Sergei Skripal e sua filha foram envenenados por um agente nervoso em 4 de março, no banco de um parque em Salisbury, na Inglaterra. Skripal foi um agente duplo russo, um espião que entregou 300 nomes de espiões russos à inteligência britânica entre 1995 e 2004. Ele foi (não tão surpreendentemente) preso na Rússia em 2004 e condenado a 13 anos de prisão. Ele foi libertado em uma troca de espiões em 2010, estabeleceu-se no Reino Unido e se tornou cidadão britânico.
Não vejo razão para julgar seu caráter moral, embora alguns possam refletir que, em termos gerais kantianos, o que ele fez foi bastante ruim (precisamente, do mesmo modo que seria ruim para um cidadão britânico se tornar agente duplo da Rússia.) Agentes duplos são frequentemente punidos de forma severa; este é o caminho do mundo.
Skripal não representava mais ameaça ao Estado russo. Há, pelo menos, um relato de que ele recentemente tentou retornar à Rússia. É difícil compreender por que, neste momento, Moscou o envenenaria e sua filha jovem, vinda da Rússia, com um agente nervoso (Novichok) criado na URSS na década de 1970, mas posteriormente banido e destruído sob supervisão internacional. Cui bono? Quem lucra com esses envenenamentos?
A respeito de toda a indignação sobre esse ataque, expressa na Inglaterra e em outros lugares, há poucas análises precisas. O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, afirmou: “Isso é um absurdo. Isso não tem nada a ver conosco”. O grupo de agentes nervosos de tipo militar chamado Novichok foi descrito na literatura acadêmica de tal forma que muitos atores diferentes poderiam produzi-lo. Os russos alegam que destruíram seus estoques há muito tempo e sugerem que a República Tcheca pode ter sido a fonte da substância utilizada.
Porém, esse ataque a Skripal e a sua filha de 33 anos (por alguém) é muito útil para aqueles que querem difamar Vladimir Putin, assim como o uso de armas químicas na Síria em abril de 2017 (por alguém) foi útil para aqueles que queriam também vilificar Bashar al-Assad e justificar um ataque com mísseis dos EUA. Você já percebeu que vivemos em uma era de desinformação constante; desinformação e “fake news”?
O mais irritante é que, uma vez postuladas essas relações causais não comprovadas – abraçadas por diretores de notícias a cabo de tal forma que elas se tornam a verdade –, a discussão se concentra apenas em como os EUA e seus aliados deveriam responder. Por que, dizem os especialistas, Trump não levantou a questão em sua última conversa com Putin? Por que o líder do Partido Trabalhista britânico, Jeremy Corbyn, está cético com relação à ligação desse acontecimento com a Rússia, sugerindo que o Novichok poderia ser de propriedade da máfia do Leste Europeu? Por que ninguém embarca na conclusão óbvia de que a Rússia fez isso?
O que significaria: Putin – não enfrentando qualquer ameaça desse ex-espião ou sua inocente filha – ordenou a morte deles, não porque eles o ameaçassem, mas sim para manifestar sua profunda crueldade e maldade ao mundo e sua disposição em provocar cada vez mais sanções contra a Rússia. Não faz muito sentido.
Putin é ex-KGB. Muito racional e calmo. Ele sabe tudo sobre agentes e agentes duplos. Eu duvido que ele seja moralmente crítico; ele entende por que as pessoas fazem o que Skripal fez. Ele fez um acordo para a libertação do homem oito anos atrás. Sua única motivação para matá-lo neste momento seria punir Skripal por pecados passados e advertir outros a nunca venderem seus segredos. Porém, por que uma pessoa tão racional se exporia à indignação global, utilizando um agente proibido para tentar assassinar um cidadão britânico e sua filha russa sem nenhuma razão convincente?
Existem procedimentos legais internacionais para investigar acusações de uso de armas químicas. A Rússia pediu à Inglaterra para acompanhá-los, fornecendo provas, amostras, detalhes. Insiste na adesão às regras estabelecidas pela Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ) para estabelecer os fatos. No entanto, Londres anunciou apenas que reconhece Putin como responsável pelo o que aconteceu com os dois no banco do parque.
Portanto, a grande narrativa agora inclui: invasões russas da Geórgia em 2008 e da Ucrânia em 2014 (de alguma forma, tornando-se no processo “adversários” dos EUA); alegadas “ameaças” contra os Estados bálticos; múltiplos assassinatos políticos; controle ditatorial da política, economia e mídia russa; o acúmulo de bilhões em fortuna ilícita. Para não falar da exposição impertinente de seu peito nu aos seus fãs, seu judô, sua caça e seus índices de aprovação irritantemente altos.
