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Lutz Taufer: “Parecia que a RAF era algo que cresceu num verão e ninguém sabia o porquê”

Em entrevista à Opera, o ex-membro da Fração do Exército Vermelho (RAF), Lutz Taufer, fala de sua trajetória e de suas memórias recém-publicadas no Brasil.
por Pedro Marin | Revista Opera

No ano de seu nascimento seu pai foi convocado para a Volkssturm, milícia hitlerista formada por civis para conter o avanço do Exército Vermelho e das forças aliadas. Acabou por se jogar de um trem em movimento, em outubro de 1944, para, com o auto-flagelo, ser considerado incapaz e voltar aos braços de sua mulher, à época cuidando do rebento a quem deu o nome de Lutz Taufer.

No momento em que o nazismo era derrubado e Hitler passava de Führer a nada mais que um cadáver hediondo, Taufer tinha apenas um ano de idade. Vinte e seis anos depois, combateria os fantasmas vivos que o nazismo deixara na Alemanha “democrática”, como um membro da Fração do Exército Vermelho (Rote Armee Fraktion).

Aos recém-completados 31 anos de idade, em 24 de abril de 1975, Lutz se lançou enfim à ação pela qual se tornaria conhecido: o sequestro à Embaixada alemã em Estocolmo. Realizado pelo Comando Holger Meins (Kommando Holger Meins), o ato tinha como objetivo a libertação de presos políticos da RAF na Alemanha.

“Nós nos dividimos em três grupos e, ao meio-dia do dia vinte e quatro de abril de 1975, forçamos por meio do uso de armas o acesso ao terceiro andar da embaixada, normalmente proibido. Mal havíamos nos entrincheirado com onze reféns no terceiro andar, a polícia sueca invadiu o prédio e subiu a escadaria”, conta Lutz no livro de memórias que acaba de lançar no Brasil, “Atravessando Fronteiras – Da guerrilha urbana na Alemanha ao trabalho comunitário nas favelas brasileiras.” (Autonomia Literária, 2018)

O sequestro acabou em quatro mortes; duas delas de funcionários da Embaixada, as outras duas de Siegfried Hausner e Ulrich Wessel, membros da RAF. Nenhum preso foi libertado, mas a embaixada foi aos ares pela explosão de quinze quilos de TNT colocados no prédio pelo grupo. Pela ação, Taufer foi condenado à prisão perpétua, sendo libertado 20 anos depois, em 1995. A essa altura, tinha 51 anos. “Dos 20 anos na cadeia, passei 17 anos em regime de isolamento, fiquei dez anos num departamento de segurança máxima. Participei em doze greves de fome, a mais longe de 9 semanas. Quase faleci. Fui libertado em 1995. Visitei os amigos Tupamaros no Uruguai, que me tinham visitado nos últimos anos na cadeia. Fui para o Brasil. Quando cheguei a primeira vez na praia de Ipanema, pensei: Isto é o contraste máximo com o departamento de segurança máxima”, conta o ex-guerrilheiro em entrevista exclusiva à Revista Opera, realizada por e-mail, que segue.

***

Pedro Marin: Quero começar dando-lhe a oportunidade de limpar a mesa da história – e, de certa maneira, estou com o espanador em mãos também. Existem muitas críticas à atuação da RAF, à direita e à esquerda, e queria que você comentasse estas: primeiro, a crítica ao que se chama de terrorismo. Creio que você também tenha críticas aos métodos do grupo neste aspecto, mas é comum que muitos ex-membros nos relembrem do contexto da época – a Guerra do Vietnã, nazistas na Alemanha “democrática”, o assassinato de Benno Ohnesorg e o atentado contra Rudi Dutschke. Karl-Heinz Dellwo e Gabriele Rollnik são um exemplo. Como você lida com essa pecha, de “terrorista cruel”? Tem gente por aí que os compara até com os nazistas, dizendo coisas como “se tivessem nascido na geração anterior seriam generais da SS”.

Lutz Taufer: Sim, nas últimas décadas, muito bobagem e muito infâmias foram espalhadas na mídia na Alemanha sobre a RAF. Parecia que a RAF era algo que cresceu num gramado de verão florescente e ninguém sabia o porquê. Assim, um debate crítico sobre a RAF nao foi possível. Para facilitar tal debate escrevi as minhas memórias. O livro foi lançado no mês de abril de 2017 na Alemanha, um ano mais tarde a editora já tinha que produzir a segunda tiragem. Na feira dos livros de 2017 em Frankfurt o livro foi premiado. A edição brasileira foi publicada faz umas semanas, em Paraty.

