Segundo a ministra Damares, “os conservadores estão no poder agora”. Cabe, então, a pergunta óbvia: o que os ditos “conservadores” querem conservar? Para além de questões comezinhas, para não dizer mesquinhas, como “identidade de gênero” e a cor da roupa das crianças, que nunca foram seriamente questionadas e não possuem caráter político (por não dizer respeito ao modo de organização social e institucional de uma coletividade)[1], o que se verifica é que os ditos “conservadores”, nos temas propriamente políticos, querem subverter de imediato a construção histórica do país.
Leis trabalhistas, previdência/seguridade social, empresas estatais estratégicas, soberania territorial, política externa de amizade e cooperação com os países latino-americanos, africanos e árabes, todas essas práticas e instituições, para a qual colaboraram, desde o século passado, sucessivos governos de diferentes ideologias (inclusive militares), estão sob fortíssima ameaça dos ditos conservadores. Ao invés desses zelarem pela conservação e aperfeiçoamento do arcabouço, eles buscam impor seus caprichos particulares (referendados por apenas 39% dos eleitores, muitos dos quais absolutamente ignorantes do que realmente representaria o governo Bolsonaro) à revelia da experiência histórica e das práticas consagradas em termos de soberania nacional, desenvolvimento, proteção social e diplomacia.
Os ditos conservadores, na verdade, procuram impor ao Brasil uma revolução permanente, de caráter ultraliberal, através das suas “reformas”, continuação e aprofundamento da agenda política lesa-pátria de Michel Temer e, em menor medida, Dilma 2. Para eles, não se trata, na verdade, de “reformar”, pois qualquer reforma supõe a conservação das bases assentes para promover melhorias sustentáveis e duradouras, amparadas por toda uma construção histórica coletiva. Trata-se de destruir arbitrariamente, sem colocar nada no lugar, diversas práticas e instituições que, ao longo do tempo, fizeram o Brasil ganhar contornos de Nação, não apenas de colônia.
Não há nenhum intuito de conservação e apreço pelo País quando Paulo Guedes defende, com histeria, privatizar tudo: recursos naturais, empresas, relações trabalhistas, previdência e até os prédios do IBGE.
Não há nenhum intuito de conservação e apreço ao país quando Ricardo Vélez Rodriguez ofende os brasileiros ao chama-los de canibais e ladrões e dizer que “a saída para a educação está na iniciativa privada”, além de nomear um liberal declarado que proclama a primazia do privado sobre o público e um menor papel para o MEC, desprezando o papel fundamental do setor público, mais que do privado, para a constituição do sistema educacional brasileiro, desde o século XIX.
Não há nenhum intuito de conservação e apreço ao país quando Ernesto Araújo rompe, sem qualquer decoro e mesmo senso de ridículo, a tradição diplomática pacifista, epitomizada pelo Barão do Rio Branco (patrono da diplomacia brasileira) e de aproximação comercial com os países árabes e africanos, levada a cabo, com bastante intensidade, durante a mesma ditadura militar (no governo Geisel, mais amplamente) defendida por Bolsonaro e seu clã. Tudo isso em prol de uma conduta belicosa para com a América Latina, em especial Venezuela, e patologicamente servil aos EUA e Israel, chegando ao ponto de defender a ocupação militar da Amazônia pelos EUA (evidentemente, como primeiro passo para a ocupação militar permanente, a exemplo da Colômbia) e a transferência da embaixada brasileira para Jerusalém, afrontando nossos antigos amigos árabes e a despeito inclusive de ameaças concretas (e justas) de bilionárias retaliações comerciais por parte deles.
As “reformas” em todos os níveis, preconizadas pelo governo Bolsonaro, têm por meta a realização da fantasia de “livre-mercado”, onde os indivíduos, movidos apenas por interesses econômicos, não se depararão com quaisquer obstáculos, seja materiais, culturais, territoriais, psicológicos etc. O único componente “nacional” que resiste, dentro das reformas bolsonaristas, é na verdade radicalmente anti-nacional, pois orientado exclusivamente para os EUA, que, assim como a Inglaterra em período anterior, é pródigo na defesa do ultraliberalismo para os outros países, visando colonizá-los. No modelo abstrato de “livre-mercado”, depurado de qualquer outro elemento que não o “econômico” (na visão individualista e competitiva de econômico, mais propriamente), não existe país, sociedade, tampouco personalidade. Seres humanos concretos, que se singularizam nas relações comuns com outros, tornam-se átomos movidos apenas pelo afã de ganhar dinheiro, desprovidos de história, de moral, de hábitos, de afetos, de inconsciente, enfim, de tudo que caracteriza as pessoas como de fato elas são.
A variedade de valores, condutas e interesses que se manifestam no cotidiano, muitas vezes fora da lógica de mercado (cuidar de familiares, conversar com os vizinhos, lavar a própria louça, namorar, fazer piquenique no final de semana; são atividades nas quais o utilitarismo mercantil em regra não adentra mas que constituem a maior parte da vida cotidiana das pessoas comuns) é negada pela política ultraliberal.
