Mais de 500 milhões de chineses têm acesso diário à Internet, porém é de conhecimento mundial que esse acesso não acontece de forma irrestrita[1]. A China conta com um programa de monitoramento estatal, batizado de Great Firewall (“Grande Muralha de Fogo”, nome alusivo à Grande Muralha da China e a programas de proteção contra ação de hackers), que impede o acesso de alguns dos sites de maior popularidade no resto do mundo, como o Google, Twitter ou Facebook.
Sites geridos por meios de comunicação ocidentais, como a BBC, a Voz da América, a Rádio Free Asia e a Wikipédia, têm sido regularmente bloqueados na China, enquanto outras fontes de notícias, como o New York Times, o Washington Post, o South China Morning Post e a rede CNN foram intermitentemente bloqueadas[2]. Os sites que transmitem notícias em chinês costumam enfrentar obstáculos maiores do que os sites em inglês.
Para compreender essa dinâmica de controle da informação, é necessário primeiro ler as folhas de chá do Partido Comunista Chinês (PCCh). Sob a liderança do secretário-geral Xi Jinping, a China passa por mudanças fundamentais em sua direção ideológica e organizacional que começaram, nos últimos anos, a influenciar tanto a agenda de reformas do Estado quanto suas relações externas[3].
Desde 2012, o Partido Comunista Chinês deu início a uma ambiciosa iniciativa de Xi de expulsar do partido aquilo que ele chama de “tigres e moscas”, ou seja, funcionários e empresários corruptos de alto e baixo escalão. Para levar a cabo esse movimento de massa, o Partido mobilizou sua exclusiva rede de vigilância e segurança, atingindo importantes áreas da vida social chinesa, a começar pelo controle mais rígido de diversas formas de mídias e o bloqueio de sites estrangeiros.
O governo chinês conta com um sofisticado aparato de controle informativo que emprega centenas de milhares de pessoas, que remonta a um período bastante anterior à criação do Projeto Escudo Dourado (ou também Great Firewall, como já mencionado), operado pela divisão do Ministério da Segurança Pública (MSP) do governo chinês[4]. Após os protestos na Praça da Paz Celestial, em 1989 – ou seja, antes mesmo do advento mundial da Internet –, o governo chinês passou a seguir a orientação de Deng Xiaoping de garantir a todo custo a “estabilidade social” no país.
“Quando você abre a janela, também entram as moscas”
O primeiro pano de fundo político-ideológico da Grande Muralha de Fogo (termo que apareceu pela primeira vez em um artigo da revista Wired em 1997)[5] remonta, de fato, à conjuntura de abertura comercial chinesa da década de 1980. À época, Deng Xiaoping proferiu sua famosa frase: “Quando você abre a janela para buscar ar fresco, também entram as moscas”. O provérbio está relacionado a um período da reforma econômica da China que se tornou conhecida no Ocidente como a “economia de mercado socialista”. Assim, Xiaoping também promulgou a política da Porta Aberta a fim de trazer o conhecimento ocidental e abrir o país ao investimento externo, o que incluía trazer novas tecnologias para melhorar a vantagem competitiva da China[6].
A Internet chegou à China em 1994, sob a presidência de Jiang Zemin. Sua decisão de desenvolver a Internet no país foi fortemente influenciada pela teoria da “terceira onda” de Alvin Toffler, que afirma que o mundo está se afastando da Era Industrial (segunda onda) para a Era da Informação (terceira onda). Para a China competir com outros países, seria imperativo a acessibilidade da Internet no país. A essa altura, Pequim contava com cerca de 55 milhões de assinantes de telefone fixo e sete milhões de usuários de telefones celulares. No final de 1997, cerca de 600 mil chineses já acessavam a Internet. Desde então, o número dobrou a cada seis meses[7].
