Se dermos ouvidos aos cães de guarda da ordem estabelecida, os Coletes Amarelos são um movimento podre, portador das características mais repugnantes: violência, populismo (e poluicionismo), extremismo, racismo, antissemitismo, sexismo e homofobia. Mas falta ainda um ingrediente neste grande banquete da vilania: o conspiracionismo. A mídia e os comentadores dominantes vilipendiam o movimento pela sua suposta grande permeabilidade às fake-news e teorias da conspiração – notadamente após o atentado de Estrasburgo –, enriquecendo assim a gama de calúnias tão desonestas quanto degradantes lançadas sobre os Coletes Amarelos em uma tentativa de os desmerecer, de os dividir, e de enfraquecer o amplo apoio popular do qual eles desfrutam.
Ao mesmo tempo, esses caçadores de informações patenteadas minimizam ou ignoram totalmente os vários insultos à verdade cometidos pelos representantes do poder e seus ajudantes. O que é um bom presságio para a aplicação da “lei contra informações falsas” adotada pela Assembleia Nacional francesa em novembro. Para dar uma melhor medida do jogo de dois pesos e duas medidas em curso, nós apresentamos aqui – em ordem cronológica – doze casos de fake-news de origem macronista. O artigo terá duas partes. A lista com toda a certeza não é exaustiva…
Fake news nº1: os Coletes Amarelos reunidos no Champs-Élysées são amotinados de extrema-direita
– Quem? Christophe Castaner (ministro do Interior)
– Quando? 24 de novembro de 2018
– O que? Ao meio-dia, logo em seguida ao “ato II” do movimento dos Coletes Amarelos, o ministro do Interior Christophe Castaner deu uma coletiva de imprensa na frente da prefeitura de polícia da capital. Vejamos seu diagnóstico da situação: “Em Paris, nós vemos uma evolução, ao chamado de Marine Le Pen, que convidou os manifestantes a virem aos Champs-Élysées. Efetivamente, algo próximo de 5 mil pessoas estão mobilizadas. Mas o que se constata é que hoje a extrema-direita, a extrema-direita [é necessário repetir este elemento de linguagem importante] se mobilizou, e está tentando montar barricadas nos Champs-Élysées”.
Um pouco depois, o Ministro do Interior se superou ao afirmar que os manifestantes eram “amotinados [séditieux] que responderam ao chamado específico de Marine Le Pen [nova repetição] e que querem desacreditar as instituições e desacreditar os parlamentares da maioria”. Através dessas colocações fortemente insinuantes, o sr. Castaner sugere que a maioria dos Coletes Amarelos reunidos nos Champs-Elysées são amotinados de extrema-direita que teriam respondido a uma convocação da presidente do partido Frente Nacional.
– Os fatos: Na véspera da demonstração, Le Parisien vazou uma nota confidencial da direção de inteligência da prefeitura de polícia de Paris (DRPP); nela, antecipava-se a presença de 80 a 120 militantes de extrema-direita. Na tarde do dia 24, a BFM-TV noticiava: “Segundo a prefeitura de polícia, uma centena de militantes de extrema-direita estaria entre as fileiras amarelo fluorescentes”.
Os testemunhos de Coletes Amarelos que estavam no local também desmentem as “observações” de Christophe Castaner (alguns exemplos: France Bleu, La République du Centre, Cnews). Europe1 afirma que aproximadamente “200 militantes de extrema-direita participaram dos excessos em Paris”, militantes de “grupos como Geração Identitária ou do GUD”.
Entre as 103 pessoas detidas – das quais 101 ficaram sob custódia policial –, nenhuma apresenta filiação de extrema-direita ou algum antecedente criminal (ver RTL, BFM-TV ou LCI); segundo o France Inter, “ninguém havia sido identificado anteriormente pelos serviços de inteligência, seja como militante de extrema-direita ou de extrema-esquerda, o que foi confirmado durante os interrogatórios. Ninguém reconheceu fazer parte de qualquer movimento extremista”.
As asserções precipitadas e mentirosas de Christophe Castaner tiveram antes de tudo uma função de intimidação. Tratava-se de meter medo aos Coletes Amarelos – e a seus simpatizantes –, de os dissuadir de se manifestar e de convocá-los a se dissociarem de um movimento de “subversão de extrema-direita próximo a Marine Le Pen”. Essa imagem de uma mão oculta comandando as marionetes, utilizada depois de muitas décadas no cenário político francês, é tão grosseira quanto indigna, mas isto não impede que os clones macronianos façam, a partir dela, sua máxima triunfante: “somos nós [neoliberais] ou a extrema-direita”.