Contei a história e os acontecimentos de sete, oito décadas, interligados com a minha história individual e os meus caminhos pessoais. Falei sobre as alturas e os abismos dessa época e dessa vida, sobre a nossa resistência contra o genocídio no Vietnã, sobre a luta armada dos Tupamaros no Uruguai, sobre o nosso medo e as nossas conclusões prematuras de que o fascismo poderia voltar na Alemanha – e sobre o assalto à embaixada alemã em Estocolmo e o assassinato de dois reféns, um crime pelo qual sou corresponsável. No final falo sobre o meu trabalho em comunidades carentes em São Gonçalo/RJ, uma ampla e valiosa experiência que liberou a minha cabeça e o meu coração para poder narrar a minha, a nossa história.

Pedro Marin: Agora quero falar de uma outra crítica, mais recorrente na esquerda: a crítica do foquismo. Muita gente diz hoje – eu sempre gosto de ressaltar que o fazem de confortáveis poltronas, não sob dura repressão – que o foquismo era um erro estratégico na luta de classes, que a RAF estava fadada ao fracasso, que era uma linha infantil. Como a RAF lidava com essa questão na época, e como você lida hoje? Porque entendo que havia naquela época uma ansiedade muito grande decorrente de um imobilismo sufocante da esquerda. “Alle reden vom Wetter. Wir nicht.” (Todos falam do clima. Nós não; slogan da Ferrovia Federal Alemã posteriormente apropriado para os cartazes da União de Estudantes Socialistas da Alemanha – SDS)

Lutz Taufer: Um dos pontos de partida do foquismo aconteceu no ano de 1956, na Guatemala, onde o governo estadounidense realizou um golpe violento contra o governo de Arbenz. O Che, que passou naquela época um tempo nesse país, viu um partido comunista que se sentia vinculado à coexistência pacífica limitar-se ao papel de observador em vez de organizar a resistência armada. Outra raíz do foquismo era o beco sem saída no qual os partidos comunistas da III° internacional se perderam. Quando, em 1964, um emissário do partido comunista brasileiro voltou de Moscou confirmando o que pouco antes o Kruschev tinha falado sobre Stálin, Marighella chorou sobre os crimes que foram cometidos em nome do socialismo.

“Todos falam do clima. Nós não.”

Nós, na Alemanha, refletimos e discutimos a questão porque, no ano de 1933, quando Hitler foi eleito chefe do governo, o movimento operário mais forte do mundo, que foi naquela época na Alemanha, poderia ser destroçado dentro de uns poucos dias. Na época do chamado centralismo-democrático, os nazistas só tinham de prender o Comitê Central  para paralisar o partido e a base operária. Em 1967 o movimento estudantil na Alemanha realizou em Berlim o Congresso de Vietnã. Participaram delegações vindo de 40 países. 1967 era uma revolta internacional. Sob o grande palco era fixado um banner enorme com um slogan do Fidel Castro: “O dever de qualquer revolucionário é fazer a revolução“. Aos olhos do Partido Comunista era uma heresia imperdoável.

O movimento de 68 na Alemanha se chamou também Movimento Antiautoritário porque o caráter autoritário era a base do nazismo. A escola de Frankfurt lançou várias pesquisas investigando o caráter autoritário. Assim a nossa busca incluía uma busca na área de comportamentos, das relações interpessoais, da alienação, do autoempoderamento. Especialmente na Alemanha, a luta politica e a luta cultural andaram de mãos dadas. Na RAF houve, entre outros, o slogan: “O individuo é o grupo“.

Pedro Marin: Agora que tiramos a poeira do passado da mesa, gostaria que falasse mais sobre você. Qual foi sua trajetória? Como entrou para a RAF?

Lutz Taufer: Nasci, em 1944, numa cidade no sul da Alemanha. Os meus pais não eram nazistas. Tentaram manter uma distância, o que foi privilegiado pela data de nascimento do meu pai; velho demais para lutar como soldado. Tivemos dois tipos de professores no colégio: mais novos e mais velhos. Os mais novos às vezes eram não-convencionais, os mais velhos muitos vezes marcados pela vida nazista e a pelas experiências na guerra.

