O seguinte ensaio exclusivo é parte do livro “Carta no Coturno – A volta do Partido Fardado no Brasil“, de André Ortega e Pedro Marin, da Revista Opera. O livro já está em pré-venda (com previsão de envio no dia 09/07) na Livraria da Opera e no site da Baioneta Editora.
Os militares gostam de guerra. Tanto que nem quando se trata de História conseguem deixar os fuzis de lado. O coronel Brilhante Ustra, torturador favorito do Presidente da República, já declarou: “infelizmente perdemos uma batalha muito significativa – a comunicação de massa. Os vencidos distorcem os fatos e enganam o povo, principalmente os jovens. Querem, através da mentira, escrever a história com a sua versão e vão conseguir o seu objetivo. Há uma certa covardia em contar a verdade às novas gerações.” [1]
Este tipo de argumento sobre uma “batalha” ou “guerra” pela História é recorrente entre os círculos militares. Ironicamente, as acusações são aplicáveis a eles mesmos: sempre cuidadosos para tratar da “Revolução de 1964”, do “Movimento de 1964” e suas aparentemente quase infinitas variáveis linguísticas — “quase infinitas” porque dentre elas a palavra “golpe” é proibida — , os militares brasileiros efetivamente disputaram, nestas últimas três décadas, os discursos históricos sobre esse momento.
A Biblioteca do Exército (BIBLIEx) é um exemplo. Fundada em 17 de dezembro de 1881 pelo então ministro da Guerra, Franklin Dória, a BIBLIEx foi fechada 44 anos depois, pelas mãos do ministro General Setembrino de Carvalho, que não considerava fundamental a instrução cultural dos militares.
Em 1937, no entanto, o projeto de Dória renasceu nas mãos de Gaspar Dutra, agora em nova forma: como editora. No dia 26 de julho daquele ano, o decreto nº 1748, assinado pelo Presidente Getúlio Vargas, estabelecia os objetivos da BIBLIEx. Uma comissão formada por três militares e dois civis determinaria os livros a serem publicados, divididos em três coleções: “Os nossos soldados”, com biografias de soldados brasileiros e com linguagem simples, voltada aos militares de baixa patente; “Obras patrióticas”, formada por títulos nacionais, já consagrados ou de autores novos, civis ou militares; e “Obras de educação”.
Desde então, a Biblioteca do Exército esteve em franca ascensão. Durante a ditadura militar no Brasil, foi responsável por edições de Arquipélago Gulag, clássico literário anticomunista de Alexander Soljenítsin [2], e 1984, de George Orwell [3]; obras que foram muito bem acolhidas nos Estados Unidos durante a Guerra Fria, como baluartes culturais contra o “autoritarismo” soviético.
Mais recentemente, no entanto, a editora verde-oliva tem expandido seu público para além dos quartéis e casernas, expondo recorrentemente em salões de livro, tais quais as bienais de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. O esforço atrai a atenção de jovens interessados por militarismo e guerra. Pelas margens, no entanto, vai chegando à História — ou, ao menos, o que os militares entendem como tal.
Para além dos livros sobre temas estritamente militares, chega ao grande público títulos como 1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e a sua história, publicado às vésperas do 40º aniversário do golpe de 1964 [4], e onde consta a entrevista na qual Ustra fez a declaração que abre esse ensaio.
A Revolução Gramsciana no Ocidente, de Sergio A. A. Coutinho, é um livro no qual o autor, valendo-se de um estudo do comunista italiano Antonio Gramsci, argumenta que os comunistas agora movem sua guerra não pelos fuzis, mas precisamente por uma “batalha cultural” dentro do regime democrático. A publicação é aberta por uma fábula sobre um sabiá que, frente a um grande incêndio que irrompeu na floresta, ia e vinha a um rio e, com seu bico, tentava apagar o fogo. Ao final da fábula, quando indagado se realmente acreditava que assim combateria o incêndio, o sabiá responde que realmente não sabia, mas estava “fazendo a sua parte.” Para além das estórias infantis, o General de Brigada Sergio Augusto de Avellar Coutinho [5], autor do livro, dedica um post scriptum intitulado “O Gramscianismo no Brasil” no qual, dentre outras coisas, diz que “[…] quase que a Constituinte [de 1988] é levada a aprovar um projeto parlamentarista e nitidamente socialista […] mesmo assim, a Constituição promulgada em 1988 caracterizou-se pela complexidade, revanchismo, nacionalismo xenófobo, paternalismo, permissividade ‘democrática’ e pelas contradições conceituais.” A obra também conta com um quadro explicativo em que PCdoB, PCB, MR-8, PSTU, PCO — e pasmem — PPS e PSB constam como partidos marxistas-leninistas. “MST e outros” são movimentos “maoístas ou foquistas.” O PT é “socialista-heterodoxo”, “nasserista”. O PSDB é colocado na aba da “esquerda fabianista”, “social-democracia inglesa”, e o PDT “internacional socialista”, “social-democracia da II internacional.”
Há também A Grande Parada, de Jean François Revel que, de acordo com descrição dada pela própria BIBLIEx, “retrata a denúncia dos estratagemas e fraudes utilizados (sic) pela esquerda, revelando seu caráter maléfico, que tenta mascarar sua semelhança tão criminosa como foi o nazismo”.
A Grande Mentira, do general Agnaldo Del Nero Augusto [6] que, de acordo com descrição da BIBLIEx, “esclarece fatos e verdades do discurso das esquerdas brasileiras. Demonstra que as Forças Armadas também combateram o comunismo e, igualmente, o venceram. […] Lamentavelmente, a história vem sendo construída de forma unilateral pelos derrotados, com suas versões distorcidas dos fatos”.
