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Por que os neoliberais chineses são forçados a falsificar a história do mundo

Os neoliberais são contraditos pelos fatos. Se uma teoria e realidade não coincidem, o sensato abandona a teoria, o perigoso abandona a realidade.
por John Ross | Learning from China – Tradução de Gabriel Deslandes para a Revista Opera
(Foto: World Economic Forum)

As discussões econômicas da China estão entre as mais avançadas do mundo – para quem as segue, o que se traduz por “debate econômico” na maior parte da mídia ocidental está relacionado a trivialidades comparativas. Um exemplo importante disso foi o debate público, em vários meios de comunicação, entre o ex-economista-chefe e vice-presidente sênior do Banco Mundial, Justin Yifu Lin, e um dos economistas chineses mais importantes, Zhang Weiying – um neoliberal convicto. O debate atraiu tanta atenção que até mesmo a mídia ocidental, que normalmente não está ciente das discussões políticas mais importantes na China, percebeu isso – lamentavelmente na forma de um comentário distorcido da The Economist. Justin Yifu Lin defendeu a política de desenvolvimento da China contra o ataque neoliberal de Zhang a ela.

Zhang fez as habituais declarações neoliberais, que são totalmente contrárias aos fatos, de que o desenvolvimento econômico era criado por uma operação espontânea do mercado, e a melhor política para o Estado era ficar o mais longe possível da economia. Para fazer isso, Zhang foi forçado a falsificar a história – alegando que a Grã-Bretanha, na época da Revolução Industrial, era uma “ilha fronteiriça” e que o crescimento econômico dos EUA se devia ao funcionamento espontâneo do mercado.

Na realidade, na época da Revolução Industrial, a Grã-Bretanha era o Estado europeu mais forte, com o Império mais importante, tendo derrotado a França em quase um século de campanhas militares mundo afora, enquanto a industrialização dos EUA era realizada por trás do massivo protecionismo tarifário estatal. O fato de que os neoliberais, para tentarem defender seus pontos de vista, precisam falsear a história mundial se deve, naturalmente, porque o neoliberalismo é contradito pelos fatos. Se uma teoria e realidade não coincidem, apenas uma coisa pode ser feita: uma pessoa sensata abandona a teoria, enquanto uma pessoa perigosa abandona a realidade. O neoliberalismo é um caso clássico de abandono da realidade, pois esta não se encaixa em sua (falsa) teoria.

Minha contribuição para esse debate na China é esclarecer os fatos reais da história britânica e americana. Embora essa discussão tenha acontecido na China, ela é relevante para os erros do neoliberalismo em todos os lugares.

Em seu artigo “Os quatro erros de Lin Yifu sobre a política industrial”, Zhang Weiying tenta defender sua oposição à política industrial. O próprio Lin Yifu lida com as questões contemporâneas da política econômica da China, mas Zhang Weiying não sabe, ou conscientemente deturpa, fatos elementares da história econômica ocidental. Foi surpreendente ler esta declaração:

“Na história humana, o crescimento econômico real nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha deveria ser visto como um milagre. Desde a Revolução Industrial, o Reino Unido passou de uma ilha fronteiriça para líder da civilização humana moderna. Os Estados Unidos foram de um país onde, antes da Guerra Civil, mais de 80% da população era rural e agrícola, para 30 anos depois, em 1890, serem um dos maiores países industriais do mundo.”

A declaração de que a Grã-Bretanha na época da Revolução Industrial era uma “ilha fronteiriça” é historicamente o exato reverso da verdade. A Grã-Bretanha, mesmo antes da Revolução Industrial, já era o Estado mais poderoso da Europa e, provavelmente, do mundo – a única alternativa em potencial na época, a Dinastia Qing na China, estava em declínio. Isso foi demonstrado da maneira mais direta e irrefutável – a Grã-Bretanha derrotou a França, a outra grande potência europeia do período, durante quase um século de guerras mundiais travadas não só na Europa, mas na Índia, Caribe e América do Norte – a Guerra dos Nove Anos (1688-97), Guerra da Sucessão Espanhola (1702-1714), Guerra da Sucessão Austríaca (1740-1748) e Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Durante a Revolução Industrial, a Grã-Bretanha havia criado o núcleo do maior Império do mundo “em que o sol nunca se pôs” – incluindo a Índia, a Austrália, o Canadá e grandes partes da África. A caracterização como “ilha fronteiriça” para a vencedora comprovada daquilo que, na realidade, foram as primeiras “guerras mundiais” da história é verdadeiramente extraordinária – uma fabricação completa.