Não sei quem atacou esses dois que agora lutam por suas vidas no hospital, mas sei que a resposta não significa nada de bom para a Rússia ou o mundo. É apenas mais um curto capítulo da nova Guerra Fria e, como a velha guerra, é basicamente irracional. Qual são as razões de Putin? Fareed Zakaria diz que ele está tentando “minar as democracias”, embora o porquê alguém gostaria de fazer isso, em princípio, me intriga. Putin não é o Coringa de Heath Ledger no filme Batman, o Cavaleiros das Trevas, apenas espalhando o caos por vontade própria.
Putin não está interessado em liderar um movimento europeu em direção a nacionalismos isolacionistas, mas sim em frustrar os planos de expansão da OTAN, algo que qualquer líder russo racional gostaria de fazer. Usar o estranho incidente de Skripal como justificativa para mais confrontos do tipo da Guerra Fria é mais do que triste. Todavia, em uma suposta demonstração de solidariedade com a Inglaterra, que expulsou diplomatas russos em resposta, os EUA expulsaram subitamente 60 diplomatas russos e fecharam o consulado russo em Seattle. Trump, sob constantes críticas por não criticar Putin e por não ter mencionado a interferência eleitoral ou o caso de Skripal em seu recente telefonema, aprovou a medida sem comentar o assunto.
Se Trump planejou a melhora das relações com a Rússia como uma marca de sua presidência, ele foi frustrado pela insistência de seus inimigos para que expressasse a hostilidade tradicional. Por quê, eles continuam perguntando, quando Trump critica os membros de seu próprio gabinete, ele nunca fala mal de Putin? E, a partir daí, chegam à conclusão de que os russos têm coisas sobre Trump e estão chantageando-o para não serem hostis ao modo padrão.
Trump é um homem ignorante, intelectualmente desinteressado no mundo, incapaz de investir tempo em leitura, sem noção do contexto histórico das crises atuais. Parte de sua persona candidata era a oposição às recentes guerras americanas (não tanto porque elas mataram centenas de milhares de pessoas, mas porque foram caras e não resultaram na tomada de petróleo pelos EUA). Contudo, ele ama homens de uniforme, envolve-se com eles, confia neles. Estes são homens que cresceram durante a Guerra Fria e não conseguem se livrar dela em suas mentes. Cuidando de quem eles certamente veem (como McMaster) como um “débil mental”, “idiota”, “droga”, sua incumbência mínima é a responsabilidade de lembrá-lo que a Rússia é uma adversária.
E assim, sem sequer averiguar os fatos do incidente de Skripal, Washington expulsa todos esses diplomatas. Os especialistas televisivos o aplaudem: “absolutamente a coisa certa a fazer, para defender os valores ocidentais”, etc. O sistema consegue manter e até fortalecer a mentalidade russófoba da Guerra Fria. O incidente de Skripal foi uma bênção para os críticos de Trump, que o querem, com sua cabeça infantil, abraçando essa mentalidade. Temos que apoiar Theresa May na Inglaterra, dizem eles. Esse foi o primeiro uso ofensivo de um agente nervoso na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, disseram eles; é muito, muito sério. Um ataque russo ao Reino Unido.
Quem administrou esse agente nervoso deflagrou uma onda de sanções contra a Rússia, somando-se às já impostas após o golpe de 2014 na Ucrânia e a resposta russa. A Rússia responderá proporcionalmente. Quem fez isso obrigou Trump a endurecer sua linha política contra a Rússia. Enquanto sua presidência oscila nos ventos do escândalo, ele está propenso a movimentos mais loucos, como a nomeação de John Bolton. A única graça salvadora de Trump em sua campanha foi sua defesa de melhores laços com a Rússia. Imediatamente após a sua eleição, isto se tornou sua principal falha. Os especialistas exigem que ele abandone qualquer esperança de relações cordiais com a Rússia de Putin e o denuncie devidamente por múltiplos crimes.
Talvez seja isso que está à venda. Trump é imprevisível. Ele concorda em se encontrar com Kim Jong-un e nomeia Bolton (defensor da guerra com a Coreia do Norte, removido das negociações com a RPDC depois que Pyongyang o chamou de “escória humana”) como assessor de Segurança Nacional. E por que seguir esse cordial chamado a Putin após a expulsão de tantos diplomatas? O que é isso? Não faz sentido.
Se Hillary tivesse vencido, provavelmente teria encontrado alguma lógica e previsibilidade em seu mal. Com Trump, o mal se desdobra erraticamente. Ele lança um MOAB no Afeganistão (ou seus generais o fizeram, sem necessariamente o consultar). Ele bombardeia uma base do Exército sírio em resposta a um ataque não comprovado de gás sarin. Seus membros do gabinete o contradizem, defendendo a verdade evangélica de que a Rússia e seus aliados, como a Síria, são ameaças à segurança nacional dos EUA, seja lá o que for. Sente-se que, à medida que sua situação pessoal se deteriora, o presidente estará mais propenso a se apoiar em seus generais e a ouvir seus conselhos, ao mesmo tempo em que presta atenção no terrível Bolton. Essa é uma situação muito prejudicial.