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Para não esquecer: os 20 anos da agressão da OTAN contra a Iugoslávia

Para a OTAN, enfraquecer e fragmentar a Sérvia sempre foi sinônimo do enfraquecimento da presença e influência da Rússia nos Bálcãs.
por Enrico Vigna | Global Research – Tradução de Gabriel Deslandes

Os verdadeiros problemas na província de Kosovo e Metóquia na década de 1990 foram provocados pelo separatismo e terrorismo albaneses, continuamente apoiados por algumas potências ocidentais. Esse apoio foi motivado por seus interesses geopolíticos: enfraquecer e fragmentar a Sérvia, para elas, sempre foi sinônimo do enfraquecimento da presença e influência da Rússia nos Bálcãs.

Para falar sobre esse episódio histórico, Enrico Vigna entrevistou o ex-ministro das Relações Exteriores da República Federal da Iugoslávia, Zivadin Jovanovic.

Enrico Vigna: 20 anos após o bombardeio da OTAN em 1999, as reais razões geopolíticas e geoestratégicas (militares, políticas e econômicas) da agressão estão sendo reveladas. Qual é sua opinião?

Zivadin Jovanovic: Agora, 20 anos depois da chamada “intervenção humanitária” ou “anjo misericordioso”, fica claro que se tratava de uma agressão ilegal descarada com objetivos geopolíticos. Primeiro, havia o propósito de obter uma justificativa para a implantação das tropas dos EUA mais perto da fronteira russa. As planícies do Kosovo se tornaram uma transportadora terrestre de tropas americanas. Depois de Camp Bondsteel – a maior base militar americana do mundo fora de território estadunidense, localizada no Kosovo –, os EUA estabeleceram uma cadeia de bases na Bulgária (quatro), na Romênia (quatro) e, assim por diante, até o Mar Báltico.

Segundo, o objetivo era criar um precedente para as futuras intervenções ilegais em todo o mundo –  Afeganistão (2001), Iraque (2003), a “Primavera Árabe” e a Líbia (2011), a Ucrânia (2014), a Síria e assim por diante. Usando o mesmo padrão, agora eles ameaçam abertamente a Venezuela, Nicarágua, Cuba e Irã. Assim, podemos dizer que as bombas e mísseis lançados em 1999 contra a Iugoslávia despedaçaram os Acordos de Potsdam, Teerã, Yalta, a Carta da ONU e a Declaração final de Helsinque. Geralmente, o alvo deles tem sido a ordem global construída com base no fim da Segunda Guerra Mundial. Isso é sensato?

Enrico Vigna: Qual é a situação política, social e econômica da Sérvia?

Zivadin Jovanovic: Apesar da oposição, que atualmente boicota o Parlamento, e das manifestações semanais, eu diria que o governo é legítimo e ainda estável. Se haverá eleições antecipadas em breve, isso não depende da força oposicionista, mas principalmente das necessidades táticas do partido governista – Partido Progressista Sérvio – relacionadas às negociações do Kosovo. Economicamente, a Sérvia está se recuperando moderadamente, com um aumento de 4% do PIB em 2018. Entretanto, o desemprego dos jovens, a fuga de cérebros para a Alemanha, Áustria e Suíça, a pobreza, o aprofundamento das desigualdades sociais e a alta corrupção permanecem sendo grandes problemas. O sistema corporativo liberal, que favorece os mais ricos por todos os meios, parece incapaz de resolvê-los. A Sérvia, “democratizada” pelos padrões da National Endowment for Democracy, está ainda abaixo dos níveis de vida dos anos 1980 do século passado.

Enrico Vigna: Conheço bem a situação da Província do Kosovo e Metóquia (Kosmet) diretamente e através da comunicação contínua com os nossos parceiros, como a SOS Kosovo-Metóquia e a SOS Iugoslávia. Somos a única associação italiana que opera na província sérvia. A situação ali é muito tensa, com risco de novas violências e conflitos. Em seu novo livro “Chave 1244 para a Paz na Europa” (presente em http://www.civg.it/), você defende a implementação da resolução 1244 do Conselho de Segurança da ONU como a única base para uma solução pacífica e sustentável. Qual é o verdadeiro futuro do Kosovo?