Depois da implantação da política da Porta Aberta, a China passa a buscar um equilíbrio entre a “abertura” ao mundo ocidental e manter seu povo distante da ideologia ocidental. O Partido Comunista Chinês começou a discutir a necessidade de limitar o acesso público à Internet. Em 1995, o governo lançou seu primeiro conjunto de regras abrangentes sobre o assunto. A política pedia o “desenvolvimento saudável intercâmbio de informações internacionais sobre computadores”, mas também declarou que atividades “prejudiciais à segurança do Estado ou ordem pública” seriam tratadas como ofensas criminais[8]. Na época, a China tinha cerca de 50 mil usuários, dentre acadêmicos, diplomatas e empresas estrangeiras[9].
O governo chinês começou a emitir regulações extensas quanto ao uso da Internet – muitas delas frequentemente se sobrepõem, são constantemente atualizadas e executadas por agências governamentais. A infraestrutura legal sobre o uso da Internet na China se tornou extraordinariamente complexa, contendo, pelo menos, 12 agências governamentais diferentes, dirigidas a provedores de serviços e conteúdo da rede, operadores de cybercafés e os próprios usuários da Internet[10].
Nesse sentido, para manter longe as “moscas” apontadas por Xiaoping, o Ministério da Segurança Pública iniciou a operação do Projeto Escudo Dourado a partir do ano 2000. O projeto em particular representa um dos dilemas mais irônicos da história moderna. Por um lado, o governo chinês deseja fazer uso da tecnologia da informação para impulsionar sua economia. Por outro lado, a Internet é uma ferramenta vista como sinônimo de “abertura ao ocidente” na sociedade. Em outras palavras, enquanto a Internet é importante para o desenvolvimento chinês, sua existência também prejudica a estabilidade política do país, e o Estado chinês busca o equilíbrio entre esses dois fins[11].
O exemplo emblemático dessa reflexão por parte do governo chinês, ainda no início da popularização da Internet na China, é a repressão ao Partido Democrático da China (PDC), um partido político de oposição moderno, que reúne intelectuais chineses, estudantes e trabalhadores. No inverno de 1998, os comitês locais do partido apareceram em 24 províncias e cidades, e um comitê nacional preparatório também estava em formação. Todavia, após um período de relativa tolerância, o Estado chinês prendeu praticamente todos os principais líderes do PDC[12].
O surgimento desse partido revelava que a imersão da China na economia global mudou a forma e os métodos da dissidência intelectual chinesa de forma notável. Os dissidentes na China estavam cada vez mais profissionalizados, e seu isolamento ante aos cidadãos comuns estava sendo derrubado pela crescente disponibilidade de tecnologias como e-mails e sistemas de paging internacionais, criando novas redes poderosas que as elites do Partido Comunista eram ainda incapazes de controlar.
O PDC, criado pelo ex-ativista dos protestos da Praça da Paz Celestial de 1989, Wang Donghai, e o estudante universitário Lin Hui, iniciou seus trabalhos a partir de Hong Kong e coletou informações de dissidentes de toda a China continental por meio de e-mails e um sistema personalizado de paging. Suas atividades eram divulgadas em sites de agências de notícias e transmitida para a China via Voz da América e Rádio Free Asia.
A mídia eletrônica foi, portanto, crucial para os esforços dos fundadores e membros do PDC. A comunicação via pager, e-mail e sites permitiu que dissidentes com ideias semelhantes ouvissem as atividades do comitê do partido, e coordenassem ações. Esses meios também permitiram que filiados em várias cidades e províncias alertassem imediatamente outros membros sobre quaisquer medidas repressivas contra eles e mudanças nas respostas oficiais. Os membros do PDC tinham a esperança inicial de se tornarem uma “força de guerrilha baseada na Internet”.
A partir desse episódio no final dos anos 1990, o governo chinês passou a controlar as principais redes de backbone em funcionamento na China, bloqueando intermitentemente os endereços IP dos sites considerados corruptos (incluindo a CNN, o New York Times e a Playboy). Essas redes de backbone formaram seus próprios provedores de serviços de Internet (ISPs), que fornecem acesso à rede para usuários individuais. Desse modo, o governo tentou restringir o acesso a sites indesejáveis por meio de fornecedores de conteúdo, motores de busca e produtores de outros tipos de software. Embora as regulações oficiais sejam ambíguas, também ocorre a autocensura por receio de punições ao permitir o acesso a sites potencialmente “subversivos”.
