O que segue é parte de uma entrevista concedida por Angelica Lovatto a Pedro Marin. A entrevista integral consta no livro “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016”, escrito por Pedro Marin. Já é possível adquirir exemplares na Livraria da Opera.
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Pedro Marin: Uma pergunta: há uma leitura crítica não só em relação à esquerda pré-1964, mas que é muito comum que se ouça em universidades, no Ensino Médio, que diz que havia uma esquerda radical, que reivindicava a revolução armada, e uma “outra esquerda”, que era democrática e bonitinha, e que esses últimos estavam certos, porque eles que venceram a ditadura. Eu queria que você falasse um pouco disso, dessa ideia de que a abertura foi uma vitória das esquerdas, e não um pacto.
Angelica Lovatto: Entendo que foi um grande pacto, e não uma vitória das esquerdas. Analisar como uma vitória das esquerdas já é uma vitória do pacto. E é essa tese que é difícil de combater, Pedro! E é difícil porque ela é dessa esquerda não-marxista, pós-moderna, identitária, contra a centralidade do trabalho e que, na revisão historiográfica da Escola de Sociologia Paulista, foi vencedora. E produziu teoria do populismo, teoria da dependência, teoria da marginalidade e teoria do autoritarismo. Eu fico mais na crítica ao desenvolvimento das duas primeiras porque elas têm dois ícones expoentes e absolutamente vitoriosos em toda a historiografia que analisou o pós-1964 e inclusive seus livros didáticos, ensinando que 1964 foi um colapso do populismo por todo o país. A abertura de 1979 é a auto-reforma planejada, a transição transada, como diria o Florestan, da própria ditadura como projeto nacional-desenvolvimentista vitorioso, que se “completa” com as eleições indiretas de 1984. E é claro que naquele momento a anistia foi ampla, geral e irrestrita, com a finalidade explícita de não punir os militares. Senão é bem provável que ainda demorasse muito para a esquerda exilada voltar ao país. Mas compreender, não é aceitar: é ver o limite da correlação de forças daquele momento. Ali em 1979 não há, ainda, a conciliação de classes, mas um acordo da esquerda para voltar ao país. E é claro que só foi nesse momento pela força das greves, senão poderia ter sido ainda mais tarde. E então vem o paradoxo: quando a esquerda vai se rearticular no Brasil, o faz negando a centralidade do trabalho – é aí que falo dos anos 1980. Vem a teoria do autonomismo, o PT com um grupo maior que o do autonomismo, que é a linha majoritária dentro do PT, essa linha também muito ligada à influência dos intelectuais uspianos. É esta a formação teórica que o Lula vai ter. Eles vão começar a realizar, com a força que o PT tem no movimento sindical e mesmo no movimento do campo (que surgirá nessa época também), as centrais, tudo o que está acontecendo em 1979, como aquela maravilhosa greve geral. Isso tudo vai caminhar, como já disse, para 1985 como uma transição mais transada ainda que vai desembocar no Tancredo. As “Diretas Já!”, no palco aqui na Sé [a entrevista se deu no prédio da Unesp, na Praça da Sé]. No dia seguinte da derrotas das diretas-já, não houve nenhuma reação, porque era uma luta politicista, não eram mais as greves de 1979 e 1980. Você tem ali o Sarney, que era o vice do General Figueiredo, no PDS, que era a antiga Arena, e ocorre essa transição transada, com a vitória dessa conciliação. Quando o PT muda a estratégia para um aspecto mais eleitoral, fazendo um discurso para as classes médias, a partir de 1992, ele já está seguindo o processo de conciliação de classes. E como ele vai negociar com a burguesia? Propondo um projeto chamado de neodesenvolvimentista, e fazendo a objetiva dimensão dos ganhos do rentismo de todas as frações burguesas do país, especialmente a financeira. O Lula não disse à toa, que em seu governo foi quando os banqueiros mais ganharam. Isso foi uma realidade objetiva. Para isso houve, sutilmente, um desestímulo ao fortalecimento do movimento operário, das centrais sindicais e dos movimentos sociais, sob aquele argumento de que estávamos com um governo de esquerda e para isso não seriam necessárias greves ou ocupações na profusão anterior. Que isso seria jogar “água no moinho da direita”. Como se o “governo” de esquerda tivesse sido a tomada do “Estado” pela esquerda. Mas não era isso. Era um governo de esquerda, num Estado burguês. Essa “confusão simples” fez toda a diferença para quem na esquerda queria outro projeto. É o coroamento de um momento muito solitário na esquerda. Porque ser crítico contra o governo Lula em 2002, ou contra o segundo governo Lula, ou o primeiro governo Dilma, e mesmo na hora em que ela está caindo no impeachment, era criticado como posição que jogava “água no moinho da direita.” E atualmente também, dizer que o lulismo e o petismo se esgotaram, é voltar a “jogar água no moinho da direita.” Indicar que o movimento sindical perdeu vitalidade durante os governos petistas, também era jogar água nesse moinho, etc etc. Mas tem uma diferença: o fim dos doze ou treze anos do petismo no governo trouxe uma expectativa importante, um chão social que não víamos há muito tempo, ou seja, a possibilidade de pensar para além do petismo. Enquanto o petismo não fosse derrotado… e eu falo isso sem nenhuma satisfação, evidente que não gostaria de ter visto o impeachment da Dilma, mas também não gostaria de ver o que ela fez no governo, como deflagração de medidas antiterroristas, ajuste fiscal severo, nomeação do Joaquim Levi, expansão da fronteira agrícola, como nunca antes nesse país havia sido feito. Foi um golpe? Foi um golpe. Parlamentar, de novo tipo. Foi. Porém, mais do que um golpe, foi o esgotamento da política de conciliação de classes! Essa é a tese que defendemos hoje, no grupo em que nos articulamos em torno da proposta de um programa para a Revolução Brasileira.