O ano de 2019 marcará o 141º aniversário de Joseph Stálin, em 21 de dezembro, mas também o registro dos 30 anos do triunfo do liberalismo na Rússia. Foi em 1989 que os críticos de Stálin finalmente conquistaram uma vitória aberta, com a dissolução da União Soviética.
No ano 2000, o dissidente soviético Alexander Soljenítsin se dignou a ter um encontro de três horas com o presidente Putin.[1] Ao mesmo tempo, as pesquisas na Rússia já mostravam que 21% dos russos consideravam Stálin um “líder sábio”,[2] enquanto uma parcela ainda maior tinha uma visão positiva geral do dirigente soviético. De alguma forma, o povo russo está digerindo esse tema, como evidenciado por várias outras pesquisas nos últimos anos. No início dos anos 2000, em torno de 36% da população russa avaliava como positivo o papel de Stálin, e outra pesquisa colocou a aprovação de Stálin em 53% no país.[3].
Essa porcentagem é maior do que a de qualquer líder liberal recente ou do presidente do Partido Comunista da Federação Russa, Guennadi Ziuganov. Não surpreende que Ziuganov tenha colocado coroas de flores no túmulo de Stálin nos aniversários do líder soviético: estava apenas seguindo o efeito manada, enquanto continua repetindo comentários liberais a respeito de Stálin. Assim, parece que 30 anos após a implantação do capitalismo aberto de livre mercado na Rússia, o comunismo não está “morto” e, de fato, o líder comunista da União Soviética pós-Lenin continua de pé, apesar da enorme propaganda ocidental e da burguesia russa.
Na longa Guerra Fria, do final da Segunda Guerra Mundial até 1989, os meios de comunicação ocidentais apresentaram uma mensagem simplista e ignorante, aparentemente ecoada por dissidentes soviéticos. Alexander Soljenítsin e Andrei Sakharov foram os principais nomes entre os dissidentes que procuraram tornar a URSS abertamente capitalista. Sua mensagem corajosa, porém desinformada, consistia em copiar economicamente o Ocidente para, assim, desfrutar das liberdades ocidentais. Porém, a vida não se mostrou tão simples.
A economia
“É quase universalmente reconhecido que o Ocidente mostra a todo o mundo um caminho para o desenvolvimento econômico bem-sucedido”, disse Soljenítsin em Harvard, no dia 8 de junho de 1978.[4] Na verdade, o que o Ocidente fez foi convencer a Rússia a adotar um sistema que promoveu o alcoolismo, a morte precoce para os homens e a fome entre os idosos. O Washington Post admitiu: “O homem russo médio nascido em 2002 viverá 58,5 anos, uma ligeira melhora em relação aos números de 1994, de 57,6 anos e abaixo dos 64 anos em meados dos anos 1980. Em termos de expectativa de vida, a Rússia se encontra em 122º lugar no mundo, no mesmo nível da Guiana e da Coreia do Norte”.[5] Pode-se ter certeza de que, se tal queda na expectativa de vida tivesse acontecido com Stálin ainda vivo nos anos 1990 e 2000, haveria centenas de livros publicados no Ocidente declamando os milhões assassinados por ele. A diferença é que Stálin duplicou a expectativa de vida de seu povo e o fez durante a época de uma guerra horrível, enquanto a Rússia de hoje vive em relativa paz e com o benefício da industrialização completada por Stálin.
A economia russa não se recuperou de sua virada suicida dos caminhos de Lênin e Stálin. Kruschev e Brejnev trouxeram estagnação econômica, e Gorbachev e Iéltsin provocaram uma regressão econômica direta. Em 1990, o PIB per capita na Rússia era de US$ 3.817 e, em 2001, caiu para US$ 2.669 (em dólares de 1990, o que significa que a estatística é ajustada pela inflação).[6]
Isso não é novidade, pois Kruschev e Brejnev foram os responsáveis por trazerem de volta o capitalismo e seus ciclos de negócios. Contudo, os fatos econômicos refutam firmemente pessoas como Soljenítsin, que apresentou “teorias” fáceis sobre como abandonar o socialismo e copiar o Ocidente visando ganhos econômicos.
Taxas de encarceramento
Depois de quatro anos no Ocidente, Alexander Soljenítsin fez um discurso em Harvard que recomendava abertamente um afastamento do Iluminismo e um retorno à espiritualidade cristã. No mesmo discurso, ele pretendia nivelar algumas críticas contra o Ocidente, mas, mesmo assim, era aparente a fraqueza do domínio de Soljenítsin sobre a realidade.
Para seu crédito, ele notou, surpreso, que os jornalistas ocidentais estão conformados com as tendências subjacentes à lucratividade ditada por alguns proprietários da mídia e não com a busca intelectual da verdade. Ele também afirmou que a criminalidade era maior nos Estados Unidos do que na URSS da época.
