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Do quartel às urnas: Militares e eleições na América Latina

No Uruguai, Paraguai e Guatemala, militares seguem o Brasil e apostam nas eleições para chegar ao poder. Vieram para ficar?
por Camila Vollenweider | Celag – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
O ex-militar e atual presidente do Paraguai, Mario Abdo, em visita ao Comando Sul dos EUA. (U.S. Southern Command photo by Juan Chiari)

Os sucessos eleitorais da extrema direita são uma novidade significativa no contexto latino-americano. Ao longo do século XX, o medo da esquerda no poder, a rejeição da subversão da ordem patrimonial e patriarcal e a necessidade de segurança e eficiência econômica foram algumas das principais razões para que as elites – e uma parte importante da sociedade – endosasse golpes militares se o governo não fosse alcançado através da votação. Em geral, a corporação militar agia como um braço armado de interesses civis (negócios locais, estrangeiros e financeiros) com os quais coincidia ideologicamente. No entanto, cerca de 30 anos após o fim das ditaduras do “Plano Condor”, a extrema direita participa e ganha eleições. Agora também com candidatos das Forças Armadas.

O que aconteceu nesses trinta anos para a América Latina adotar um papel militar dentro da lógica democrático-eleitoral? Uma das razões pode ser encontrada no crescente desencantamento que as sociedades experimentam em relação à classe política (e aos “políticos”) como condutor de questões de interesse público e dos atuais sistemas democráticos como mecanismos adequados de representação. E a corporação militar também adquiriu uma desconfiança substancial da utilidade de ambas as questões. No entanto, as últimas eleições gerais na região mostraram aos militares não só que a extrema direita tem cooptado uma parte do “senso comum”, mas também que tem votos. E isso significa não precisarem se trancar no quartel esperando o chamado para impor ordem pelas armas, nem que seus interesses sejam representados por um civil.

No final do dia, tem sido a política comandada por civis – independentemente do seu signo ideológico – que não foi capaz de manter a ordem: para a corporação militar vivemos décadas atrás um processo de desorganização e anarquia que deve ser redirecionado. Claramente, os governos progressistas desafiaram as hierarquias sociais e morais que são caras para os conservadores, mas os da direita, mais compatíveis, não foram capazes de combater os níveis alarmantes de insegurança, corrupção e seu desempenho econômico deficiente. Ninguém melhor do que os militares, autopercebidos – e cada vez mais pelo povo – como retos, honestos e eficientes, para prometer a ordem social sem o estigma dos tanques nas ruas.

Quem são?

Talvez o caso mais ressonante seja o de Jair Bolsonaro, recentemente eleito presidente no maior país da América do Sul. O ex-capitão formado na Academia Militar dos Agulhas Negras, no Grupo de Artilharia (Mato Grosso do Sul), pertencia à brigada de infantaria paraquedista do Rio de Janeiro. Seu companheiro de chapa e atual vice-presidente é Hamilton Mourão, general aposentado do Exército em 2018 [1]. Dos 20 ministros, 7 são de origem militar e 5 deles têm seus escritórios no Palácio do Planalto, ao lado do presidente. Eles nomearam mais de cem militares em posições de segundo e terceiro nível hierárquico, muitas em locais-chave e oferecendo-lhes o controle de várias áreas e atividades do Governo. A grande maioria são aposentados militares, em outros casos eles foram licenciados para ocupar cargos no Executivo. Ministros e e as cabeças mais visíveis são os militares recentemente aposentados, com exceção de porta-voz oficial, que é general em atividade [2].

No Paraguai, Mario Abdo Benítez, segundo tenente da Reserva de Aviação e paraquedista militar, chegou à Presidência em 2018. Apesar de suas tentativas iniciais mornas de romper com uma tradição familiar ligada à ditadura de Alfredo Stroessner – seu pai, Mario Abdo, foi seu secretário privado, – “Marito” acabou deixando clara a sua posição ao impedir que o governo comemorasse o 30º aniversário da fim da mais longa ditadura na América do Sul. Ao contrário de Bolsonaro, que repetidamente mudou de partido – todos muito pequenos -, Abdo usou a maquinaria do histórico Partido Colorado para fazer sua carreira política. Assim, apesar da sua juventude e eventual recurso à experiência militar, o presidente paraguaio chegou a não comparecer perante a sociedade como o forasteiro de renovação moral: o seu partido está indissoluvelmente ligada à imagem de corrupção e um passado ditatorial que ainda não apresenta uma nova versão com a qual capitalizar o descontentamento da sociedade paraguaia.

Em face dos processos eleitorais de 2019, começaram, novamente, a surgir candidatos da mesma origem: na Guatemala, o oficial do Exército e atual deputado do Congresso da República, Estuardo Galdámez, posiciona-se como sucessor do atual presidente, Jimmy Morales. Ambos os políticos pertencem ao partido Frente de Convergência Nacional, criado em 2008 por um grupo de membros aposentados do Exército que compunham a Associação dos Veteranos Militares da Guatemala. No Uruguai, o partido Cabildo Abierto, nome com o qual o Movimento Social Artiguista – grupo em que predomina o componente militar – , levará o ex-comandante em chefe do Exército, Guido Manini Ríos, como candidato.