Zivadin Jovanovic: A agressão da OTAN em 1999 terminou com a resolução 1244 do Conselho de Segurança da ONU (10 de junho de 1999) que garantiu, entre outras coisas, a soberania e integridade territorial da Iugoslávia (Sérvia) e ampla autonomia para Kosovo e Metóquia dentro da Sérvia. Esse é um documento legal, universalmente vinculativo, acordado por todos os membros permanentes do CS/ONU. Para haver uma paz duradoura e sustentável, é necessário implementar esse documento em sua totalidade. Não só as partes que dizem respeito à Sérvia, mas todo ele. Não por causa da Sérvia, mas por causa da governança global e da paz na Europa. Essa resolução é um compromisso consolidado dos interesses dos povos sérvio e albanês, mas é, ao mesmo tempo, um compromisso de todos os agentes internacionais relevantes. Se, paralelamente, houvesse uma mudança de circunstâncias, seria difícil provar que tal mudança favoreceu os privilégios ou a excepcionalidade de qualquer poder em particular ou respaldou um conceito unipolar de dominação.

Oferecer à Sérvia um “acordo” para reconhecer o roubo do seu território nacional em troca de adesão à União Europeia oferece uma perspectiva bastante sombria, que definitivamente levaria a uma maior acumulação potencial de um conflito, regional e globalmente. Já nos esquecemos do exemplo de como as principais potências ocidentais estavam “salvando a paz” em Munique, em 1938? A destruição da República Socialista Federativa da Iugoslávia (1992-1995) foi o preço para manter a unidade da Comunidade Econômica Europeia. A Sérvia, com todas as suas experiências das últimas décadas, aceitaria agora a sua própria dissolução em prol da unidade com a União Europeia? É estranho e preocupante, na verdade, que alguém acredite que a Sérvia possa ser persuadida a aderir à OTAN enquanto esta assume um papel de liderança nos jogos de guerra próximos à fronteira da Rússia, ou que aceitaria as sanções “made in USA” impostas pela União Europeia!

Enrico Vigna: Como você vê o futuro do Kosovo e Metóquia e do povo sérvio que vive lá?

Zivadin Jovanovic: Na minha opinião, Kosovo e Metóquia deveriam gozar de ampla autonomia dentro da Sérvia, como previsto pela resolução 1244 do CS/ONU. Os albaneses deveriam ter a mais ampla autonomia em todas as esferas de suas vidas, da cultura e educação à economia e finanças. Isso exclui a secessão, o reconhecimento da independência ou a unificação com qualquer outro Estado. Todas as disposições da resolução do CS/ONU têm que ser implementadas na íntegra, incluindo o direito de cerca de 230 mil sérvios deslocados e outros não albaneses a retornarem livremente às suas casas e propriedades em segurança e dignidade. Juntamente com cerca de 130 mil sérvios que agora vivem na província, eles deveriam gozar de autogoverno dentro da autonomia provincial. A comunidade de distritos sérvios dentro da província pode ser uma estrutura que lhes forneça poder executivo.

Enrico Vigna: Qual é a situação do processo de integração à OTAN e à União Europeia na Sérvia?

Zivadin Jovanovic: Acredito que a neutralidade está entre os principais interesses da Sérvia. A OTAN é uma aliança militar ofensiva que intervém em todo o mundo pelos interesses das corporações multinacionais e pela dominação imperial norte-americana. Por outro lado, a Sérvia é um país pequeno e pacífico, com uma tradição bem diferente. Nunca pertenceu a nenhum bloco. Finalmente, a Sérvia não pode esquecer os crimes da agressão da OTAN, vítimas humanas, uso de urânio empobrecido e prejuízos econômicos de mais de US$ 100 bilhões. O que a OTAN fez à Sérvia em 1999 é um erro histórico, um ato inesquecível e vergonhoso que desonra a Europa e a democracia ocidental. Eles bombardearam até a embaixada chinesa em Belgrado, matando três cidadãos chineses. Quem acreditaria que isso foi um erro, como afirmou Washington?

Após a agressão da OTAN contra a Iugoslávia, em 1999, a Europa e a governança global se tornaram militarizadas. Na recente Conferência de Segurança de Munique, ninguém se opôs à opinião de que a desconfiança e as tensões globais nunca foram tão profundas e preocupantes como hoje, após o fim da Guerra Fria? No que diz respeito a todos os arsenais militares do planeta, particularmente os nucleares e a disseminação do desrespeito e até a aniquilação das normas e tratados internacionais básicos, a pergunta que se levante é se a maré de loucura pode ser detida, por quem e como.