Fake news nº2: um Colete Amarelo fez uma saudação nazista nos Champs-Élysées
– Quem? Team Macron (uma importante conta de Twitter, semi-oficial, dedicada à defesa de Macron), Naïma Moutchou (deputada do LREM (Em Marcha!)[1], relatora da lei relativa à luta contra falsas informações).
– Quando? 24 de novembro de 2018
– O que? Segundo a Team Macron, um curto vídeo extraído de uma reportagem da BFM-TV nos Champs-Élysées – ainda no ato II – mostra um Colete Amarelo fazendo uma saudação nazista. Os e-cachorrinhos do presidente comentam: “Tranquilo, uma saudação nazista nos Champs-Élysées” (com as hashtags #NãoVouAo24, #24novembro, #coletesamarelos).
Naïma Moutchou, relatora da “lei anti-fake news”, compartilha a imagem e escreve: “Paris 1940? Não, não: Paris 2018! Vergonha daqueles que atropelam assim a República. Que eles saibam que suas manobras não mudarão nada: nós vamos continuar a transformar o país e vamos responder à cólera dos nossos concidadãos que se manifestam a respeito da lei” [2]. Abundam outros membros da LREM que agiram desta forma.
Em suma, os herdeiros de Jacques Doriot [3] estão bravateando nos Champs-Élysées em meio a Coletes Amarelos culpavelmente passivos, mas a “macronsfera” defenderá a República até o último tweet.
– Os fatos: se você se der ao trabalho de ouvir o som do vídeo (como fez o France 2), o erro da Team Macron & cia se revela de uma dimensão jupiteriana: passando na frente da câmera da BFM-TV, o Colete Amarelo em questão diz: “Ave, Macron!” fazendo uma saudação… romana. Se trata portanto do aceno irônico de um “gaulês refratário”.
Sob a lei contra a manipulação de informação, tendo sido definitivamente adotada pela Assembleia Nacional – apesar de rejeitada pelo Senado – alguns dias antes (20 de novembro), Naïma Moutchou dá o exemplo apagando o tweet no qual ela transmitia uma fake-news bem duvidosa. No dia 28 de novembro, ela fez uma errata auto-indulgente. Por outro lado, se desculpar ao Colete Amarelo piadista e aos outros manifestantes que ela difamou na tentativa de fazê-los passar por neonazis estava claramente para além de sua capacidade de arrependimento.
Quanto à Team Macron, ela mantém a posição (e a reforça) com um tweet enviado no 25 de novembro: “que ele tenha dito ‘ave Macron’ ou qualquer outra coisa não muda nada na natureza do gesto que é claramente uma saudação nazista”. Errare humanum est, perseverare diabolicum…
Fake news nº3: foi a praga marrom que se manifestou nos Champs Élysées, não os Coletes Amarelos
Nota do tradutor: “praga marrom” (peste brune) é um termo francês criado durante a Segunda Guerra para designar o nazismo, fazendo referência à cor do uniforme dos soldados alemães. Atualmente é utilizado para designar os movimentos neonazistas.
– Quem? Gérald Darmanin (ministro da Ação e das Contas Públicas)
– Quando? 25 de novembro de 2018
– O que? Recebido no programa O Grande Júri na LCI/RTL/Le Figaro, Gérald Darmanin declara, a propósito da manifestação da véspera nos Champs-Élysées: “Não são os Coletes Amarelos que se manifestaram, foi a praga marrom que se manifestou”. Dois jornalistas protestam timidamente diante dessa declaração que lhes parece um pouco exagerada, mas o ministro persiste e assinala: “não é porque você coloca um colete amarelo que você não tem (…) uma camisa marrom por baixo”.
O sr. Darmanin é, portanto, formal: todos os Coletes Amarelos reunidos nos Champs-Élysées no 24 de novembro – 5 mil pessoas segundo os números atrofiados do ministro do Interior – eram neonazistas.
– Os fatos: O tom da avaliação é próximo daquele da coletiva de imprensa de Christophe Castaner na véspera, mas tendo o bônus de uma acusação ainda mais infamante e de uma ausência de ambiguidade na generalização. Para o ex-membro do partido “Os Republicanos”, Gérald Darmanin [4], a totalidade dos manifestantes presentes na mais célebre avenida de Paris eram seguidores amarelo-fluorescentes de Jacques Doriot. Depois da extrema-direita, a praga marrom… é difícil ir mais longe na estupidez e na ignorância.