O que propõem?

O ressurgimento de políticos latino-americanos de origem militar acompanha a renovação do ciclo na região, baseado em um discurso anti-direitos extremista, favorável à militarização dos países como uma fórmula propícia à eliminação da insegurança e da corrupção.

  • Eles assumem propostas associadas ao rearmamento da sociedade: por exemplo, Jair Bolsonaro defendia a revogação do Estatuto do Desarmamento para que os proprietários rurais tivessem o direito de adquirir fuzis para impedir invasões por camponeses despojados, muitos deles baseados no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Mario Abdo defende a criação de uma Polícia Comunitária no marco de uma política mais ampla de Segurança Democrática, que replica a implementada na Colômbia por Álvaro Uribe nos anos 2000.
  • A militarização da educação como alternativa para os jovens é uma proposta que Guido Manini defendeu na época, propondo que os jovens que não estudam nem trabalhem devem se unir às Forças Armadas. Mário Abdo tentou colocar em prática uma ideia semelhante nos primeiros meses de seu governo, dificultando a objeção de consciência por meio da qual muitos jovens evitam o serviço militar obrigatório no Paraguai. Além disso, Abdo tornou pública a chegada de seu filho, um menor, às fileiras do Exército em meio aos protestos de jovens no Paraguai durante 2018.
  • Eles defendem uma agenda anti-direitos que questiona o progresso feito em períodos anteriores, como, por exemplo, as ações afirmativas de cotas raciais no Brasil, contra as quais Bolsonaro tem sido amplamente crítico. Ou eles se opõem à concessão de direitos a pessoas LGBT, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a adoção de filhos por casais homossexuais. No caso do candidato presidencial à Presidência da Guatemala, Estuardo Gáldamez, ele promove a rejeição do direito das mulheres de abortar e se posiciona contra o casamento entre casais homossexuais.

Essas lideranças não são apenas articuladas em torno das agendas anti-direitos, mas também refletem uma origem comum ou uma ligação com os processos ditatoriais que ocorreram entre os anos 70 e 90 do século XX na América Latina. Esta é a razão pela qual eles honram esses processos de várias maneiras, cujo resultado foi a violação sistemática dos direitos humanos.

  • No Uruguai, Guido Manini foi demitido de seu cargo de comandante-em-chefe do Exército depois de suas declarações contra o sistema judiciário uruguaio, que promove processos judiciais contra os militares que cometeram violações de direitos humanos durante a ditadura. Sua adesão à Loja dos Tenentes de Artigas, que estava ligada ao processo ditatorial sofrido pelo país, reflete a origem dessas manifestações.
  • Por sua parte, Mario Abdo, que defendeu o governo de fato de Alfredo Stroessner em diferentes ocasiões, embora não tenha participado diretamente do processo, pertence a uma das famílias ligadas à ditadura no Paraguai. A família Abdo foi uma das que lucraram economicamente com o roubo de terras que ocorreram durante o processo ditatorial.
  • E Jair Bolsonaro, cuja principal fonte de apoio eram os militares aposentados, unidos no chamado Grupo de Brasília, tem sido um defensor veemente do processo militar no Brasil, mesmo celebrando o golpe militar que deu origem ao governo de facto e reivindicando as forças armadas que participaram da tortura ocorrida nos centros de detenção clandestinos.

À guisa de conclusão

Não deixa de ser um avanço civilizatório que as forças armadas procurem ganhar poder através do voto popular e não levar a cabo uma agenda ultraconservadora e neoliberal por meio de golpes de Estado. No entanto, embora a abertura do jogo democrático aos membros da corporação militar seja recente demais para avaliar tendências e resultados, o fato é que não deixa de ser preocupante o movimento retrógrado em termos de direitos que já está sendo observado, como no caso do Brasil.

Todos os números aqui mencionados promovem uma ideologia que tem permeado grande parte da população propensa ao voto de direita: valores tradicionais da família, luta contra a corrupção e tolerância zero ao crime. Sua origem militar tende a “separá-los” da imagem desgastada da política e dos políticos, aspectos aos quais muitos dos desconfortos da sociedade de hoje são frequentemente atribuídos. Mais do que um anseio por um passado ditatorial, os rostos eleitorais militares tentam convencer a maioria dos eleitores civis da possibilidade de um futuro de ordem e regeneração moral, do qual seriam os garantes.

Embora o descontentamento crescente de brasileiros e paraguaios com os atuais esforços possa apontar que o componente militar dos governos não consegue cumprir as expectativas de gestão, a verdade é que é um fenômeno muito recente para se aventurar um retorno aos quartéis. Estamos no início de uma militarização de opções eleitorais ultraconservadoras ou é apenas uma breve “aventura corporativa” que coincide com certas exigências de mudança (conservadora) em nossas sociedades? No final, a retirada do corpo militar e a conseqüente erosão da gestão política podem acabar colocando-os dentro do espectro social do qual eles buscam se diferenciar.

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