O logotipo que encabeça as páginas do jornal Estado de São Paulo remete a Bernard Gregoire, um francês que, em 1876, saía pelas ruas de São Paulo a cavalo, tocando um trompete e anunciando as notícias do dia. A ousadia do Estadão, que realizava vendas avulsas dos jornais nas mãos de Gregoire, foi alvo de ridicularização por parte dos concorrentes do jornal. Talvez não soubessem que, centenas de anos antes, eram também a cavalo que chegavam as notícias. O que se entende como o primeiro jornal do mundo, a “Acta Diurna”, idealizada por Júlio César no século II a.C como um instrumento de hegemonia de seu império, se valeu de uma engenhosa estrutura logística que contava com mudas de cavalos estrategicamente localizadas, capazes de cobrir todo o Império Romano.
Hoje, os jornais fingem não saber que as notícias falsas sempre existiram. As Actas Diurnas de Júlio César, que continham as informações oficiais do império, eram rotineiramente acompanhadas de publicações próprias das oficinas de escribas, que contavam causos, fofocas, mentiras. Mais: há indícios de que as Actas, registradas na madeira e expostas em público, eram também copiadas em placas de cera de abelha e posteriormente registradas em papiros, para a leitura pessoal. Nesse processo, sem dúvidas houve também toda sorte de “novas informações” duvidosas. Mas a imagem do homem a cavalo que anuncia notícias pela cidade também não é exclusiva de Júlio Cesar, nem d’O Estado de São Paulo. Na idade média, na Europa, trovadores viajavam de feudo em feudo contando histórias fantásticas sobre dragões, riquezas, traições, discordâncias. Muitas inventadas, a gosto do público e para o ônus dos retratados (que, no feudo anterior, eram o público).
Quantos agora apelam para o mito da caverna, de Platão, para falar das “fake-news“, da “pós-verdade”, da Cambridge Analytica. Sim, éramos antes todos esclarecidos! Vigilantes, fora das cavernas, em contato com a realidade mais pura que há. É por isso que tantos apoiaram o golpe em 1964 – inclusive os grandes veículos de imprensa que agora tanto se assustam com as “fake-news” – porque o perigo comunista de fato cavalgava o interior do Brasil. Por isso também elegemos Collor, o “caçador de marajás”, em 1989, a despeito de Lula. Lembremo-nos das confissões de Boni, diretor da Rede Globo: “Eu achei que a briga do Collor com o Lula nos debates estava desigual, porque Lula era o povo e o Collor era a autoridade. Então nós conseguimos tirar a gravata do Collor, botar um pouco de suor, com uma ‘glicerinazinha’, e colocamos as pastas, todas, que estavam ali, com supostas denúncias contra o Lula, mas as pastas estavam inteiramente vazias, com papéis em branco. Foi uma maneira de melhorar a postura do Collor junto ao espectador, para ficar em pé de igualdade com Lula.”
Agora tomemos as declarações de Christopher Wylie, ex-funcionário da Cambridge Analytica que denunciou as ações da empresa durante as eleições norte-americanas para o jornal The Guardian: “Eu acho que foi um experimento nojento, anti-ético e nojento. Porque você está brincando com um país inteiro. Com a psicologia de um país inteiro, sem que eles saibam. E não apenas você está brincando com a psicologia de uma nação inteira, está fazendo-o no contexto de um processo democrático.”Assustador, não? Mas “brincar com a psicologia de um país inteiro” não se parece com o que Boni fez em 1989? Não nos lembra das colunas de Carlos Lacerda contra Getúlio na Tribuna da Imprensa, de sua “Carta Brandi” contra Juscelino, de sua campanha anticomunista n’O Globo contra João Goulart em 1961? Não se parece com o que a Folha fez ao publicar em sua capa, em 2009, às vésperas de um “processo democrático”, uma ficha criminal falsa da então ministra Dilma Roussef, em que constavam crimes supostamente cometidos durante a ditadura, que havia sido recebida por e-mail e que estava no site do grupo ultra-direitista “Terrorismo Nunca Mais”?
O discurso de “pureza da verdade” foi o que motivou, no jornalismo, a ascensão da concepção anglo-saxã de “Facts, Facts, Facts” (Fatos, Fatos, Fatos). Essa concepção quebrou com uma longa tradição de jornais que tinham inclinações políticas claras, que eram espaços livres de debate, que mobilizavam diversos setores da sociedade para a disputa política. O que veio depois? O jornalismo comercial, “puro”, imparcial. O jornalismo “de verdade”, dos grandes estúdios, dos grandes jornais, da Globo, da Folha, que vão rindo do homem a cavalo que anuncia as notícias de vilarejo em vilarejo. Ou melhor, do homem que compartilha mentiras de grupo de Whatsapp a grupo de Whatsapp.
Este homem existe, é verdade. Ele é um risco, é verdade. Bolsonaro o estimula, é verdade. Mas a verdade não-anunciada – que converte-se portanto em mentira – é que esse homem sempre existiu: no Império Romano, na Idade Média, nas grandes redações modernas.
O que parece preocupante para os grandes veículos é que esse homem não anda mais a cavalo com um trompete, e pode, como só eles faziam antes, mentir a milhares de pessoas. Sem a ajuda de Boni, Lacerda ou da família Frias. Preocupam-se não com a verdade dos fatos, mas com a perda do monopólio da mentira. Querem a morte do homem, não longa vida à verdade. À democratização da mentira, à multiplicação das cavernas de Platão, opõem-se com a autocracia da verdade, como fez Júlio César… por hegemonia.