Tampouco existe qualquer mistério sobre as razões do crescimento sem precedentes dos EUA após a Guerra Civil, quando ultrapassou o Reino Unido como a maior economia do mundo. A ascensão dos EUA ao domínio econômico global se baseou na gigantesca acumulação quantitativa de mão de obra e capital.  Entre 1860 e 1890, estimulados pela imigração em massa, a população americana quase dobrou, de 31,8 milhões para 63,3 milhões. Em contraste, no mesmo período, a população do Reino Unido aumentou apenas 30%. Em 1860, a população americana era em três milhões maior do que a britânica. Em 1890, era maior em 26 milhões – a população dos EUA passou de 110%, em relação ao Reino Unido, para 169%.

Simultaneamente, o percentual de investimentos fixos no PIB dos EUA subiu para muito acima de qualquer nível anteriormente alcançado pelo Reino Unido, a antiga “superpotência” econômica. O maior percentual anual do PIB britânico dedicado ao investimento fixo antes da Primeira Guerra Mundial foi de apenas 10,6%, em comparação com um máximo dos EUA de 21,8%. Como Maddison resumiu:

“A taxa de investimento doméstico dos EUA foi quase o dobro do nível do Reino Unido em um período de 60 anos, de 1890-1950. Seu nível de estoque de capital por pessoa empregada era duas vezes maior que o do Reino Unido em 1890, e sua vantagem esmagadora nesse aspecto sobre todos os outros países continuou até o início dos anos 1980.”

No período entre 1860 e 1890, o PIB americano subiu de aproximadamente 20% inferior ao britânico para 30% superior. Uma pequena parte disso se deve ao fato de que os EUA reduziram ligeiramente a liderança do Reino Unido em matéria de PIB per capita, de aproximadamente 30% para 20%, mas a razão quantitativa mais fundamental foi a gigantesca acumulação de capital e trabalho nos EUA.

Como o crescimento do Reino Unido e dos EUA foi alcançado

Voltando para as políticas que alcançaram crescimento econômico no Reino Unido e nos EUA durante seus respectivos períodos de domínio econômico, eles se basearam em ações estatais massivas, não em “livre mercado”. A característica do Reino Unido, durante seu período de ascensão ao domínio econômico mundial, foi o enorme endividamento e gastos do Estado – principalmente empreendidos para financiar as campanhas militares necessárias para criar o maior Império do mundo. Em 1763, a dívida do Estado britânico atingiu mais de 150% do PIB e, em 1815, ela era superior a 250% do PIB.

Os EUA, durante sua ascensão ao domínio global, usaram a intervenção do Estado para criar um dos regimes tarifários mais protecionistas do mundo. Essas altas tarifas foram deliberadamente projetadas para proteger o desenvolvimento da indústria nos estados do Norte dos EUA. O protecionismo começou em 1789, imediatamente após a adoção da Constituição americana. Nos 70 anos seguintes, as tarifas flutuaram um pouco, visto que existia um confronto entre os estados do Sul dos EUA, que não eram industrializados e, portanto, não tão preocupados com a proteção tarifária, e os estados industrializados do Norte. Porém, depois da vitória do Norte na Guerra Civil, seus interesses foram impostos em pesadas tarifas comerciais. Em 1870, a tarifa média das importações dos EUA era de 45% e permaneceu acima de 27% até 1910.

Se o Reino Unido subiu ao domínio econômico mundial acompanhado por empréstimos estatais maciços, a ascensão dos EUA ao domínio econômico global após a Primeira Guerra Mundial não foi por métodos de “livre mercado”, mas sim construída por trás de um muro estatal de tarifas.

Modelo de crescimento ocidental

Passando das causas econômicas para os resultados econômicos, uma simples aritmética mostra que copiar os modelos de crescimento econômico ocidentais condenaria a China a ficar muito atrás das economias avançadas.

Os dados mostram que o modelo econômico do Reino Unido/EUA é baseado em um crescimento muito lento sustentado ao longo dos séculos. De 1900-2015, o crescimento médio anual per capita do PIB americano foi de apenas 1,9% e o britânico de 1,5%. Enquanto os cálculos para o século XIX são mais aproximados, é claro que, nesse período, o crescimento do Reino Unido/EUA foi ainda mais lento do que no XX e no XXI – de 1820 a 2015, o crescimento do PIB per capita dos EUA foi de 1,7% e o Reino Unido de 1,4%.