O Projeto Escudo Dourado
Apesar de o Ministério da Segurança Pública (MSP) começar a elaborar o Projeto Escudo Dourado nos anos 1990, ele fez sua primeira aparição pública em 2000, durante a Feira de Comércio realizada em Pequim. A Security China 2000, uma das vitrines da feira, se tornou a base do projeto e tinha como objetivo promover “a adoção de tecnologias avançadas de informação e comunicação para fortalecer o controle da polícia central, capacidade de resposta e capacidade de combate ao crime, a fim de melhorar a eficiência e eficácia do trabalho policial”.
Inicialmente, o governo concebeu o Projeto Escudo Dourado como um sistema abrangente de vigilância, orientado por bancos de dados, que pudesse acessar os registros de todos os cidadãos e vinculá-los à segurança nacional, regional e local. As autoridades chinesas se dedicaram a finalizar o projeto entre 2003 e 2006[13].
Contudo, a inesperada velocidade da expansão da Internet na China exigiu vários ajustes na versão inicial do Projeto Escudo Dourado. A liberalização do setor de telecomunicações provocou mudanças tecnológicas rápidas e, como resultado da reavaliação e avaliação, o projeto agora se concentra em firewalls de filtragem de conteúdo, o que explica o apelido de “Grande Muralha de Fogo”.
A fim de desenvolver a tecnologia necessária, o governo chinês contratou equipes de engenheiros e colaborou com institutos de pesquisa e provedores de tecnologia no país e no exterior, como a Nortel Networks, uma das maiores fornecedoras canadenses de tecnologia de telecomunicações. O principal propósito dessa colaboração foi aprimorar a capacidade de rede da China. A americana Motorola também forneceu dispositivos de comunicação sem fio para a polícia chinesa; a Sun Microsystems conectou todos os 33 departamentos de polícia provinciais por meio de redes de computadores; e a Cisco Systems forneceu ao país asiático roteadores e firewalls[14].
Hoje, o governo chinês emprega, ao menos, 50 mil profissionais no controle das ferramentas de busca virtual para filtrar conteúdos considerados prejudiciais, além de um exército de influenciadores digitais próprios. As autoridades responsabilizam as empresas pelo conteúdo que exibem, mesmo que gerado pelos usuários, uma prática que estimula a autocensura em um país onde o Estado licencia todas as mídias. Com um mercado local quase cativo, a Tencent Holdings e o Grupo Alibaba – as duas gigantes chinesas da tecnologia – floresceram, tornando-se importantes contribuintes na China[15].
Como grande parte dos países que impõem formas de controle cibernético, a China argumenta que as restrições são principalmente sobre manter a ordem social, tal qual estipula também a mais recente Lei de Segurança Cibernética, aprovada em novembro de 2016 pelo Congresso Nacional do Povo e em vigor desde 2017[16]. Segundo a Administração de Ciberespaço da China, a nova legislação busca “salvaguardar a soberania do ciberespaço chinês, a segurança nacional, o interesse público, bem como os direitos e interesses dos cidadãos, pessoas jurídicas e outras organizações”[17].
Tal medida provocou forte mobilização de empresas estrangeiras, que alegam que a formulação vaga dos regulamentos as deixa vulneráveis a interpretações abstratas das regras. Já o governo chinês, proponente da lei, cita o controle preocupante sobre o fluxo de notícias exercido pelo Google e o Facebook como uma razão para o Estado adotar um papel ativo. A lei exige que empresas estrangeiras se submetam a verificações de segurança e armazenem dados de usuários no país[18].