O problema não era só o fato de serem nazistas, mas também o fato de continuarem sendo nazistas no seu comportamento cotidiano. Num País desses não queríamos nos fixar. Experimentamos, agimos, buscamos novos terrenos. Entrei no movimento estudantil depois do assassinato de Benno Ohnesorg em 02/06/1967. Participei em manifestações militantes. Nos meados do ano de 1970 entrei no Sozialistisches Patientenkollektiv. Um ano mais tarde o grupo foi destroçado pela polícia. Para mim, o motivo decisivo para continuar esse caminho foi o apoio do governo do Willy Brandt ao genocídio no Vietnã. Os presos do SPK e da RAF lutaram com greves de fome contra o regime de isolamento total, uma “tortura branca”, sob a qual estiveram submetidos.

Criamos em várias cidades Comitês contra a Tortura de Isolamento. Eu fui integrante do Comitê de Heidelberg. Apoiamos os presos com inúmeras atividades para estabelecer visibilidade pública. Na terceiro greve de fome no final do ano de 1974, um preso politico da RAF, o Holger Meins, faleceu. Nós queríamos liberar os presos. Quem eram nós? Seis companheiros dos Comitês contra a Tortura de Isolamento que se juntaram num Kommando Holger Meins. Preparamos o assalto armado à embaixada alemã em Estocolmo. Ocupamos a embaixada, exigimos a libertação de presos políticos, matamos dois reféns e dois do Kommando perderam a vida. Fui condenado à perpétua. Dos 20 anos na cadeia, passei 17 anos em regime de isolamento, fiquei dez anos num departamento de segurança máxima. Participei em doze greves de fome, a mais longe de 9 semanas. Quase faleci. Fui libertado em 1995. Visitei os amigos Tupamaros no Uruguai, que me tinham visitado nos últimos anos na cadeia. Fui para o Brasil. Quando cheguei a primeira vez na praia de Ipanema, pensei: Isto é o contraste máximo com o departamento de segurança máxima. Trabalhei dez anos como cooperador em comunidades carentes em São Gonçalo/RJ. Realizamos cursos profissionalizantes, cooperativas, abrimos uma agência de emprego, trabalhamos com jovens, com economia solidária e o teatro do oprimido. Em 2012 voltei para a Alemanha.

Pedro Marin: Eu gostaria que você falasse sobre o Sozialistisches Patientenkollektiv (Coletivo de Pacientes Socialistas). Essa experiência é bastante desconhecida no Brasil.

Lutz Taufer: Naquela época, as instituições, especialmente as instituições públicas, em grande parte, estiveram marcadas pelas práticas e pela mentalidade nazista. A Ulrike Meinhof, a Gudrun Ensslin e o Andreas Baader, por exemplo, lutaram na área dos reformatórios. a Ulrike produziu um filme, “Bambule”, sobre o assunto. Na minha cidade, a cidade de Heidelberg, houve uma revolta numa clínica universitário de psiquiatria. A partir dessa revolta se formou um grupo de pacientes junto com o médico Wolfgang Huber. O grupo desenvolveu uma ideia de doença cujo ponto de partida não é um déficit individual e pessoal, mas as consequências do trabalho e vida no mundo capitalista. Em suma: um sintoma é um protesto do organismo contra condições insuportáveis do trabalho e da vida, mas um protesto que se dirige contra o próprio organismo. Portanto o protesto deve ser dirigido contra as condições e o sistema que provocam a doença. Um exemplo é o burn out. Um outro exemplo atualmente debatido é a sentença de um juiz estadounidense contra a empresa Monsanto por ter causado um cancêr letal pelo herbicida Glyphosat.

Ulrike Meinhof, Andreas Baader e Gudrun Ensslin; fundadores da RAF.

Muitas conquistas do SPK então difamadas na mídia hoje são comuns na terapia, por exemplo uma hierarquia nivelada na equipe medicinal, uma equipe multi-profissional, a orientação para a comunidade ou terapeutas leigos. Em 1978, uma Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde em Alma-Ata aprovou a Declaração de Alma-Ata. Nessa declaração se diz, entre outros: “É direito e dever dos povos participar individual e coletivamente no planejamento e na execução de seus cuidados de saúde.“

O Sistema Único de Saude (SUS) brasileiro está orientado nessa declaração. Pelo menos na teoria. Na prática muitas vezes acontece o contrário. Naquela época, a psiquiatria muitas vezes foi marcada por um pensamento e por convicções que ainda não estavam rompidas com a eutanásia.

