carta no Coturno.” Leia aqui a segunda parte, terceira parte, quarta parte, quinta parte.


Em uma audiência na Câmara dos Deputados, em julho do ano passado, o Comandante do Exército Brasileiro, General Villas Bôas, declarou, sobre a participação das Forças Armadas nas ações na Favela da Maré, no Rio de Janeiro: “Reconheço como positivo o governo estar repensando esse tipo de emprego das Forças Armadas, porque ele é inócuo e, para nós, é constrangedor.”

Desde o início da intervenção no Rio de Janeiro, em fevereiro passado, se tem pensado muito sobre o papel das Forças Armadas no cenário político nacional. As teses são variadas. Para uns a intervenção foi uma resposta a uma suposta mobilização política crescente durante o carnaval – essa tese, apesar de absurda* e já descartada, chegou inclusive à imprensa internacional. Para outros, a ideia era abafar o constrangimento que veio com a falta de apoio à Reforma da Previdência. Houve ainda uma outra tese, mais próxima da realidade: a de que a intervenção tinha como objetivo lograr um aumento de popularidade para as próximas eleições, seja por meio de uma melhora aparente e passageira na questão da violência urbana ou pela impressão de que Temer não tem receios de tomar atitudes duras contra a criminalidade no Rio de Janeiro.

Em uma matéria da Piauí intitulada “Mal-estar na caserna”, o jornalista Fabio Victor detalha alguns bastidores da intervenção no Rio. Há alguns pontos que tiveram muita atenção dos agitadores, mas pouca dos analistas. Muita gritaria, pouca observação.

Quando do início da intervenção, antes de se reunir com Temer, o interventor Walter Souza Braga Netto teve de responder a jornalistas se a crise do Rio era muito grave. Acenou negativamente com o dedo, dizendo: “Muita mídia.” O Alto Comando do Exército avaliou que o comportamento da mídia na cobertura da “violência” no Carnaval, em especial da Rede Globo, foi decisivo para o governo decretar a intervenção. Segundo a Secretaria de Segurança Pública, no entanto, os índices de violência durante o Carnaval se mantiveram estáveis em relação aos anos anteriores, com a maioria deles caindo.

Sabemos, portanto, que a intervenção teve sua origem “na mídia”, em especial no Projac, e que o alarde não tinha razão de ser. Fica a pergunta: a Globo deu a linha a Temer, ou serviu de suporte a ele?

Primeiro ato

Voltemos ao passado recente. No dia 17 de maio de 2017, às 19h30, o colunista d’O Globo, Lauro Jardim, publicou com exclusividade as denúncias de Joesley Batista contra Temer. Às 20h30, elas eram destaque no Jornal Nacional. A “notícia bombástica”, como o âncora William Bonner a chamou, serviu a duros ataques contra Temer, que ocuparam mais de 18 minutos do noticiário. No dia seguinte, a Globo seguiu batendo duro, mas Temer foi desviando até desferir seus socos em pronunciamento, trocando o “tem que manter isso” pelo “não renunciarei.” Nesta altura, muitos já davam como certa a derrubada de Temer, e a Globo seguia na peleja, publicando o editorial “A Renúncia do Presidente” no dia 19.

Tal foi a sanha da Rede Globo contra Temer que uma verdadeira ruptura entre o Grupo Globo, de um lado, e o Estadão e Folha, de outro, foi se desenhando; a primeira de tocha em mãos, os outros apagando incêndios. Explicou-se a caça da Globo da seguinte forma: a JBS é uma importante anunciante no grupo. Assim, a JBS daria a linha à Globo, e não o contrário. Tese estúpida, é claro, considerando que um mês antes o grupo de comunicação dava jabs e diretos na empresa, durante a Operação Carne Fraca. A Globo, portanto, era quem dava a linha abertamente contra o presidente: a ordem era derrubá-lo e, por eleições indiretas ou não, conseguir uma figura mais palatável, com maior legitimidade e sem as cicatrizes do golpe para levar a cabo seu projeto econômico – que incluía a Reforma da Previdência, agora provisoriamente enterrada.