Sobre a criminalidade, Soljenítsin disse que “ela é consideravelmente maior [nos EUA] do que na pobre sociedade soviética sem lei”: “Há um grande número de prisioneiros em nossos campos que são denominados criminosos, mas a maioria deles nunca cometeu crime algum. Apenas tentaram se defender contra um Estado ilegal, recorrendo a meios fora de uma estrutura legal”. Essa afirmação escondeu um equívoco importante dos dissidentes soviéticos, que eram contrários aos interesses da maioria da população russa – hoje “desfrutando” de taxas de homicídios e de prisões ao estilo americano.
As obras de ficção de Alexander Soljenítsin sobre o sistema do Gulag soviético são muito importantes na mentalidade americana – não só no que tange à Rússia, mas também quanto a muitos outros países temidos pelos americanos. Soljenítsin atendeu ao nacionalismo americano, que acredita que outros países são mais perigosos e mais atrasados para se viver. Graças a Soljenítsin, a maioria dos americanos sabe mais sobre as prisões de outros países do que de suas próprias. Tal tipo de nacionalismo americano pode ser melhor do que o chauvinismo confesso da “raça ariana”, mas é, de certa forma, mais ofuscante: as pessoas que acreditam viver em um “país livre” prontamente descartam quaisquer fatos sobre seus prisioneiros e suas condições de prisão.
Taxas históricas de encarceramento em países selecionados, por 1.000 habitantes:
** Figura toda a URSS, não apenas a Rússia.
A verdade é que a taxa de encarceramento na Rússia dobrou desde a época dos dissidentes soviéticos e poderá triplicar em breve. Entretanto, os dissidentes expressam sua satisfação apesar de todos os anos de debate acerca dos males sobre o encarceramento excessivo. Isso nos diz algo sobre tais dissidentes – a saber, que o progresso é, para eles, o louvor por seus discursos pró-capitalistas e não por maior liberdade. Os explorados e oprimidos que continuam a seguir esses liberais saltam da frigideira diretamente para o fogo.
Apesar de alguns liberais, como o jogador de xadrez Garry Kasparov, falarem sobre os comunistas como se ainda vivêssemos a década de 1930 ou de 1980, é mais comum ouvir discursos como os de Vladimir Bukovsky, preso por 12 anos durante o governo Brejnev. Embora a taxa de encarceramento tenha explodido na Rússia, ele acredita que a Rússia progrediu: “O tempo de Brejnev nunca voltará. A história não se repete com tanta precisão”.[7]
O físico e outro famoso dissidente, Yuri Orlov, disse à Associated Press que as enormes vitórias eleitorais de Putin podem ter aberto o caminho para o que ele consideraria um retrocesso, mas, no geral, “a Rússia hoje é diferente”. Até mesmo a BBC admitiu que, apesar de suas críticas, Soljenítsin foi um “firme defensor” de Putin.[8] Por sua vez, Putin fez campanhas para a presidência com cartazes com as imagens de Sakharov e Soljenítsin.
Seguir abertamente o caminho do capitalismo aumentou a taxa de encarceramento na Rússia – o oposto da liberdade. Hoje, o índice de encarceramento se aproxima dos EUA. A taxa de aprisionamento dos negros na Louisiana é muito pior do que na Coreia do Norte – e a Louisiana não está em estado de guerra com seus Estados vizinhos ou com uma superpotência mundial.[9]
Porcentagem de homens americanos que já passaram por uma prisão federal ou estadual e suas chances de irem à prisão com base no ano de nascimento:
Fonte: http://www.ojp.usdoj.gov/bjs/pub/pdf/piusp01.pdf
Em resposta, os irracionais dizem que a criminalidade simplesmente aumentou e que os prisioneiros hoje merecem a sua prisão na Rússia e nos EUA, enquanto os mesmos criminosos não a mereciam sob Stálin e sob Kim na Coreia do Norte de hoje; embora no caso de alguns magnatas como Mikhail Khodorkovski, os descendentes liberais de Soljenítsin diriam que sua prisão é injusta.
Então, para colocarmos esse quadro na linguagem de Soljenítsin, os prisioneiros de 1978 eram espiritualmente merecedores, mas os prisioneiros ainda mais numerosos de 20 ou 30 anos mais tarde não eram espiritualmente merecedores. Ser prisioneiro do sistema político soviético é uma virtude, enquanto ser prisioneiro em um sistema capitalista é prova de criminalidade, segundo Soljenítsin. Em outras palavras, ele fala puramente para a burguesia, mas o faz sob o disfarce do cristianismo e de uma maneira completamente compatível, por exemplo, com o fascismo de Franco na Espanha. Quando é bom para o capitalismo, Soljenítsin critica a prisão, enquanto nós, comunistas, acreditamos que nosso objetivo de longo prazo é acabar com a prisão, eliminando suas causas. Encontramos pouca desculpa para o encarceramento da pobreza visto nos EUA.
