Em 19 de fevereiro, a maioria democrata do Comitê de Supervisão e Reforma do Governo da Câmara dos Estados Unidos divulgou um relatório preliminar de saltar os olhos. Baseado no depoimento de “múltiplos” denunciantes, o relatório revela que o governo Trump está empenhado em uma corrida frenética para empurrar a venda de reatores nucleares para a Arábia Saudita sem consultar o Congresso.
Vários dos indivíduos que estão promovendo o acordo, incluindo nosso velho amigo general Michael Flynn, são compadres de Trump dentro e fora do governo, capazes de matar para que a negociação seja concluída. Se ao menos o Irã tivesse o bom senso de comprar armas nucleares de amigos de Trump, nunca teria enfrentado sanções ou a ameaça de uma invasão norte-americana.
Vender reatores nucleares para os sauditas deveria causar alarme. O reino afirma que precisa de reatores nucleares (atualmente não tem nenhum) para atender às crescentes necessidades de energia. Contudo, o relatório interino da Câmara afirma que “especialistas temem que a transferência de tecnologia nuclear americana possa permitir que a Arábia Saudita produza armas nucleares que contribuam para a proliferação de bombas nucleares em um instável Oriente Médio”. Os sauditas estão insistindo para que o acordo lhes dê o direito de enriquecer urânio e reprocessar plutônio a partir do combustível de um reator nuclear usado. A capacidade de enriquecimento e reprocessamento permitiria aos sauditas ir em um curto espaço de tempo de um programa nuclear civil pacífico para a produção de uma bomba. Durante uma entrevista ao programa “60 Minutes”, que foi ao ar no dia 18 de março de 2018, o príncipe herdeiro Mohammad bin Salman (“MBS”, como é conhecido), disse: “A Arábia Saudita não quer adquirir nenhuma bomba nuclear, mas, sem dúvida, se o Irã desenvolver uma bomba nuclear, seguiremos o mais rápido possível”.
Não há sinal de que isso atrapalhe Trump. Nada que os sauditas fazem incomoda o presidente (talvez Trump só goste de quem usa túnicas brancas). O Congresso, entretanto, incluindo muitos republicanos, já aturou os sauditas o suficiente. Como a maioria de nós, o Congresso ficou chocado com o assassinato do jornalista do Washington Post, Jamal Khashoggi, em 2 de outubro de 2018, aparentemente por ordens pessoais de Bin Salman. Trump, por outro lado, mantém sua fidelidade ao príncipe herdeiro. Suspeita-se que Trump defenderia o príncipe herdeiro mesmo que Bin Salman tivesse dado um tiro em Khashoggi no meio da Quinta Avenida, em Nova York.
Em 13 de fevereiro, em uma impressionante repreensão ao presidente, a Câmara aprovou com 248 votos a 177 para que fosse invocada a Resolução dos Poderes de Guerra, acabando com o apoio dos EUA à guerra genocida dos sauditas no Iêmen. A medida agora vai para o Senado.
O Congresso pode pressionar os requisitos para acordos de cooperação nuclear, como a venda prospectiva de reatores da Trump para os sauditas. Acordos de cooperação nuclear (“123 acordos”) são regulados pela Lei de Energia Atômica de 1954. Infelizmente, a Lei de Energia Atômica não exige que o Congresso dê consentimento para uma transferência nuclear. O Congresso, no entanto, pode vetar uma transferência. Uma nova legislação, chamada Lei de Proliferação Nuclear Saudita, mudaria isso. O projeto, apresentado no Senado em 28 de fevereiro, reforça a Lei de Energia Atômica, exigindo que as transferências de tecnologia nuclear dos EUA para a Arábia Saudita sejam aprovadas pelo Congresso.