Como vimos acima, é radicalmente falsa a afirmação de que os Coletes Amarelos reunidos nos Champs-Élysées, incluídos aqueles qualificados como “vândalos”, tenham qualquer coisa a ver com o nazismo. A grande maioria (pelo menos 95%) nem sequer vem da extrema direita. E o sr. Darmanin o sabe muito bem. Sua mentira abjeta – que contribui a espalhar um clima de ansiedade – visa unicamente difamar o movimento dos Coletes Amarelos, a quebrar a franca solidariedade de que ele goza entre o povo.
Para além disso, é irresponsável relativizar dessa forma a realidade do neonazismo, podemos ver aí uma forma de revisionismo impensado. De fato, se foi a praga marrom que se manifestou no dia 24 de novembro de 2018 nos Champs-Élysées, então como qualificar o desfile da Legião de Voluntários Franceses contra o Bolchevismo (a dita LVF) que tomou lugar nessa mesma avenida no dia 27 de agosto de 1943?
Fake news nº4: os Coletes Amarelos hastearam fogo na Galeria Nacional do Jeu de Paume
– Quem? Team Macron
– Quando? 1º de dezembro de 2018
– O que? Retuitando um curto vídeo filmado pelo jornalista britânico independente Peter Allen na proximidade do Jardim das Tulharias durante o ato III, a Team Macron (de novo eles) credencia a afirmação que o acompanha e escreve: “Os #coletesamarelos atearam fogo à galeria nacional do jeu de paume…” e os fanáticos de júpiter acrescentam: “mas quando acabará a mansidão contra [sic] o movimento mais abertamente odioso, racista e violento que nós conhecemos depois dos anos 30?”. Relembremos que, apesar de parecer, a Team Macron não é uma conta humorística.
Ainda estamos no registro da praga marrom: Coletes Amarelos, como os nazistas, atacam a cultura, queimando um templo de arte.
– Os fatos: Uma van estacionada ao lado do museu foi incendiada, mas o prédio não foi atingido pelas chamas. Os vidros, por outro lado, foram quebrados e alguns “Coletes Amarelos” tentavam entrar. A direção do Jeu de Paume declarou em seguida (no 3 de janeiro) aos jornalistas da rúbrica “CheckNews” do site Libération: “não houve intrusão no edifício nem nenhum incidente grave a lamentar”.
A Team Macron – que aplaude a repressão policial sem jamais mostrar suas consequências sangrentas – tendo apagado seu tweet, foi interpelada pela conta Não Precisava Apagar, que escreveu: “Grande dia para a @TeamMacronPR que acaba de apagar um segundo tweet…”. A equipe de choque respondeu: “Melhor do que dizer besteira, né?”. Mas quando acabará a mansidão dos macronistas contra eles mesmos?
Quando você quer reagir com calor, fazer sensacionalismo, e quando você instala lentes anti-amarelas muito grossas nos seus óculos, as “besteiras” são inevitáveis. Nós veremos a seguir que a performance deselegante da Team Macron não parou por aí.
Fake news nº5: Milhares de pessoas irão a Paris para quebrar e matar
– Quem? Palácio dos Elísios [sede do governo francês], Jacqueline Gourault (ministra da Coesão Territorial e das Relações entre Coletividades Territoriais).
– Quando? 5 de dezembro de 2018
– O que? Ao anoitecer, o Palácio dos Elísios informa ao Franceinfo que a manifestação em Paris do sábado dia 8 – ato IV – corre o risco de ser “de uma grande violência”. A presidência diz que a descoberta é “extremamente perturbadora” e que é de se esperar que “um núcleo duro de vários milhares de pessoas” varrerá a capital “para quebrar e matar”. Como reporta o France Inter, o Palácio dos Elísios antecipa uma chegada massiva de “sediciosos” e “putschistas” sedentos de sangue e de destruição.
Perguntada no dia 6 sobre essas previsões assustadoras por Jean-Jacques Bourdin na BFM-TV, Jacquelie Gourault, ministra da Coesão Territorial, não desmente nem nuança. No mesmo dia, o hebdomadário Valeurs actuelles – para o qual a ordem é um valor eterno – vai um passo além, no estilo ultra-ansioso que o caracteriza: “várias fontes dentro dos serviços de inteligência (SCRT e DRPP) estimam que em torno de ‘20 mil Coletes Amarelos querendo lutar e matar’ poderiam agir sobre o território no sábado. Nós esperamos uma probabilidade de risco de incêndio de ‘80 a 100%’, completa um especialista da ordem pública”.
O alerta apocalíptico do Palácio dos Elísios foi evidentemente reprisado em toda a mídia dominante. A mensagem enviada aos Coletes Amarelos é clara: “fiquem em casa”. E aos outros: “desassociem-se deste movimento criminoso”.
