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O Franco e a colonização da África: sobre o aprofundamento das contradições franco-italianas

Enquanto o Franco francês desapareceu depois de muito tempo, sua zona monetária continua preservada na África, em grande parte sob controle da França.
por Valentin Katosonov | Strategic Culture – Tradução a partir de Le Saker Francophone, em francês, por João Melato, para a Revista Opera
(Arte: Pedro Marin)

Os escândalos diplomáticos fornecem, às vezes, boas oportunidades para descobrir alguns detalhes da estrutura do sistema internacional. Um desses escândalos veio à tona no final de janeiro. No dia 20 de janeiro, Luigi Di Maio (dirigente do movimento “Cinco Estrelas”, vice-primeiro ministro e ministro do desenvolvimento econômico da Itália) deu uma declaração. Nela, ele exigiu a instauração de sanções econômicas contra a França por conta da colonização da África. O líder da “Liga do Norte”, Matteo Salvini, colocou lenha na fogueira, concordando com seu colega e dizendo que “a França está entre aqueles que roubam as riquezas da África”.

As acusações de colonialismo francês vindas da Itália ressoam há um bom tempo, e foram intensificadas especificamente no final do ano passado, com o início do movimento de massas dos “Coletes Amarelos” na França. No dia 7 de janeiro, Di Maio exortou aos manifestantes que não desanimassem, e chegou a propor apoiá-los com auxílio logístico.

Roma encarou com bons olhos o programa de 25 pontos dos Coletes Amarelos. A exigência número 23 é de que a França ponha um fim à sua política colonial na África [1]. Segundo Di Maio, o afluxo de imigrantes africanos na Europa se deve ao fato de que a França, com sua política colonial, tornou as condições daquele continente insuportáveis para seus habitantes. Quando a exploração colonial da África cessar, o afluxo de africanos na Europa também cessará. Além disso, na pessoa de Di Maio, a Itália pela primeira vez demandou a aplicação de sanções econômicas contra Paris. Como se não bastasse, Di Maio desnudou uma das ferramentas importantes do colonialismo francês: o Franco.

“A França”, disse o político italiano, “é um dos países que imprimem a moeda de 14 Estados africanos…”. Ele chamou essa moeda de Franco, mas não se trata do Franco com o qual os franceses faziam suas transações diárias por séculos e que foi substituído pela moeda europeia comum, o Euro, em 2002. Trata-se do Franco africano, ou Franco CFA (CFA – Colônias Francesas da África). Esse é o nome geral dado à moeda de 14 países africanos da zona monetária do Franco.

Assim, enquanto o Franco francês desapareceu depois de muito tempo, a zona monetária do Franco continua preservada. A formação da Zona do Franco está associada à segunda metade do século XIX, com o início da emissão de notas destinadas às colônias francesas por parte de bancos privados na metrópole. Ela se consolida em 1939 e é reconhecida pela lei na década de 1950. A Zona do Franco chegou a se espalhar por muitas partes do mundo, mas hoje sobrevive apenas no continente africano.

Fora da África, há o Franco CFP, Franco das colônias francesas do Pacífico, que circula em Nova Caledônia, na Polinésia francesa e em Wallis e Futuna. A emissão dessa unidade monetária é efetuada pelo Instituto de Emissão do Ultramar (IEOM), cuja sede é em Paris. A França possui também territórios ultramarinos no Caribe e no oceano Índico (departamentos). Esses são Guadalupe, Guiana, Martinica, a Reunião, Mayotte e São Pedro e Miquelon. Nesses países, o Euro é utilizado como moeda emitida pelo Instituto dos Departamentos do Ultramar (IEDOM). Gozando de independência externa, os dois centros de emissão estão porém sob o controle informal do Banco da França.

Voltemos ao Franco CFA. Essa moeda nasceu em 1945 por decreto do governo francês como a moeda das possessões francesas na África ocidental e equatorial. A taxa do franco africano esteve ligada à moeda-mãe seguindo uma paridade fixa com o franco francês (1,70 francos franceses = 1 franco CFA – 26/12/1945). Hoje, o Franco CFA é o nome de duas moedas comuns a vários países africanos.