Segundo ato

Em 17 de setembro do ano passado o General Eduardo Villas Bôas fez uma aparição inesperada no “Conversa com Bial“, da Rede Globo. Lá, explicou as declarações de seu subordinado, general Hamilton Mourão, que na semana anterior havia falado em “intervenção militar” caso as instituições não “resolvessem o problema político”. Na Globo, apesar de perguntas mais ou menos duras de Bial, foi construída a imagem de um general erudito, sensível e em contato com os verdadeiros anseios do povo. O fato de não ter se posicionado de maneira enfática em relação às declarações de Mourão passou sem maiores problemas.

Terceiro ato

Voltemos aos coturnos. Os generais do Alto Comando, quando da intervenção, reprovavam a ideia de Temer. Diz Fabio Victor em sua matéria: “o tom entre […] o Alto Comando foi de reprovação à intervenção em si e ao modo apressado e atabalhoado com que a medida acabou sendo imposta. O plano lhes parecia um festival de improvisos.” A isso se soma a indisposição em geral dos militares em lidar com esse tipo de ação, por motivo simples: ela é inócua, porque o crime no Rio de Janeiro opera sob a lógica da guerra irregular, enquanto o Exército é, por definição, uma entidade regular. Assim, a inevitável falha do Exército, a longo prazo, se torna uma mancha em sua reputação. Ainda assim, o Comando requisitou a Temer mais recursos para a intervenção, e medidas adicionais ao decreto: mandados coletivos de busca e apreensão e regras mais flexíveis para a tropa, entre as quais a permissão para atirar em civis com “intenção hostil.”

Como alguém pode ser contra a intervenção e, ao mesmo tempo, ser radical ao ponto de postular a quebra de garantias asseguradas pela Constituição para levá-la a cabo? – Da mesma maneira que muitos desses generais, entre os quais destaco o senhor Villas Bôas, se dizem democratas mas defendem 1964 e atacam a Comissão da Verdade. Não se trata de hipocrisia, nem de delírio – é que entendem que, para um lado ou para o outro, a mobilização deve ser total, La Guerre Totale. São militares, afinal. O caminho, para estes, importa menos do que como se caminha por ele.

Assim, Temer e Etchegoyen (que também é militar) desenharam um plano mal-feito até para os militares, que não queriam embarcar nele, sem ao menos conceder a estes suas reivindicações. Os militares, contrariados, tiveram de aceitar. Me parece improvável que se trate de um plano reservado de Temer: 1) É óbvio que a intervenção no Rio não se deu em resposta à “mobilização política no Carnaval” ou ao desfile da Tuiuti. Tenhamos dimensão das coisas. 2) Me parece improvável que a intervenção tenha uma ligação direta com a Reforma da Previdência. Temer já declarou que “foi até onde pôde”. Neste semana, o relator da proposta, Arthur Maia, disse que a Reforma pode ser “ainda mais dura” em um próximo governo, eleito. 3) Por fim, apostar na intervenção para revertar uma reprovação de 93% me parece uma ingenuidade desmesurada para um vice-decorativo que efetivamente galgou a presidência.

Lembremos de Braga Netto acanhado e confuso: “Muita mídia.” As elites, até o momento, têm preferência pelas aparências democráticas. Afinal, fizeram questão de levar a cabo todas as movimentações que culminaram no impeachment de Dilma Roussef e na tomada da presidência por Temer sob o manto institucional e legal. Porque parecem começar a recorrer à via autoritária? Porque assim tem ela na manga – ou no coturno. Vão preparando o terreno para o caso de algo dar errado nas eleições, ou, mais provavelmente, após elas. Se por um lado o próximo presidente terá o manto da legitimidade a seu favor, que lhe dará alguma janela de tempo para atuar no começo de seu mandato, por outro terá de aplicar um programa impopular. Hora ou outra o cipó de aroeira voltará no lombo de quem mandou dar.

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* É bom compreender como as leituras tortas da realidade se constroem. Nesse caso, que é cada vez mais comum na esquerda, o componente fundamental do erro é a pressa, somada à vontade de dizer algo, não importando sua relevância – normalmente, pelo prêmio da atenção. Assim, não se procuram os elementos mais adequados ou mais prováveis para explicar um acontecimento, mas os mais próximos. Se houvesse chovido na quarta-feira de cinzas, era capaz que encontrássemos por aí teses sobre Temer querendo tomar os céus de São Pedro. De qualquer forma, quem não tem empenho e dedicação na leitura da realidade também não os terá quando se trata de mudá-la.

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