A Grande Muralha de Fogo em ação
Ao exercer o controle de pontos de entrada e saída de tráfego em território chinês, o regime concentra hoje o monopólio do tráfego externo em um grau de sofisticação sem precedentes na história mundial[19]. Ao contrário dos EUA, onde a mídia social está centralizada em alguns provedores, ela é fragmentada na China em centenas de sites locais, e a responsabilidade pelo controle informativo é devolvida a esses provedores de Internet, que podem ser multados ou simplesmente desligados caso não cumpram as diretrizes do governo.
Paradoxalmente, o mesmo programa criado para a censura também expõe uma fonte extraordinariamente rica de informações sobre os interesses e objetivos do governo chinês. Após os protestos da Praça da Paz Celestial de 1989, a orientação geral do controle informativo por parte do Estado mudou da repressão ampla a dissidentes políticos e começou a se centrar diretamente em conteúdos que ameaçam encorajar a ação coletiva de seus cidadãos. O governo passou a distinguir as críticas ao regime que considerava inofensivas daquelas que poderiam servir de estopim para a organização e mobilização em massa da população[20].
É o que aponta o estudo How Censorship in China Allows Government Criticism but Silences Collective Expression (“Como a censura na China permite críticas ao governo, mas silencia expressão coletiva), do cientista político da Universidade de Harvard, Gary King[21]. A conclusão teórica central de King é de que objetivo do Projeto Escudo Dourado não é reprimir as críticas ao Estado ou ao Partido Comunista, mas reduzir a probabilidade de ação coletiva da oposição, debilitando os laços sociais sempre que algum movimento político estiver em ascensão.
King classificou esse tipo de censura vigente na China como a teoria do potencial de ação coletiva: o alvo são pessoas que se unem para se expressarem coletivamente, estimuladas por alguém que não o governo, e parecem ter potencial para gerar uma ação coletiva. Nessa visão, provavelmente sofrerão censura as expressões coletivas – muitas pessoas se comunicando nas mídias sociais sobre o mesmo assunto – que possam levar a protestos e manifestações.
Em uma análise histórica mais ampla, vários estudos argumentam que regimes políticos como o chinês podem esperar e acolher protestos substancialmente limitados como uma forma de aprimorar sua própria estabilidade, identificando e depois lidando com comunidades descontentes[22]. Pequenos protestos isolados têm uma longa tradição na China e são uma parte esperada do governo[23]. Entretanto, no que tange estritamente à Internet, a perspectiva declarada do governo chinês é que a limitação de comunicações horizontais consiste em uma ação legítima e efetiva, destinada a proteger sua população. Em outras palavras, uma estratégia para evitar o caos e a desordem[24].
Nesse sentido, a Grande Muralha de Fogo é um problema especial para firmas estrangeiras de Internet e para os chineses residentes fora da China, mas pouco faz para limitar o poder expressivo do povo chinês, que pode encontrar outros sites para se comunicar de formas semelhantes. Por exemplo, o Facebook está bloqueado na China, mas o RenRen é um substituto próximo. Da mesma forma, o Sina Weibo é um popular clone chinês do Twitter.
Além disso, a Grande Muralha de Fogo conta com um bloqueio de palavras-chave, que impede que um usuário publique texto que contenha palavras ou frases proibidas. Muitas vezes, os usuários conseguem superar essa barreira por meio de analogias, metáforas, sátiras e outras evasões. A língua chinesa oferece alternativas, como a substituição de caracteres banidos por outros com significados não-relacionados, mas que soam parecidos (“homófonos”) ou são parecidos (“homógrafos”). Uma vez publicados nas mídias sociais, os textos podem ainda ser lidos por censores profissionais e retirados do ar manualmente, o que faz parte de um grande esforço não-automatizado.
Porém, com base em uma análise do conteúdo de 1.400 diferentes redes sociais em 2011, o estudo de King demonstra que as críticas ao governo chinês não são necessariamente alvo desses censores. Segundo o pesquisador, entre os acontecimentos que deixaram os censores em estado de alerta, estão a prisão do dissidente Ai Weiwei, os protestos na Mongólia Interior e o acidente nuclear em Fukushima, no Japão. Nos dois primeiros casos – Ai Weiwei e Mongólia Interior –, a censura mostrou tolerância zero, apagando das redes sociais tanto críticas quanto elogios à ação do regime. Os censores não agiram por se tratar de um assunto politicamente sensível, mas por identificarem ambos os casos como apresentando um elevado “potencial de ação coletiva” por parte da população, tanto a favor do regime como contra ele.