– Os fatos: Em Paris, no dia 8 de dezembro, 1.082 pessoas foram detidas – com frequência preventivamente – com uma custódia policial (à espera de interrogatório e julgamento, etc) por mais de 900 entre elas. No dia seguinte, Le Parisien escreve: “segundo nossas informações, nessa manhã de domingo, 396 pessoas sob custódia policial foram liberadas pois 108 erratas foram deferidas ao promotor de Paris, 284 processos foram arquivados e outros quatro casos aguardam decisão”.
Onde estão aqueles milhares de Coletes Amarelos vindos com o objetivo de quebrar e matar? Onde estão os elementos factuais – as famosas descobertas “extremamente perturbadoras” – que permitiram anunciar à França inteira que uma horda amarelo fluorescente faria escorrer sangue nas ruas da capital?
Como os Elísios não apresentaram e enquanto não apresentarem provas da existência desse exército de trucidadores em potencial – todos neutralizados ou dissuadidos de agir pelo dispositivo policial? – é legítimo considerar que estamos lidando com uma fake-news em boa medida destinada a aterrorizar. Com o agravante que se trata de uma profecia oficial trovejada pela enorme caixa de som midiática.
Fake news nº6: Steve Bannon orquestrou o movimento dos Coletes Amarelos
– Quem? Team Macron, Émilie Chalas (deputada da LREM), Coralie Dubost (deputada da LREM), Aurore Bergé (deputada da LREM, porta-voz do grupo na Assembleia Nacional).
– Quando? 5 de dezembro de 2018
– O que? No twitter, a Team Macron (sim, já vimos esse filme) exulta: “Urgente! O domínio do site giletsjaunes.com foi comprado em maio de 2017 (!!!), uma semana após a eleição de Emmanuel Macron e registrado em Denver, nos Estados Unidos”. Uma captura de tela mostra as informações relativas a este domínio. Conclusão desta revelação: “Seria bom que as pessoas começassem a se perguntar o que é que Steve Bannon faz na Europa…”. E voi-là, tudo se explica: o antigo estrategista Donald Trump está por trás do movimento dos coletes amarelos.
Três deputadas do partido presidencial saboreiam com prazer a descoberta no Twitter: Émillie Chalas (“Ah… então o Bannon…”), Coralie Dubost (“A realidade superará a ficção?!?”) e Aurore Bergé (retuitando essa Dubost), essa última sendo também a porta-voz dos deputados da LREM na Assembleia Nacional.
– Os fatos: Como mostrou muito bem o CheckNews do Libération.fr, o domínio giletsjaunes.com não foi comprado em maio de 2017, sua geração é anterior, de pelo menos dois anos. Em 2015, um site foi criado com esse nome, com o objetivo de contestar a reforma de ritmos escolares levada a cabo pelo Ministro da Educação Nacional da época, Vincent Peillon. O coletivo dessa iniciativa se chamava de “Coletes Amarelos” (em 6 de dezembro de 2014, o Le Monde publicou um artigo onde mencionava esse movimento).
Abandonado, giletsjaunes.com passa a ser em seguida propriedade de NameBright, uma sociedade que gere a reserva de nomes de domínio baseada em Denver, nos EUA. Esta o registra no dia 15 de Maio de 2015 e o coloca à venda. O endereço americano que figura na captura de tela brandida pela “Team Inspetor Bugiganga” corresponde então à localização da NameBright. No dia 23 de novembro, após o início do movimento dos Coletes Amarelos, o domínio é comprado de volta; nenhum site está ativo nele ainda.
Na noite do dia 6 de dezembro, as três deputadas da LREM apagam seus tweets; a Team Macron faz o mesmo e se justifica mais uma vez dizendo que “falaram besteira” (ver aqui), mas afirmando logo em seguida que: “falar besteira não é uma fake-news no sentido que a lei entende esse termo”. Em suma, viva o conspiracionismo autorizado!
O gerador de informações anti-Coletes Amarelos da macronada não está quebrado. Nós continuaremos a admirar suas maravilhas em uma segunda parte…
Notas:
[1] La République en Marche!, ou “A República em Marcha”, partido neoliberal de Emmanuel Macron.
[2] Moutchou se referia aqui à lei sobre o preço do combustível, que aumenta o custo de vida sob justificativa de preocupação ecológica.
[3] Notório colaboracionista e fascista francês.
[4] LR faz referência ao partido Os Republicanos (Les Républicains), de orientação gaullista e liberal-conservadora. São, portanto, herdeiros da principal corrente (em termos de poder político) do antifascismo francês, mas aderem a uma visão de mundo conservadora (oposição aos direitos LGBT e restrição aos direitos de imigração, etc) e a uma orientação econômica de cunho neoliberal.