A imagem, por vezes apresentada em partes da mídia, de que as economias ocidentais, em algum momento no passado, cresceram rapidamente de forma sustentada e agora “desaceleraram” é simplesmente falsa. Tomando os últimos 20 anos, entre 1995 e 2015, o crescimento do PIB per capita dos EUA em 1,4% está apenas ligeiramente abaixo da sua média de longo prazo, e os 1,7% do Reino Unido estão só ligeiramente acima. Longe dos EUA e o Reino Unido desacelerarem significativamente à medida que se tornavam mais avançados, ambos os países já estavam crescendo muito lentamente quando tinham níveis de PIB per capita significativamente inferiores ao atual da China.

Como os modelos de crescimento dos EUA/Reino Unido sempre produziram taxas de crescimento muito baixas, se a China adotasse tal modelo ocidental, teria um crescimento igualmente lento. Isso significaria que a China abandonaria a possibilidade de se tornar uma economia de alta renda por muitos anos e abandonaria por muitas décadas, provavelmente permanentemente, sua tentativa de alcançar os padrões de vida ocidentais. Tal política seria ridícula, tendo em vista que o modelo econômico chinês produz taxas sustentadas de crescimento muito maiores do que o Reino Unido ou os EUA experimentaram.

História real dos EUA

Embora os fatos sobre os métodos que permitiram aos EUA ultrapassar o Reino Unido antes da Primeira Guerra Mundial já tenham sido analisados, também não há dúvida de quais métodos elevaram os EUA ao seu verdadeiro status de “superpotência econômica” no final da Segunda Guerra Mundial. Eles estão expostos em detalhes em meu livro O Grande Jogo de Xadrez (一盘大棋?中国新命运解析). Por isso, é preciso resumir aqui alguns pontos-chave.

“Entre 1939 e 1945, o PIB americano cresceu 91% – uma média anual de 11% de crescimento. Entre 1939 e 1944 (o último ano completo da Segunda Guerra Mundial), a média de expansão econômica anual dos EUA foi de 14% – o mais rápido crescimento econômico já alcançado em uma grande economia em um período de cinco anos. […] Até 1945, apesar da Grande Depressão, a economia americana tinha mais do que dobrado de tamanho em comparação a 1929. Foi, portanto, sem ambiguidade […], a economia americana durante a Segunda Guerra que explicou a posição inigualável de dominação econômica global dos Estados Unidos no período imediatamente posterior à guerra.”

“Mais uma vez, a causa desse crescimento econômico dos EUA sem precedentes é clara: foi conduzida por um gigantesco gasto estatal. Entre 1938 e 1945, o consumo das famílias americanas aumentou em 30%, e o investimento privado aumentou em 12%, mas os gastos estatais dos EUA aumentaram 553%. Medido em preços de 1937, 82% do aumento do PIB americano entre 1938 e 1945, o período mais rápido de crescimento da história econômica dos EUA, foi explicado pelos gastos governamentais.”

“A consequência foi que o Estado americano tomou, em grande parte, o espaço do setor privado como a força motriz do investimento fixo – em 1943, 83% do investimento fixo dos EUA foi realizado pelo Estado. A realidade é, portanto, que o período mais rápido de expansão da história econômica dos EUA, o que os estabeleceu como a superpotência econômica indiscutível, foi impulsionado não pelo investimento privado, mas pelo Estado.”

Para concluir, o estabelecimento pelos EUA de uma posição incomparável de domínio econômico internacional e o período mais rápido de crescimento na história americana – estabelecendo a base para o surgimento definitivo dos EUA como a superpotência econômica da segunda metade do século XX – não foram alcançados pelo setor privado, mas por um enorme boom de gastos do Estado! Foi a mão “visível”, não a “invisível”, que levou os EUA a uma posição de domínio global inigualável.

Política industrial de Estado

O Reino Unido no século XIX e os EUA no século XX foram as maiores economias e os Estados industriais mais poderosos que existiram na história. Portanto, a deturpação ou falta de conhecimento de seu desenvolvimento necessariamente apresentam uma versão distorcida e imprecisa de toda a história do crescimento econômico. Em comparação com os erros de Zhang Weijying a respeito do curso da história econômica mundial, suas posições erradas sobre política industrial são, portanto, relativamente pequenas. Contudo, esses erros estão correlacionados e, dessa forma, vale a pena lidar com eles. Novamente, as questões factuais foram tratadas em profundidade no livro O Grande Jogo de Xadrez e podem ser resumidas aqui:

“Como Martin Wolf, comentarista-chefe de economia do Financial Times, fez uma revisão do estudo de Mariana Mazzucato, O Estado Empreendedor:

‘A inovação depende do empreendedorismo ousado. Mas a entidade que assume o maior risco e alcança os maiores avanços não é o setor privado; é o… Estado.’