Em 1952, um ano antes da morte de Stálin, o Departamento de Estado americano publicou taxas de aprisionamento que compararam a URSS durante a Segunda Guerra Mundial com a dos EUA em tempo de (relativa) paz e não sob ocupação ou ameaça de ocupação. As estatísticas de 1952 sobre os Estados Unidos “mostram que há uma média de uma pessoa em cada 1.000 presos… Se a URSS tivesse a mesma proporção de prisioneiros por população, teria 200 mil prisioneiros, em vez de 2 a 20 milhões”.[10] Se lermos cuidadosamente esta declaração do Departamento de Estado, ela está defendendo uma taxa de encarceramento de 0,1% contra uma taxa de 1%. O artigo está afirmando as mesmas coisas que tornaram Soljenítsin famoso.
Em 1952, os EUA estavam matando milhões de coreanos e chineses na Guerra da Coreia e faziam isto com a justificativa de que a URSS tinha 1,8 milhão de prisioneiros a mais do que deveria. Era, de certo modo, um questionamento justo saber se todo mundo nas prisões soviéticas era colaborador nazista ou se era preciso haver libertações em massa de prisioneiros. O governo de Stálin estava realmente discutindo isso.
Os autores do artigo do Departamento de Estado de 1952 sobre as prisões soviéticas deveriam avançar para condenar os EUA de hoje. A partir de 2003, os EUA passaram a aprisionar 5 pessoas por 1.000, em vez de apenas 1, para um total de mais dois milhões de prisioneiros, se somarmos todas as novas prisões. Isso significa que, em função de 50 anos, desde que o Departamento de Estado condenou a era soviética de Stálin, os EUA tiveram um aumento cinco vezes maior na taxa de prisões federais e estaduais per capita. De fato, os EUA até deixaram a URSS a comer poeira em termos de aprisionamento, já que, após a Segunda Guerra, a taxa de encarceramento soviética diminuiu, enquanto a americana aumentou. Só que, desde que a Rússia abocanhou abertamente o capitalismo de mercado e copiou os americanos, o país tem estado na disputa pelo Estado-prisional número um do mundo.
Quando Soljenítsin discursava em Harvard, os americanos já haviam ultrapassado a taxa de encarceramento da URSS. Enquanto o Departamento de Estado de 1952 costumava se gabar de uma taxa de aprisionamento 10 vezes menor que a de Stálin em tempos de guerra, hoje a taxa americana de detenção de negros é de 3,4%, mais de três vezes maior do que a mais baixa estimativa final de prisões na URSS de que o Departamento de Estado falava. Em outras palavras, no que diz respeito aos negros, eles já vivem com o Stálin descrito pelo Departamento de Estado, mas agora com Stálin também na Casa Branca.
Nessa crise com estatísticas potencialmente piores do que na época da guerra de Stálin, Soljenítsin contribuiu para o problema afirmando sobre os EUA em 1978: “A defesa dos direitos individuais chegou a extremos que tornam a sociedade como um todo indefesa”. Como de costume, não havia base estatística para essa observação. Apenas pura propaganda ocidental e preconceito.
Uma abordagem científica necessária
Isso nos leva à resistência de Soljenítsin ao Iluminismo como um todo. É difícil argumentar com alguém que dirá que Jesus não está recebendo o respeito que merece. É óbvio para pessoas inteligentes que tal formulação representará um uso oportunista na defesa do capitalismo. É uma fraude tanto quanto a “espiritualidade”.
Em seu discurso de 1978, Soljenítsin criticou os americanos por desistirem da Guerra do Vietnã, que levou à morte de quatro milhões de vietnamitas, e tentava simultaneamente afirmar que os bolcheviques são culpados pela ilegalidade em massa. Para isso, nossos leitores podem se perguntar qual lado é realmente pior, o de Soljenítsin ou o nosso. Em resposta, é possível dizer o seguinte: estamos dispostos a medir a questão. Por outro lado, os dissidentes soviéticos eram teimosos, e Soljenítsin se opunha abertamente ao Iluminismo. Então é óbvio que, do seu lado do debate, ele tem mais a esconder sob escritas obscuras e inacessíveis sobre Jesus, a Igreja Ortodoxa e qualquer outra ladainha que pode servir como ópio intelectual.
A medida de um Estado-prisão em tempos normais é a taxa de encarceramento. Escolher algum outro critério para discutir Estado-prisão pode muito bem representar um viés cultural simples como a preferência de Soljenítsin por aprisionar pessoas para defender valores cristãos em vez de valores socialistas.