A geração sem Google, Facebook ou Twitter
Então, o que mais o governo chinês bloqueia? Além de veículos de imprensa ocidentais, a filtragem chinesa se concentra cuidadosamente nas principais ameaças percebidas pelo Partido Comunista: grupos de independência tibetanos, sites como da Human Rights Watch ou da Anistia Internacional; páginas de alguns movimentos religiosos cristãos, muçulmanos, judeus, hindus e até mesmo igrejas da New Age; e toda e qualquer informação relacionada à seita religiosa proibida do Falun Gong.
Nesse cenário, as empresas de mídia ocidentais se relacionam historicamente com o governo chinês em um jogo de acomodação e retaliação. Em 2002, o Yahoo, por exemplo, concordou com um pacto de “autodisciplina”, obrigando seus signatários a “não produzirem ou disseminarem textos nocivos ou notícias susceptíveis de comprometer a segurança nacional e a estabilidade, violar leis e regulamentos, ou espalhar notícias falsas, superstições e obscenidades”[25].
Em 2005, os observadores da China e da Microsoft também chegaram a um acordo quando a Microsoft admitiu que seu serviço MSN Spaces bloqueasse todos os títulos com as palavras “liberdade” e “democracia”. Um blog intitulado “democracia” geraria uma mensagem de erro da seguinte forma: “Esta mensagem inclui uma linguagem proibida. Por favor, apague a expressão proibida”[26].
Uma postura intermediária foi adotada pela Google após ser inteiramente bloqueado por duas semanas na rede chinesa em setembro de 2002. Na época, o endereço Google.com, que não possuía nenhum tipo de restrição, podia ser acessado no país de forma irrestrita. Porém, a versão chinesa do buscador, baseada no endereço Google.cn, precisou adaptar seus filtros de pesquisa. A empresa se conformou em adotar algum tipo de censura para evitar que suas atividades fossem novamente bloqueadas, o que viria a ocorrer em março de 2010, quando as autoridades chinesas não conseguiram chegar a um acordo com a multinacional, e o Google redirecionou seus serviços para Hong Kong. Tal situação pode explicar o desconhecimento chinês de serviços de busca ocidentais, substituídos pelo chinês Baidu[27].
No entanto, a despeito das proibições unilaterais e tentativas de acordos, as novas gerações de chineses parecem não se importar com o controle exercido pelo Estado nas mídias sociais, sobretudo estrangeiras. Na última década, a China bloqueou não só o Google e o Facebook, mas também o Twitter e o Instagram, bem como milhares de outros sites estrangeiros. Acostumados a aplicativos caseiros e serviços online, os chineses mais jovens estão desinteressados em conhecer o que foi censurado, o que permite ao governo construir um sistema de valores alternativo à democracia liberal ocidental[28].
É interessante observar que esse resultado representa o oposto daquilo que muitos no Ocidente previam que seria o efeito da Internet. Em discurso na Universidade Johns Hopkins em 2000, o presidente norte-americano Bill Clinton argumentou que o crescimento da Internet tornaria a China uma sociedade mais aberta: “O gênio da liberdade não voltará para a garrafa. Como o juiz Earl Warren disse certa vez, a liberdade é a força mais contagiante do mundo. No novo século, a liberdade se espalhará por telefone celular e modem a cabo”[29].
Ainda que os aplicativos e sites ocidentais cheguem à China, eles podem se deparar com a apatia dos jovens. Um estudo desenvolvido em 2018 pelos economistas Yuyu Chen e David Y. Yang, das Universidades de Pequim e Stanford, realizou um experimento de 18 meses com cerca de 1.800 estudantes universitários chineses[30]. Durante esse período, os estudantes receberiam ferramentas para contornar a censura na Internet e seriam encorajados por quatro meses a visitarem os veículos de notícias ocidentais, bloqueados pelo controle informativo chinês.