Quanto à integração da Sérvia na União Europeia, penso que devemos ser cautelosos em ver primeiro o que acontece com a própria UE. A União Europeia demonstrou uma abordagem tendenciosa nas negociações sobre o futuro da província do Kosovo e Metóquia, favorecendo persistentemente os objetivos secessionistas de Pristina (capital do Kosovo) e os interesses geopolíticos dos EUA e da OTAN. Esse é um caminho sem saída e muito perigoso para o futuro da Europa. A Catalunha é apenas um lembrete. Todo o processo deve ser devolvido à esteira da ONU, possibilitando a participação ativa da Rússia e da China, juntamente com as potências ocidentais. Somente esse quadro pode garantir uma abordagem equilibrada e imparcial e uma solução sustentável.

Enrico Vigna: Após a recente visita de Putin a Belgrado, você considera mais forte a posição da Sérvia na defesa da independência nacional e da soberania?

Zivadin Jovanovic: A visita do presidente Putin à Sérvia forneceu uma substância concreta para a parceria estratégica de longo prazo e a cooperação entre os dois países. Cerca de 20 acordos diferentes foram assinados, abrangendo muitos campos de cooperação, desde o fornecimento de gás e a modernização da infraestrutura até a transferência de tecnologia nuclear para propósitos e cultura pacíficos. O presidente Putin reafirmou a firme posição de princípio da Rússia em apoiar a soberania e a integridade da Sérvia e uma solução pacífica para a questão do Kosovo e Metóquia, baseada no Direito internacional e no sistema jurídico sérvio. Como o papel da Rússia foi decisivo para deter a agressão da OTAN em 1999 e aprovar a resolução 1244 no CS da ONU, quem realmente poderia reivindicar hoje, 20 anos depois, que a solução duradoura possa ser alcançada mantendo a Rússia (e a China) à distância? A Rússia do presidente Bóris Iéltsin foi mais relevante em 1999 para a formação das relações mundiais do que a Rússia do presidente Vladimir Putin em 2019?

Enrico Vigna: Qual a sua opinião sobre a situação política na Sérvia hoje? E o que você acha dos protestos semanais em Belgrado? Eles são espontâneos ou iniciados por interesses externos?

Zivadin Jovanovic: A atual oposição sérvia é composta principalmente pelos remanescentes da antiga Oposição Democrática da Sérvia (DOS) que, em outubro de 2000, derrubou o então presidente Slobodan Milosevic e, em 2001, o entregou inconstitucionalmente ao Tribunal de Haia, com a ajuda decisiva dos serviços secretos ocidentais. A oposição sérvia hoje está fragmentada, desprovida de quaisquer ideias sérias sobre o progresso socioeconômico, sobre uma solução justa e sustentável para a questão do Kosovo ou sobre uma política externa independente. Todas as pressões sobre o governo sérvio agora, sejam de dentro ou de fora do país, são projetadas para enfraquecer sua posição de negociação sobre Kosovo e Metóquia e para obrigar o governo a aceitar “um acordo” – e reconhecer de imediato a independência do Kosovo e Metóquia – pela vaga promessa de adesão à União Europeia! A decadente elite neoliberal da União Europeia, confrontada com a maré de forças nacionalistas e populistas, precisa de, pelo menos, algum sucesso. Então, eles querem que a Sérvia pague por sua política fútil, entregando parte do território de seu Estado e de sua identidade nacional a fim de afirmar falsamente que “a questão do Kosovo está resolvida e a paz preservada”. Para isso, eles estão buscando colaboradores até mesmo dentro da Sérvia.

Enrico Vigna: Você estabeleceu na Sérvia o think tank Centro de Pesquisa da Conectividade da Rota da Seda e apoiou o estabelecimento de uma filial italiana conhecida como Observatório do Cinturão e Estrada. Como você avalia o progresso desse projeto global chinês?

Zivadin Jovanovic: Nas divisões atuais, tensões globais e crescente protecionismo, o impacto positivo da Iniciativa “Um Cinturão, uma Estrada” (BRI) da China está crescendo promissoramente. Apenas cinco anos após essa iniciativa ter sido anunciada pelo Presidente Xi Jinping em Astana, no Cazaquistão, ela atraiu cerca de 100 países da Ásia, Europa, África e outros continentes que estão diretamente envolvidos na implementação prática. As principais integrações econômicas regionais e grupos de países estão buscando formas de coordenar sua própria infraestrutura e outros projetos com a Iniciativa a fim de fornecer sinergia para um desenvolvimento mais eficiente. Perto de 100 parques industriais foram estabelecidos ao longo do “Um Cinturão, uma Estrada”, propiciando mais de um milhão de novos postos de trabalho. O projeto contribuiu imensamente para a conexão de pessoas, trazendo civilizações, culturas e jovens para mais próximo, fortalecendo assim a compreensão e a confiança mútua. A Cooperação entre a China e os Países da Europa Central e Oriental (China-CEEC, ou 16+1) no âmbito da Iniciativa se tornou uma ponte importante para a Eurásia e especialmente entre a China e a União Europeia. O espírito ganha-ganha se tornou marca registrada da cooperação.