A primeira delas é o Franco de oito países da África ocidental que formam a União Econômica e Monetária do Oeste Africano (UEMOA): Benim, Burkina Faso, Costa do Marfim, Guiné-Bissau, Mali, Níger, Senegal e Togo. O código do Franco africano ocidental é XOF. Ele é emitido pelo Banco Central dos Estados da África do Oeste (BCEAO), cuja sede é em Dakar (Senegal).

O segundo tipo de Franco africano serve seis países da Comunidade Econômica dos Estados da África Central (Camarões, República Centro Africana, Chade, República do Congo, Guiné Equatorial e Gabão). Seu código é o XAF. Ele é emitido pelo Banco dos Estados da África Central (BEAC), cuja sede fica em Yaoundé (Camarões).

Os dois tipos de Franco africanos possuem uma paridade fixa com o Euro; atualmente, a taxa de câmbio para 1 euro é de cerca de 656 francos CFA. A paridade fixa das duas variações do Franco CFA é de 1:1. Hoje, o Franco CFA é a moeda mais comum no mercado continental africano (pelo número de países que a utilizam). Os dois institutos de emissão mencionados –  o Banco Central dos Estados da África do Oeste e o Banco dos Estados da África Central – colaboram estreitamente com o Banco central francês. Para ser franco, eles não são bancos centrais, e sim comitês monetários (currency boards).

A afirmação dos políticos italianos de que a França continua a explorar suas antigas colônias africanas é, em grande parte, válida. A França garantiu aos países africanos uma conversão do Franco em Euro a uma taxa fixa; essa é a essência do mecanismo de comitê monetário (currency board) e é atraente para os Estados africanos. Contudo, esses últimos devem conservar suas reservas internacionais em euros em uma conta especial do Tesouro francês (não inferior que dois terços de todas as reservas). Ao mesmo tempo, o Banco da França institui um controle estrito das políticas dos dois institutos de emissão africanos. As autoridades monetárias francesas (o Tesouro e o Banco da França) não informam ao BCEAO ou ao BEAC a maneira com a qual gerem as reservas internacionais dos países africanos nem a renda que extraem dali. Os países africanos não possuem assim a possibilidade de utilizar suas reservas de maneira independente. Eles só conseguem receber uma parte dessas reservas sob a forma de empréstimos (não superiores que 20% do total das reservas).

O jornalista alemão Ernst Wolff chama atenção para o fato de que as perturbações atuais na França (o movimento dos Coletes Amarelos) podem se propagar às antigas colônias, que continuam a alimentar o bem-estar da antiga metrópole:

“As manifestações dos Coletes Amarelos na França não estão se acalmando, e já custaram muitas noites em claro a Macron. Mas o pior cenário para o desenvolvimento dos eventos seria o de que as manifestações se propagassem para as antigas colônias de seu país. Ainda que elas tenham obtido oficialmente sua independência na década de 60, esses países não conseguiram se liberar completamente das correntes de seus mestres coloniais: eles servem, assim como antigamente, à indústria francesa e à elite financeira, com suas riquezas naturais. Sobretudo o petróleo, o gás natural e os minerais. E seus trabalhadores constituem um mercado ultra benéfico”.

Após a declaração de Di Maio sobre o colonialismo francês, uma série de publicações decifrando os detalhes do tabuleiro começou a sair. Assim, sete países da zona do Franco CFA são considerados como os países mais pobres do mundo, e dois terços de suas populações são obrigadas a viver com menos de dois dólares por dia. Verificaram-se também as declarações precedentes de Di Maio. Por exemplo, ele havia sugerido que sem a exploração dos recursos do continente negro, a França estaria em condições de ser, na melhor das hipóteses, a décima quinta maior economia do mundo, e não a sexta, como é.

