Teremos de compreender a dimensão da batalha que se apresenta. Alguns muitos acabam de despertar de um longo sono, e dizem que o fascismo bate às portas. Estão corretos, mas o que ouvem hoje são os ecos de dois anos atrás. Olharam à sua volta e logo identificaram sua face: Jair Messias Bolsonaro. Esperançosos e iludidos, como sempre, receitam logo o remédio: votar em massa em Fernando Haddad, fazer “trabalho de base”[1] nas periferias para eleger Haddad, confiar cegamente na eleição de Haddad, pensar em “táticas novas” para eleger Haddad, eleger Haddad, combater o fascismo, eleger Haddad.
Mas cabe perguntar, a partir do remédio receitado, qual afinal é a doença que se busca combater. Bolsonaro é um tumor que cresceu vertiginosamente nos últimos anos, ou uma mosca que, voando e voando, desgraçadamente pousou em terras brasileiras? O “fascismo” que se denuncia é um movimento que tomou forma e buscou um representante, ou trata-se de um representante fascista liderando uma massa disforme? Afinal, é possível confiar que as eleições barrem-no?
O processo que hoje desagua em Bolsonaro, como sabemos, não surgiu do nada. Essa longa onda foi se formando nas marés revoltosas do antipetismo. Os mais anencéfalos representantes da direita foram, pouco a pouco, conquistando espaço; publicando livros, fazendo palestras, preparando o terreno ideológico. Ao mesmo tempo, a mídia movia sua cruzada contra o Partido dos Trabalhadores. A pressão ia aumentando, mas o PT imaginava que liberando-a, fazendo concessões, abrindo caminhos à direita, impediria a explosão. Esqueceram-se de apagar o fogo.
O longo cozido engrossou e foi servido, enfim, em 2016, com a derrubada da presidenta eleita Dilma Rousseff. Neste momento de ruptura, passaram a disputar o poder setores até então adormecidos. Como no mito da caixa de Pandora, todos os males do mundo, ora contidos, foram libertados.
A longa onda do antipetismo, portanto, é o ponto nevrálgico da disputa eleitoral que se apresenta. Para triunfar, a campanha de Haddad terá que convencer o eleitor que Bolsonaro é um perigo maior do que o Partido dos Trabalhadores. Em outras palavras, Haddad terá duas semanas para reverter os efeitos de uma campanha levada a cabo por anos pela imprensa, com o apoio logístico de amplos setores do judiciário, que efetivamente criminalizaram as principais lideranças do partido, hoje presas. Terá de fazer isso, sobretudo, em um cenário em que 49 milhões de pessoas decidiram livremente por Bolsonaro no primeiro turno. A única estratégia viável – mas provavelmente pouco eficaz – seria convencer parte dos 20% de eleitores que se abstiveram no primeiro turno a votar. Para tanto, teria de convencê-los não só que Bolsonaro é mais perigoso do que o PT, mas que Bolsonaro é o príncipe das trevas, a ser degolado com a espada do voto. Mas o que Haddad propôs um dia após as eleições? Que Bolsonaro assinasse uma “carta de compromisso” estabelecendo um “protocolo ético” para o segundo turno. Lembram-se do bordão “A Esperança vai Vencer o Medo”, usado pela campanha de Lula em 2002? A esperança nunca o vencerá, porque a esperança é a crença desmobilizadora de que tudo ficará bem, enquanto o medo é a crença desmobilizadora de que tudo ficará mal. No primeiro caso, acredita-se no melhor, e portanto não se prepara para nada. No segundo, acredita-se no pior, e portanto se prepara para tudo. Não foi à toa que a esperança tenha sido o último dos males libertado por Pandora; porque ela é o mal maior.
Agora voltemos à situação concreta do Brasil. O movimento entorno de Bolsonaro não nasceu do nada, sabemos, e, pelo contrário, o elegeu representante, não foi eleito. Este movimento conta hoje com uma ampla base civil, mais ou menos organizada, empresários os mais diversos, líderes religiosos, toda a fauna do setor financeiro, policiais e militares de baixo-escalão e, por fim, gorilas na cúpula do Exército. Conta, além disso, com um apoio mais envergonhado e disperso de setores da imprensa. Todas estas bases não passaram a se mobilizar no dia 22 de julho, quando Bolsonaro foi confirmado como candidato à Presidência, ao contrário; se mobilizam há anos, e foram longe para vencer em 2016. Se Haddad derrotar Bolsonaro nas eleições, a manada se dará por contente?
É evidente que não, e que usariam todas as armas disponíveis para isolá-lo, no mínimo, e para derrubá-lo, no máximo. Lembremos: todas as armas disponíveis, de uma base que conta com o apoio amplo de militares, do baixo-escalão à cúpula.
Se por outro lado Bolsonaro for eleito, é evidente que essas bases também serão fortalecidas. O presidenciável já declarou que expandirá o número de ministros do STF para 21. Já declarou que distribuirá ministérios para militares. E sua base civil, que parece querer disputar com os últimos a pecha de gorilas, já sai por aí espalhando o terror, como milícias.[2]
Não sei o que o caro leitor fará no dia 28 de outubro. Mas se há alguma esperança de que, apertando 13, seja qual for o resultado das eleições, se “combaterá o fascismo” e tudo ficará bem, convém lembrar a mensagem lida por Virgílio e Dante às portas do inferno: Abandonai toda a Esperança, Ó Vós que Entrais.
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[1] – Que estranha concepção de “trabalho de base” em que não se formam bases, em que os pobres não devem ser servidos por uma organização, mas devem servir a uma eleição, em que se organiza desesperadamente, não estrategicamente. É esse tipo de distorção que possibilitou que as coisas chegassem ao estado atual.
[2] – Foram muitos os casos de violência política por parte de apoiadores de Bolsonaro nos últimos dias. Ao menos 50 ataques foram contabilizados.