Se o acordo nuclear de Trump morrer, como deveria, a Rússia, a China, a Coreia do Sul e a França também apresentaram propostas para construir os reatores sauditas. Cada um desses fornecedores alternativos tem desvantagens fatais. Henry Sokolski, diretor executivo do Centro de Educação de Políticas de Não-Proliferação, escreve que “se a Arábia Saudita compra da Rússia, está pedindo a Moscou para deixar que o Irã saiba exatamente que o que o reino saudita está fazendo é se tornar um reino nuclear”. Reatores que China e França estão construindo no exterior são atrasados e demasiadamente caros. Os reatores da Coreia do Sul incorporam a tecnologia americana, o que significa que o Congresso americano tem o poder amparado pela Lei de Energia Atômica de bloquear a venda de um reator saudita-coreano.
Nicholas Kristof, do New York Times, observa:
“Trump parece acreditar que os sauditas nos deixaram sem saída: se não os ajudarmos com a tecnologia nuclear, alguém o fará. Isso é uma incompreensão sobre o relacionamento entre os EUA e Arábia Saudita. Os sauditas dependem de nós para sua segurança, e a verdade direta é que nós temos todas as cartas nesse relacionamento e não eles.”
A conexão Paquistão
Pode haver uma maneira mais fácil para os sauditas adquirirem armas nucleares do que construindo suas próprias armas. Encontrei esses parágrafos em um post de um blogueiro indiano:
“Os sauditas estão praticamente financiando a economia paquistanesa – US$ 3 bilhões em dinheiro, outros US$ 3 bilhões em petróleo (com a facilidade de um pagamento prolongado) e algo em torno de US$ 20 bilhões em investimentos – o que torna o Paquistão um Estado-vassalo.
Além disso, os Emirados Árabes Unidos, que são estreitamente alinhados com a Arábia Saudita, estão entrando com outro pacote de ajuda de US$ 6,2 bilhões.”
Isso é muita grana. Como o Paquistão pagará de volta? Uma maneira é dar à Arábia Saudita uma bomba.
Rumores de um acordo ou entendimento sob o qual o Paquistão transferiria armas nucleares para o reino remontam à década de 1970, quando a Arábia Saudita financiou o projeto emergente de bomba nuclear do Paquistão. Em 22 de novembro de 2018, em uma matéria intitulada “Sauditas querem um acordo nuclear dos EUA. Eles podem ser confiáveis para não construir uma bomba?”, o New York Times observou que:
“O governo saudita forneceu o financiamento para o Paquistão construir secretamente suas próprias armas nucleares. Essa ligação financeira há muito tempo deixou as autoridades de inteligência americanas imaginando se haveria um quid pro quo: que, se a Arábia Saudita sempre precisasse de seu próprio pequeno arsenal, o Paquistão poderia fornecê-lo.”
O Times prossegue dizendo que pode haver um entendimento de que, se a Arábia Saudita solicitar tropas do Paquistão, essas tropas trarão armas nucleares.
Em um artigo de 2011, Bruce Reidel, autor de Abraço Mortal: Paquistão, América e o Futuro da Jihad Global, observou que
“Alguns relatórios alegam que a Força Aérea Real Saudita [RSAF] mantém um par de aeronaves permanentemente instaladas no Paquistão para poder entregar a bomba a Riad em um curto espaço de tempo, se o rei pedir por elas [sic]. É impossível saber se esses relatórios têm alguma veracidade, mas a ideia faz sentido.”
O Paquistão e a Arábia Saudita negam que tenham um acordo nuclear. Contudo, Simon Henderson, especialista em energia do Instituto Washington para Políticas do Oriente Próximo, concorda que:
“A Arábia Saudita provavelmente já tem capacidade para armas nucleares, cortesia do Paquistão. A suposição é que os mísseis com ponta nuclear do Paquistão poderiam ser enviados para o reino, seja para aumentar a dissuasão saudita contra o Irã seja para salvaguardar parte da força estratégica do Paquistão em tempos de crise com a Índia.”
O Paquistão está atualmente em crise com a Índia, o que pode escalar para uma guerra nuclear. Por décadas, o Paquistão treinou, equipou e deu abrigo a grupos jihadistas que usa como procuradores para ataques à Índia. Em 13 de fevereiro, um ataque do grupo militante Jaish-e-Mohammad na Caxemira ocupada pelos indianos matou 40 policiais paramilitares indianos. A Índia acusou o Paquistão de apoiar o Jaish-e-Mohammad.