Pedro Marin: Eu cheguei a ler uma matéria para o Welt, da Alemanha, assinada por Alan Posener, em que ele faz duras críticas ao SPK. O coletivo foi muito orientado pela dialética hegeliana, essa matéria por exemplo diz que “a teoria do SPK tinha tanto valor como a de uma criança”; sugerindo que, do ponto de vista da psicanálise ou da terapia, o grupo não era grande coisa. Como você vê isso?

Lutz Taufer: Debater sobre o SPK com base em uma matéria do jornal die “Welt“ seria a mesma coisa de debater sobre o MTST com base em uma matéria do jornal O Globo. Eu acho que um jornalista deve respeitar os princípios de objetividade no seu trabalho. As palavras citadas fazem parte de uma de duas resenhas negativas e polêmicas sobre o documentário “SPK Komplex“ que foi exibido no Festival de Filmes de Berlim em 2017. Todas as seis sessões foram esgotadas, a última ocorreu no maior cinema de Berlim. Além dessas duas polêmicas negativas houve mais de 50 resenhas positivas, algumas até entusiasmadas. Encontram-se no site da editora Salzgeber.

Pedro Marin: Qual era a relação do SPK com a RAF? Porque muitos, como você, deixam o SPK e vão para a RAF.

Lutz Taufer: Não havia relação. Participaram no SPK em volta de 270 pessoas. No final entraram na RAF 10 pessoas. Mas dessas 10 pessoas uma parte delas entraram na RAF uns anos depois do fim do SPK. No meu caso foram quase 4 anos.

Pedro Marin: Me parece que a RAF tinha uma concepção muito forte de “dar o exemplo”, de ser a vanguarda. Isso é interessante porque em 1968 a ideia de vanguarda começa a ser rejeitada veemente na esquerda europeia, que rejeitava o socialismo real. Vocês de certa maneira também eram orfãos críticos do socialismo real, eram críticos inclusive da concepção de centralismo democrático. Porque não debandaram para as teorias autonomistas, pro pacifismo ou para as chamadas “teorias pós-modernas”?

Lutz Taufer: Já falei sobre esse assunto acima. Na RAF não houve uma determinação precisa sobre essa questão. Ao lado de elementos de democracia de base houve desenvolvimentos autoritários. A partir de 1970 alguns dos sucessores de 68 implantaram estruturas bem autoritárias, especialmente os maoístas. Propagaram a ditadura do proletariado, como por exemplo o Alan Posener no KPD/AO (Partido Comunista da Alemanhã – Estrutura Organizacional). Mas o nosso erro foi um erro “leninista”. Achamos que poderíamos destruir o capitalismo com violência. Mas o problema da esquerda dos últimos 150 anos é que nunca conseguimos desenvolver e oferecer um modelo econômico e social que seja mais convincente (e que funcionasse) que o capitalismo. Um início poderiam ser projetos de economia solidária, cooperativas, etc. Faz muitos anos e temos que notar que as grandes expectativas que tivemos com os “movimentos de libertação ao poder” eram falsas. A liderança, por exemplo na Nicarágua ou em Angola não tem nada a ver com libertação. A partir disso temos que incluir em nossas buscas o desenvolvimento de uma nova relação de democracia de base e liderança. Sem democracia de base não haverá criatividade e emancipação, e sem liderança só haverá bagunça.

Pedro Marin: No geral se separa a RAF em três gerações. O que as diferencia?

Lutz Taufer: Nada. Essa coisa das gerações da RAF é um produto da Polícia Federal e da mídia.

Pedro Marin: Você narra no livro seu trabalho nas favelas brasileiras. Já que os reacionários nos fizeram limpar a poeira do passado, vamos ver quão limpos eles são: Você viveu a experiência de ser um guerrilheiro da RAF, viveu aqueles anos de dura repressão, viu Benno Ohnesorg, Vietnã e Dutschke. O Brasil é perverso o suficiente para gestar uma RAF? Isto é; vê paralelos com o que vivem os jovens nas favelas brasileiras com o que viveu naquela Alemanha, por exemplo?

Lutz Taufer: Para mim a tragédia nas favelas nas quais trabalhei de 2002 até 2012 não era a pobreza em si ou o vácuo cultural, mas o fato de que em cada favela há jovens inteligentes, que querem construir uma vida melhor, mas não têm chance de concluir sequer o 2° grau. A “luta armada” nas favelas cariocas já existe faz muitas décadas. O Brasil encontra-se numa guerra civil não-declarada. Graças à política das UPPs, em uma certa favela onde trabalhei antigamente e onde fiz, faz duas semanas, um lançamento do meu livro, hoje há três facções em vez de uma.

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