Essa última visa transformar a sociedade em uma mera empresa, uniformizando aquela variedade para apenas um propósito, o de gerar lucros, sobretudo para os financistas que, longe de produzirem algo, vivem de parasitar e governar as empresas e a sociedade através do mercado de capitais, verdadeiro cassino onde os países são apostados, com todas suas riquezas sendo desmaterializadas em valores e rematerializadas como fortuna na conta da minoria que comanda o financismo.
O teórico conservador Edmund Burke (1729-1797), aclamado, embora não estudado, pelos ditos conservadores brasileiros, era bastante receoso das políticas como as adotadas pelo governo Bolsonaro. No contexto da França do final do século XVIII, essas políticas, segundo ele, procuravam transformar o país em uma “nação de jogadores”, “desviando todas as esperanças e crenças do povo de seus canais usuais para deixá-lo apenas com os impulsos, as paixões e as superstições dos que vivem do azar”, em proveito de apenas uma minoria de burghers e banqueiros que comandava as especulações, às custas da maioria que era obrigada a jogar[2]. Como sempre, o “livre-mercado” não é espontâneo ou natural, nem deriva das transações inocentes entre reles indivíduos, mas é uma construção política deliberada por meio da instrumentalização do poder e das instituições por parte daqueles que Adam Smith chamava de “aventureiros”, que preferiam viver da especulação que do próprio trabalho.
Com o “livre-mercado” sendo imposto à sociedade através de um determinado tipo de política, o país é colocado na mesa de apostas do cassino financeiro, e nenhum aspecto da vida social do país fica imune ao efeito corrosivo do individualismo utópico de mercado institucionalizado no cassino. A recolonização do país via ultraliberalismo não significa o retorno ao passado colonial, pois as condições mundiais e internas dos séculos XVI, XVII e XVIII não existem mais. Significa, pior ainda, a negação de qualquer futuro pátrio, com nossa gente e nosso território sendo esmigalhados pela “ordem global”, sequiosa de nossas riquezas naturais.
Engana-se quem pensa que tudo isso tenha algum limite. As “reformas”, sejam elas trabalhista, previdenciária, tributária, da diplomacia etc., são feitas para nunca acabarem [3]. Assim que aprovadas, por mais danosas e destrutivas que sejam à sociedade, logo os setores financistas e seus representantes alegam não serem suficientes, que a “política” (por vezes a “cultura” também) atrapalhou, e propõem mais uma rodada de desmonte.
Eles nunca se darão por satisfeitos, pois o modelo de livre-mercado que almejam realizar é, em sua totalidade, impraticável por negar a natureza social, moral e psicológica do ser humano além de buscar destruir, de súbito, instituições historicamente enraizadas na realidade brasileira e que constituem o substrato concreto e rígido de boa parte do Brasil como o conhecemos. Para quem deseja a subversão de tudo, qualquer ação prática, por mais profunda e avassaladora que seja, sempre será incompleta, ensejando uma pressão permanente por mais e mais destruição, sem medir as consequências coletivas. Os “conservadores no poder”, longe de conservar as bases do país, impõem uma verdadeira “revolução permanente” de subtração ilimitada dessas bases, derivada da desmedida ambição dos grupos que eles defendem e do caráter utópico do seu projeto político, tão irrealizável quanto destrutivo e colonizador.
Cabe então à esquerda assumir o papel efetivo de “conservadores”, não no sentido vulgar de defesa militante de preconceitos morais e exclusões sociais, mas no sentido político de conservar as bases históricas da formação brasileira (unidade e soberania territorial, Estado social e desenvolvimentista da Era Vargas, diplomacia pacifista e de amizade com todos os povos), ameaçadas pelo radicalismo ultraliberal e colonizado do atual governo, para aprimorá-las e torná-las ainda mais robustas e úteis ao desenvolvimento material e social do nosso país. Nossa história tem muito a nos legar em termos de construção de uma nação unida, soberana, desenvolvida e solidária, tanto que a revolução ultraliberal busca eliminar tudo isso para, em última instância, destruir o Brasil como um todo. Como defendeu Augusto Comte: nenhum aperfeiçoamento é possível sem a conservação, pois só é possível melhorar o que já existe e é mantido.
Notas:
[1] É curioso que conservadores e identitários pós-modernos compartilhem o mesmo afã de politizar a intimidade, o que se torna menos intrigante quando se considera a matriz anglo-saxã e individualista de ambas as ideologias. [2] Cf. BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução na França. São Paulo: Edipro, 2014. p. 204-205 [3] Ver, por exemplo, posições de Marcos Lisboa (https://oglobo.globo.com/economia/marcos-lisboa-ou-previdencia-ou-cortar-saude-educacao-ou-nada-23460165), do Instituto Mises (https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2844) de Salim Mattar, secretário de desestatizações do governo Bolsonaro (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/02/vamos-reprivatizar-a-vale-diz-salim-mattar.shtml), e de um eminente ultraliberal acerca do território brasileiro: (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/leandro-narloch/2017/11/1938886-e-se-o-brasil-vendesse-a-soberania-de-partes-do-seu-territorio.shtml)