Os pesquisadores observaram que o acesso irrestrito à Internet teve pouco impacto na aquisição de informações politicamente sensíveis por parte dos alunos e quase metade deles não usou as ferramentas oferecidas para burlar a censura. Esses números indicam a baixa demanda dos estudantes por informações não-censuradas. Portanto, a descoberta da pesquisa está no fato de que o governo chinês não apenas dificulta o acesso a informações confidenciais, mas também fomenta um ambiente no qual os cidadãos não exigem tais informações em primeiro lugar.
Essa perspectiva é corroborada por uma reportagem do jornalista Li Yuan, para The New York Times, na qual são entrevistados jovens com simpatia por bens culturais ocidentais, sobretudo norte-americanos, mas desinteressados no acesso a redes como Facebook e Twitter. A maior parte dos jovens consome aplicativos e serviços locais como o Baidu, o WeChat e a plataforma de vídeos curtos Tik Tok. “O conteúdo bloqueado não é apropriado para o desenvolvimento do socialismo com características chinesas. Eu não preciso deles”, disse à reportagem o estudante Wen Shengjian, de 14 anos.
Gigantes ocidentais ainda sonham com o mercado chinês
Todo o Projeto Escudo Dourado e as barreiras impostas sistematicamente não foram suficientes para impedirem o interesse das empresas ocidentais de investirem em território chinês. Algumas das principais empresas seguem em constante negociação para reabrirem filiais em Pequim, ainda que, para isso, se vejam novamente obrigadas a se submeterem à dura legislação nacional.
O caso mais representativo e provavelmente mais polêmico envolve as últimas negociações entre o governo chinês e o Google, que já vinha estabelecendo algumas parcerias com empresas chinesas, como a JD.com, e mantém operações locais de suporte a aplicativos móveis[31]. Em agosto de 2018, documentos revelados pelo site jornalístico The Intercept indicam que a empresa está desenvolvendo uma “joint-venture” com outra empresa presumivelmente baseada na China, dada a obrigatoriedade de as empresas de Internet que prestam serviços na China de operarem seus servidores e centros de dados dentro do país.
Desde a proibição temporária em 2002, as tentativas de negociação entre ambas as partes não são novidade. A versão chinesa do buscador operou em acordo com as autoridades chinesas entre janeiro de 2006, quando a empresa concordou em bloquear determinados sites[32], e janeiro de 2010, quando ocorreu um aparente ciberataque aos servidores do Google e a 30 outras empresas de tecnologia[33]. Esse hackeamento massivo, apelidado à época de Operação Aurora[34], foi crucial para que o Google transferisse definitivamente o tráfego do Google.cn para o Google.com.hk, seu domínio em Hong Kong[35]. O serviço de e-mail do Google, o Gmail, e o Google Chrome não estão disponíveis para usuários chineses desde 2014[36].
A revelação de que o Google pretendia retornar à China, feita pelo portal The Intercept, foi confirmada pelo CEO da empresa, Sundar Pichai[37]. Uma nova versão filtrada de seu mecanismo de busca está em andamento desde o segundo semestre de 2017 sob o codinome de Dragonfly (Libélula). A iniciativa só era de conhecimento de algumas centenas dos 88 mil funcionários da multinacional, e tem como foco inicial o lançamento de um aplicativo para Android[38]. Os engenheiros que trabalham no novo mecanismo de busca examinaram as consultas do 265.com, um serviço de diretório da web em chinês de propriedade do Google que não está bloqueado na China[39].
Outra gigante norte-americana que está em diálogo com o governo chinês é o Facebook, bloqueado desde julho de 2009, quando rebeldes separatistas de Ürümqi, capital da província autônoma de Xinjiang, usaram a plataforma como parte de sua rede de comunicações[40]. No episódio, muçulmanos uigures organizaram protestos envolvendo ataques a transeuntes e a veículos[41], que culminaram em mais de 140 mortos e na decretação de toque de recolher por parte das autoridades locais[42]. O Twitter também sofreu bloqueio na mesma ocasião[43].