A desaceleração do crescimento da economia global, a instabilidade dos mercados financeiros, a globalização da pobreza, o protecionismo, o enfraquecimento de instituições multilaterais como a OMC, as políticas de poder e as abordagens geopolíticas da cooperação econômica são alguns dos desafios futuros. A resposta geral a todos eles é dobrar os esforços para criar uma nova governança global baseada na parceria, multipolaridade e igualdade, reformas e fortalecimento das instituições internacionais e maior coordenação. A Segunda Cúpula do Fórum da BRI na China, em abril de 2019, resumirá as importantes conquistas da Iniciativa e abrirá novas perspectivas para o fortalecimento da cooperação, que é estrategicamente importante para a estabilidade e o crescimento da economia global. A Sérvia está participando ativamente da cooperação da BRI, especialmente nos países da China-CEEC. Os investimentos chineses na Sérvia chegam a cerca de US$ 6 bilhões, principalmente em infraestrutura moderna, indústria e setor energético. A seção sérvia da ferrovia de alta velocidade Belgrado-Budapeste está progredindo como um dos maiores projetos de investimento.

Enrico Vigna: A agressão da OTAN há 20 anos foi justificada pela situação humanitária do Kosovo. Toda vez que visito Kosovo e Metóquia, os sérvios que vivem lá continuam reclamando de sua dramática situação de segurança e do medo do terror no futuro. Com base no seu conhecimento e experiência, o que você teria a dizer?

Zivadin Jovanovic: Os verdadeiros problemas na província de Kosovo e Metóquia foram provocados pelo separatismo e terrorismo albaneses, continuamente apoiados por algumas potências ocidentais. Esse apoio foi motivado por seus interesses geopolíticos: enfraquecer e fragmentar a Sérvia, para elas, sempre foi sinônimo do enfraquecimento da presença e influência da Rússia nos Bálcãs. No final dos anos 1990 do século passado, como confirmado por fontes britânicas, o governo Bill Clinton decidiu derrubar o presidente Slobodan Milosevic, encorajando o Exército de Libertação do Kosovo (ELK) a provocar atos terroristas em grande escala. No verão de 1998, o governo sérvio reagiu com ações antiterroristas legítimas, contra as quais a OTAN orquestrou sua propaganda, apresentando-as como uma “violação massiva dos direitos humanos”, o que serviu de prelúdio para a agressão militar premeditada. Muitas mentiras foram lançadas, como o hipotético “plano de ferradura”.

Enrico Vigna: Como a SOS Kosovo e a Metohija Association, há muitos anos decidimos concentrar nosso conceito de solidariedade e trabalho de informação nos enclaves sérvios em Kosmet, pois pensamos que este é o ponto nodal das contradições que envolverão os Bálcãs no futuro. E a resistência do povo em Kosmet é fundamental também para o futuro na Sérvia. Qual é a sua opinião?

Zivadin Jovanovic: Antes de mais nada, somos gratos às associações pelo apoio contínuo e ajuda aos sérvios no Kosovo e Metóquia nas últimas décadas. Seus contatos, assistência humanitária e, especialmente, seu papel no intercâmbio de visitas de crianças são extremamente importantes para os sentimentos dos sérvios de lá – de que eles não estão esquecidos, nem abandonados, que eles têm amigos que entendem seus problemas. E esses são problemas realmente inacreditáveis. Os sérvios nos enclaves vivem hoje como se estivessem em guetos, às vezes cercados por arames farpados. Sua circulação não é segura, seus lares foram constantemente roubados, suas igrejas, cemitérios e símbolos religiosos foram destruídos. Vivem em um estado de incerteza e medo de uma nova limpeza étnica e pogroms semelhantes aos anteriores, que conduziram ao êxodo de 230 mil sérvios e outros não albaneses, a destruição de 150 mosteiros e igrejas cristãs medievais. A União Europeia, os EUA, a Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo (UNMIK), a Força do Kosovo (KFOR) e a Missão da União Europeia para o Estado de Direito no Kosovo (EULEX) pouco ou nada fizeram para punir os autores dos crimes contra os sérvios, para investigar o tráfico de órgãos humanos em geral, para garantir direitos humanos iguais para os sérvios no Kosovo e Metóquia.

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