Desde então, cada lado realizou ataques aéreos no território do outro, e cada nação alegou ter derrubado aviões de guerra da outra. Houve disparos na Linha de Controle, que divide a Caxemira entre o Paquistão e a Índia. O primeiro-ministro paquistanês, Imran Khan, se reuniu com a Autoridade Nacional de Comando do país, que controla o arsenal nuclear do país. A crise pode espiralar em uma guerra em grande escala.[1]
O homem com a arma dourada
Christopher Clary e Mara E. Karlin previram em 2012 que “é provável que o Paquistão forneça tecnologia de armas nucleares [à Arábia Saudita] se estiver buscando substituir a ajuda dos EUA após uma possível ruptura futura no relacionamento [com os EUA]”. Queixando-se de que os paquistaneses “não fazem nada por nós”, o presidente Donald Trump cortou US$ 300 milhões em ajuda ao Paquistão em setembro. Como seus antecessores no Salão Oval, Trump se cansou das promessas vazias do Paquistão de reprimir grupos militantes que atacam as forças da OTAN no Afeganistão. Bush e Obama tentaram usar a pressão financeira para forçar o Paquistão a romper seus laços com militantes. Agora é a vez de Trump tentar o que nunca funcionou no passado. O perigo é que a pressão dos EUA pode sair pela culatra, aproximando o Paquistão de Riad.
Contraste o tratamento real que o Paquistão está recebendo de Riad. MBS fez uma visita de Estado ao Paquistão em fevereiro. Durante sua visita de dois dias, os paquistaneses trataram o príncipe herdeiro saudita como um astro do rock. O Paquistão distribuiu presentes a MBS, incluindo – sem brincadeira – uma metralhadora banhada em ouro. O júbilo do Paquistão é compreensível. Bin Salman prometeu ao Paquistão US$ 20 bilhões em investimentos sauditas, jogando uma tábua de salvação para o país, que está em uma de suas recorrentes crises fiscais. Comentaristas dizem que a MBS cimentou a adesão do Paquistão à aliança sunita contra o Irã.
Ficamos com um quebra-cabeça. Suponha que seja verdade que a Arábia Saudita possa obter armas nucleares do Paquistão a qualquer momento como pedir uma pizza. Isso significa que os sauditas estão dizendo a verdade e querem apenas reatores nucleares para gerar eletricidade? Então, por que Riad insiste no enriquecimento e reprocessamento como parte de um acordo de cooperação nuclear com Washington? A “compreensão” dos rumores dos sauditas com o Paquistão é falsa? Talvez sim, talvez não. Se a Arábia Saudita tiver um entendimento com o Paquistão, é para se proteger contra o Irã se tornar nuclear. Riad pode agora ter decidido construir sua própria bomba para se precaver contra uma Islamabad possivelmente não confiável – cobrindo-se em cima da cobertura.
Os sauditas podem não ser confiáveis com reatores nucleares. Porém, apesar das revelações do relatório do Comitê de Supervisão da Câmara, o governo Trump parece ainda estar avançando com a venda. Em 12 de fevereiro, o presidente Trump se reuniu pessoalmente com representantes da indústria nuclear norte-americana. Isso é esperado apenas de um presidente que não é dado a jogar com alguma segurança. Ou que é inteligente.
Notas:
[1] – Os militantes apoiados pelo Paquistão também estão causando problemas para o Irã. Um ataque suicida em 13 de fevereiro matou 27 membros da elite da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã. Este foi “um dos ataques mais mortais em anos contra o Irã”, segundo o New York Times. O Jaish al Adl (“Exército da Justiça”), baseado no Paquistão, sobre o qual o Times escreve, é ligado à Al-Qaeda e reivindicou a responsabilidade pelo ataque. A província do Sistão-Baluchistão, no Irã, onde ocorreu o ataque, faz fronteira com o Paquistão.