A política oficial mudou com a decisão de Pequim, em setembro de 2013, de suspender a proibição de acesso à sites estrangeiros dentro da Zona Franca de Xangai, incluindo o Facebook[44]. O objetivo era permitir que as três gigantes de telecomunicações do continente, a China Mobile, a China Unicom e a China Telecom, competissem com as empresas ocidentais dentro da zona de livre comércio. A medida foi descrita pela mídia estatal chinesa como continuidade da política iniciada por Deng Xiaoping de abrir as zonas econômicas especiais.
Na mesma Xangai, o Facebook lutou para abrir escritórios em 2017, com planos de ampliar suas vendas de publicidade para empresas chinesas[45]. As vendas de anúncios para chineses, baseadas em seu escritório em Hong Kong, são algumas das maiores da Ásia e tem como clientes até órgãos de propaganda do governo da China e a emissora estatal chinesa, a CCTV, cuja página conta com mais curtidas que a CNN e a Fox News[46]. Contudo, autoridades de tecnologia chinesas continuam alegando que há resistência entre os líderes do Politburo chinês em autorizarem o Facebook a lançar produtos no país[47].
Em 2016, o Facebook deu passos no sentido de abraçar as políticas de censura chinesas, criando ferramentas capazes suprimir postagens em certas áreas geográficas, segundo reportagem do The New York Times[48]. Ao mesmo tempo, o executivo-chefe Mark Zuckerberg vem mantendo diálogo com o próprio presidente Xi Jinping e até aprendeu mandarim. No ano anterior, havia participado uma conferência em Pequim, que é um padrão na sua turnê de relações com o governo chinês. Chegou a postar uma foto de si mesmo correndo na Praça da Paz Celestial em um dia perigosamente poluído. A foto foi alvo de críticas nas redes sociais e só gerou preocupações por parte do governo chinês quanto à saúde de Zuckerberg.
Somente em 2018 o Facebook conseguiu licença para abrir um escritório definitivo em território chinês. A subsidiária com capital de US$ 30 milhões deve ser aberta em Hangzhou, no sul do país, e funcionará como uma incubadora de startups, promovendo investimentos em pequenas empresas chineses. O negócio abarca o desenvolvimento de tecnologia, serviços técnicos e consultoria de investimentos[49].
No entanto, Mark Zuckerberg precisa resolver um revés gigantesco para sua empresa: o bloqueio do aplicativo de mensagens Whatsapp, o último dos principais produtos do Facebook que ainda funcionavam na China. Em julho de 2017, o aplicativo foi parcialmente bloqueado por filtros chineses, impossibilitando o envio de vídeos e fotos e interrompendo mensagens de voz. O controle informativo coincidiu com o início da nova legislação de Segurança Cibernética e, embora não fosse tão popular entre os chineses – que contam com o aplicativo de mensagens local WeChat, com mais de 900 milhões de usuários –, o Whatsapp representa uma ferramenta útil para muitos se comunicarem com pessoas fora do país ou em Hong Kong[50].
A desativação definitiva do Whatsapp veio em setembro do mesmo ano, após uma atualização na Grande Muralha de Fogo para detectar, bloquear e redirecionar os protocolos usados pelo aplicativo no envio de mensagens de texto e mídias criptografadas[51]. É possível que a ação tenha relação com a proximidade do 19º Congresso do Partido Comunista da China (PCCh), que consolidou o poder do presidente Xi Jinping[52].
Os residentes na China ainda podem usar serviços como o WhatsApp caso se conectem por redes privadas virtuais (VNPs) que forneçam canais de comunicação para servidores fora do país. Contudo, o governo segue exercendo o monitoramento também das redes privadas virtuais, o que tende a aumentar com a pressão de Xi Jinping em defesa de uma política de soberania cibernética mais rígidas no país[53].
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