‘A Academia Nacional de Ciências dos EUA financiou o algoritmo que impulsionou o mecanismo de pesquisa do Google. O financiamento antecipado para a Apple veio da Small Business Investment Company, do governo americano. Além disso, ‘todas as tecnologias que tornam o iPhone ‘inteligente’ também são financiadas pelo Estado: a Internet, redes sem fio, sistema de posicionamento global, microeletrônica, telas touchscreen e o mais recente assistente pessoal de processamento por voz Siri’. A Apple, brilhantemente, colocou tudo isso junto, mas estava colhendo o fruto de sete décadas de inovação apoiada pelo Estado.’

Devido ao alto custo de P&D em larga escala e à incerteza de seu resultado e escala de tempo – ou seja, os altos custos de expansão da fronteira tecnológica em oposição à adoção ou melhoria de tecnologias já comprovadas –, é o Estado que desempenha um papel decisivo em inovação. Como Wolf conclui:

‘Por que o papel do Estado é tão importante? A resposta está nas enormes incertezas, prazos e custos associados à inovação fundamental baseada na ciência. As empresas privadas não podem e não suportarão esses custos, em parte porque não podem garantir os frutos e em parte porque esses frutos estão no futuro. De fato, quanto mais competitiva e orientada para as finanças é uma economia, menos o setor privado estará disposto a apoiar tais riscos. Em qualquer caso, o setor privado não poderia ter criado a Internet ou o GPS. Apenas os militares dos EUA tinham recursos para isso.’”

Por conseguinte, como Mazzucato analisa em detalhes acerca da Apple:

“Todas as tecnologias que tornam o iPhone de Steve Jobs tão ‘inteligente’ foram financiadas pelo governo (Internet, GPS, tela touchscreen e o recente assistente pessoal ativado por voz Siri). Tais investimentos radicais – que embutiam extrema incerteza – não surgiram devido à presença de capitalistas de risco, nem de ‘montadores de garagem’. Foi a mão visível do Estado que fez essas inovações acontecerem. Inovação que não teria acontecido se tivéssemos esperado o ‘mercado’ e os negócios para fazê-la sozinhos – ou o governo simplesmente ficar de lado fornecendo só o básico.”

Este é precisamente o ponto que Lin Yifu observa em termos gerais em relação à liderança geral dos EUA em P&D:

“O debate em curso sobre a necessidade de uma política industrial americana não mudou os fatos concretos sobre o importante papel desempenhado pelos governos federal e estaduais no desenvolvimento industrial nas últimas décadas. Suas intervenções incluem a alocação de grandes quantias de financiamento público para aquisições relacionadas à Defesa e gastos em P&D, que têm grandes efeitos colaterais sobre toda a economia.”

Quantitativamente, conforme observa Lin:

“Como Chang afirma, ‘indústrias como computadores, aeroespacial e Internet, onde os EUA ainda mantêm uma vantagem internacional a despeito do declínio de sua liderança tecnológica geral, não teriam existido sem o financiamento federal de P&D relacionado à Defesa pelo governo federal do país. O apoio governamental também é crítico em outros segmentos importantes da economia, como a indústria da saúde: o financiamento público para os Institutos Nacionais de Saúde, que, por sua vez, apoiam uma grande fração de P&D de empresas biotecnológicas, foi essencial para ajudar os EUA a manter sua liderança nessa indústria.”

Por quê?

Por que, então, é feita tal afirmação extraordinariamente inexata de que a Grã-Bretanha na época da Revolução Industrial era uma “ilha fronteiriça”? E por que nenhuma menção à enorme acumulação quantitativa de capital e trabalho dos EUA, protegida por muros tarifários impostos pelo Estado, por meio da qual os EUA se tornaram a economia mais poderosa do planeta?

É porque, se os fatos e uma teoria não coincidem, só um dos dois pode ser tomado a sério – os fatos. Tanto no ditado chinês – “buscar a verdade nos fatos” – como na ciência, a teoria que não coincide com os fatos deve ser abandonada como errada. Entretanto, a falta de conhecimento ou deturpação da história das duas economias dominantes nos dois últimos séculos da história mundial – os EUA e o Reino Unido –, é um caso particularmente extremo de tentativa de ignorar a realidade para sustentar uma teoria equivocada.

A questão é extremamente séria. Se fatos são suprimidos, a fim de tentar justificar uma teoria falsa em um seminário universitário, a principal coisa que é prejudicada é o conhecimento do aluno. Se fatos forem suprimidos para tentar justificar uma teoria errada na elaboração das políticas econômicas na China, a segunda maior economia do mundo, então as vidas de 1,3 bilhão de pessoas serão prejudicadas, e o renascimento nacional chinês estará seriamente em risco.

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