A França reagiu duramente a esses ataques. O Ministério dos Negócios Estrangeiros francês convocou o embaixador italiano para prestar explicações. Os comentadores europeus avaliam que a declaração de Di Maio constitui uma linha de ação deliberada das forças que conquistaram o poder na Itália. Há quem pense que a declaração de Di Maio é uma vingança pela perda da posição italiana na Líbia, uma vez que, quando Berlusconi estava ao poder em Roma, ele tratava de melhorar suas relações com Gaddaffi, ao passo que o presidente francês Nicolas Sarkozi provocou uma guerra que levou à queda do dirigente líbio. Como consequência, a Itália perdeu sua posição na Líbia e, nesse momento, quase todas as posições africanas estão sob controle da França. Roma busca eliminar esse monopólio [2].

Pode-se lembrar também que o líder da “Liga do Norte”, Matteo Salvini, e a presidente do “Encontro Nacional” na França, Marine Le Pen, anunciaram a aliança de seus esforços nas próximas eleições ao Parlamento Europeu em maio. “Matteo Salvini e eu não combatemos a Europa, nós lutamos contra a União Europeia que é um sistema totalitário, nossa luta visa a salvar uma verdadeira Europa”, declarou Le Pen. Enquanto o presidente francês Emmanuel Macron apresenta sua “Iniciativa pela Europa” e insiste no reforço da integração europeia, os políticos italianos apoiam abertamente a sua principal rival, Marine Le Pen.

As autoridades francesas, é claro, revidam fogo com fogo. Cada vez mais, em Paris, declarações críticas são endereçadas à Itália, tida como o elo fraco da União Europeia; especula-se a possibilidade de propor sanções a Roma por violação da disciplina financeira da UE (em particular pelo déficit fiscal excessivo do Estado italiano em 2019). Os observadores chamam atenção ao fato de que, no Fórum de Davos, a presidente do FMI descreveu a Itália como “um dos maiores riscos para a economia mundial”. A imprensa italiana recordou imediatamente que a diretora do Fundo, Christine Lagarde, é francesa.

Nos próximos meses, os conflitos relativos ao futuro da “Europa Unida” irão se intensificar. Na Itália, se insistirá no tema do colonialismo francês. É evidente que o objetivo dos italianos não é eliminar este colonialismo, mas enfraquecer a posição de Macron às vésperas das eleições europeias. E também impedir a implementação dos planos de Macron, que visam a destruição dos restos de soberania dos Estados-membros da UE.

Notas do tradutor:

[1] Refere-se ao manifesto não-oficial, mas bastante difundido entre os Coletes Amarelos, com “25 propostas para sair da crise”. O jornal Libération publicou uma matéria onde tentou averiguar quem são seus autores (que preferiram manter seu anonimato) e quais proximidades políticas esse documento aponta. Concluiu-se por uma proximidade muito grande com o programa da União Popular Republicana (UPR), apesar de seus escritores terem afirmado ao jornal que são abstencionistas. Alguns líderes públicos dos Coletes Amarelos, embora tenham afirmado não ter tido parte na escrita do documento, afirmaram concordar com o grosso de seu conteúdo.

[2] Embora o autor do texto não o mencione, as contradições franco-italianas já se desenvolvem de forma próxima a uma “guerra por procuração” na mesma Líbia onde Gaddaffi fora derrubado em 2011. Enquanto Paris presta seu apoio militar às milícias de Khalifa Haftar, chefe do braço militar do governo não-reconhecido, Roma entrou em negociações diplomáticas com as milícias que apoiam o governo oficial de Faez Sarraj, com o objetivo de amenizar a imigração de líbios à península itálica, e acabou por estabelecer relações sólidas e comerciais com Sarraj. Embora as influências francesas e italianas não tenham sido mobilizadas em um combate direto entre ambos os grupos, é significativo que cada um dos dois tenha estabelecido relações com duas das principais forças militares da Líbia, uma hostil em relação à outra. Assim como aconteceu com o Iraque, a derrubada de Gaddaffi em 2011 não foi seguida por uma transição tranquila, mas mergulhou o país no caos e numa guerra civil entre grupos milicianos que fez inclusive renascer os mercados de escravos a céu aberto. Resta saber até que ponto irá a disputa pela influência em território africano levar a França e a Itália e se os antigos aliados da Tríplice Entente podem ou não enfrentar-se novamente em confronto militar direto, coisa que não acontece desde 1945. Nos campos comercial e diplomático, porém, os dois países já estão em estado de guerra não-declarada.

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