Os escritos de Sergio A. A. Coutinho, que considerava, no passado, que Bolsonaro “fazia o jogo das esquerdas” [7], são publicados também em Cenas da Nova Ordem Mundial e O Revisionismo Histórico Brasileiro.
De acordo com reportagem de Felipe Bächtold em 2015 [8], para a Folha de São Paulo, cada livro editado pela BibliEx era lançado em 2,5 mil exemplares. De acordo com dados obtidos com o Serviço de Informações ao Cidadão do Exército Brasileiro, a editora teve em 2018 1,4 milhões de reais disponíveis, dos quais 49,22% (704 mil) foram usados exclusivamente para impressão de livros e revistas.
Autores já consagrados também têm títulos publicados pela BIBLIEx. É o caso de A arte de governar, da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher. Ou Não Somos Racistas, do Diretor Geral de Jornalismo e Esportes da Rede Globo, Ali Kamel, que “retrata que a política de cotas proposta pelo governo Lula dividiria o Brasil em duas cores, eliminando, assim, todas as características de nossa miscigenação”, de acordo com descrição do catálogo da BIBLIEx; O Caminho da Servidão, do economista austríaco ultraliberal F. Hayek, e Camaradas nos Arquivos de Moscou: A História Secreta da Revolução Brasileira de 1935, de William Waack, ex-âncora da Rede Globo que mantém estreitas relações com o Exército, recorrentemente dando aulas e palestras nas academias militares, além de ser figura carimbada nos cursos promovidos pela instituição para cobertura jornalística em cenários de guerra.
De acordo com Márcio Oliveira Ferreira, então responsável pelo marketing e vendas da BIBLIEx, as publicações “refletem o pensamento predominante na caserna”. “Se não escrevermos a história, quem irá? No meio acadêmico, há uma predominância de esquerda”, declarou o coronel à Folha, sendo acompanhado pelo tenente Ricardo Rocha, do setor de vendas da editora, que declarava que raramente se “vê militares se manifestando” e que com os livros é possível “mostrar à população” linhas de pensamento presentes entre os militares.
Disputam a história, criam bases ideológicas, buscam hegemonia — mas, ao contrário da difusa “esquerda” contra quem fazem acusações, tudo o que fazem é sob os feixes de luz dos cofres públicos. “Não veem nos outros senão os vícios que carregam em si mesmos”, como dissera Leonel Brizola. Os generais lêem Gramsci — ou algo do tipo. E publicam Hayek, Thatcher, Ustra. Mas hoje, ao contrário de 2015, não raramente se manifestam publicamente.
Notas:
[1] – Entrevista realizada em 12 de setembro de 2000, em MOTTA, Aricildes de Moraes (Coord.). 1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e sua história. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2003, t. 5, p. 234. [2] – Recomendo a leitura do artigo “Alexander Soljenítsin já tinha morrido”, de Milton Ribeiro, dado que o livro parece ter ressurgido nestes tempos com o status de “grande obra-denúncia.” Disponível em: http://miltonribeiro.sul21.com.br/tag/o-arquipelago-gulag/ [3] – Sobre o uso da obra de Orwell pela CIA, em especial em A Revolução dos Bichos, recomenda-se a leitura do livro Quem Pagou a Conta? de Frances Stonor Saunders. [4] – Em um dos textos nela contidos, Jarbas Passarinho declara: “São quase mortos-vivos a sofrer o ‘revanchismo’ dos que, derrotados pelas armas, são vitoriosos pela versão que destrói os fatos, nutrida no governo de esquerda moderada.” Um relato mais detalhado pode ser encontrado no 46º número da revista Teoria e Pesquisa da UFSCAR. [5] – Avellar Coutinho foi, a propósito, um dos responsáveis pela organização do “Livro Negro do Terrorismo no Brasil”, conforme identificado em investigação do Ministério Público Federal. O “Livro Negro do Terrorismo no Brasil” foi escrito a partir do projeto “Orvil”; um livro de mais de 900 páginas realizado pelo Centro de Informações do Exército com participação do Gen. Leônidas Pires Gonçalves, com documentos secretos do Exército, que por anos esteve em domínio de um círculo militar restrito. O jornalista Lucas Figueiredo, responsável pela revelação do livro, ganhou o Prêmio Esso de Reportagem de 2007 com a reportagem “O livro secreto do Exército”, na qual demonstrou que o livro era prova de que, já no período democrático, os militares seguiam omitindo informações sobre mortos e desaparecidos no regime militar. Em 2008, Avellar Coutinho participou de seminário no Clube Militar contra a revisão da Lei da Anistia e declarou, conforme reportagem do jornal Valor Econômico do dia 08/08/2008, p. A7; “Eles não esqueceram de 1964, não perdoaram a derrota […] o país está a um passo de fazer a revolução socialista.” [6] – Del Nero foi Oficial da Agência Central do Serviço Nacional de Informações (SNI), Chefe da Seção de Informações do Centro de Informações do Exército (CIEX) e Diretor da Escola Nacional de Informações (ESNI). [7] – ESTADO DE MINAS. Para ‘guru’, Bolsonaro fazia ‘jogo’ da esquerda. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2019/02/24/interna_politica,1033250/para-guru-bolsonaro-fazia-jogo-da-esquerda.shtml>. Acesso em: 14 março. 2019. [8] – FOLHA DE S. PAULO. Editora Biblioteca do Exército lança livros com críticas a visões de esquerda. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/12/1723145-editora-biblioteca-do-exercito-lanca-livros-com-criticas-a-visoes-de-esquerda.shtml>. Acesso em: 2 fev. 2019.