O fato de os prisioneiros americanos estarem melhores do que os russos provêm da conjuntura econômica, e essa é uma questão à parte também digna de estudo. Por um lado, os prisioneiros brancos americanos estavam em melhor situação que os russos também antes de 1917, e isso não tem nada a ver com o comunismo. Por outro, os tolos dissidentes soviéticos consideravam que copiar os shoppings dos EUA traria prosperidade à Rússia.
No que diz respeito à economia, nenhum dos líderes depois de Stálin realizou um trabalho tão bom na promoção do desenvolvimento econômico, e não é factualmente verdade que copiar o Ocidente seja o melhor caminho a seguir. A Rússia não fez nada além de copiar cada vez mais o Ocidente desde a morte de Stálin, e o resultado foi somente mais e mais desastroso.
O funcionamento da economia e do Estado são as chaves para entender por que os dissidentes da era soviética desapareceram sem deixar vestígios. Até o artigo da Associated Press sobre o aniversário de 125 anos de Stálin se obrigou a mostrar que os veteranos da Segunda Guerra Mundial que o homenageavam em sua cidade natal estavam recebendo apenas US$ 6 por mês de pensão do Estado, o que não era suficiente para comer. É bastante irônico que Stálin tenha deixado a URSS em condições econômicas iguais às dos EUA (com exceção da produção de bens de luxo), mas hoje o grande livre mercado da Rússia dá US$ 6 por mês a seus pensionistas, que salvaram seu país da barbárie nazista.
Na ex-URSS e na China, parece que há uma preferência em se tornar expert em política e economia sem entender nenhum dos dois. Embora isso fosse até compreensível no caso chinês, onde o Estado direcionou a juventude para as ciências exatas, isso não é mais aceitável na Rússia. Soljenítsin era um escritor de ficção, que adorava citar um livro de um professor de álgebra – O Fenômeno Socialista, de Igor Shafarevich – para falar sobre socialismo. Sakharov era físico. Hoje, um dos principais líderes liberais da geração pós-soviética é um campeão de xadrez chamado Garry Kasparov, que acredita literalmente que a história humana começou coincidentemente quando o xadrez assumiu sua forma moderna, há 500 anos atrás. Ele trabalha para promover uma teoria maluca ainda mais radical da história do que a promovida por Anatoli Fomenko.[11]
Ideias fáceis sobre Jesus, sobre os direitos humanos que copiam as do Ocidente e mesmo sobre a extensão da própria história da humanidade provam o quanto a intelligentsia russa reagiu bem mal à era Brejnev. Não basta ser inteligente. É preciso também se esforçar na questão do desenvolvimento econômico, as causas da criminalidade e a formação do Estado, mesmo que esses assuntos pareçam, às vezes, dominados por pessoas altamente corrompidas ou entediantes.
Em 1978, Soljenítsin afirmou o seguinte: “Em nossos países orientais, o comunismo sofreu uma derrota ideológica completa; é zero e menor que zero. Porém, os intelectuais ocidentais ainda olham para ele com interesse e empatia, e é justamente isso que torna tão imensamente difícil para o Ocidente resistir ao Oriente”. No entanto, o bloco soviético entrou em colapso sem a necessidade de violência para derrubá-lo, prevista por Soljenítsin e outros em 1978. No início do século XXI, já era evidente que as tendências intelectuais russas da década de 1980 não prevaleceram. O índice de aprovação de 53% de Stálin é uma indicação de que o comunismo não é “zero e menor que zero”.
Expulso do governo Reagan por ser muito antissoviético, o próprio historiador Richard Pipes observou, por exemplo, que Soljenítsin “é bastante inocente em relação ao conhecimento histórico”.[12] Fatos são coisas teimosas. O declínio da expectativa de vida russa sob o capitalismo de livre mercado, a duplicação da taxa de encarceramento, a manutenção contínua de Stálin na mente do povo russo – estas são manifestações do mesmo nó de problemas conectados ao tema da economia política e não religião, xadrez e física.
Soljenítsin colocou o dedo em algo. O intelectual oriental traiu o proletariado internacional nos anos 1980. Porém, enquanto o Ocidente tende a um pós-modernismo enfraquecido e dilui a marxologia na academia, temos certeza de que, mais uma vez, o Oriente poderá dar origem aos dragões intelectuais que Marx pensou que dele nasceriam.
Fontes:
[1] – http://news.bbc.co.uk/onthisday/hi/dates/stories/may/27/newsid_2495000/2495895.stm* O presente artigo foi publicado pela Maoist International Movement em 2004. Algumas datas existentes no texto original foram atualizadas.