Em mais uma etapa de sua campanha de desinformação contra Pequim, Washington lançou mão de uma tática tanto antiga quanto eficaz: espalhar mentiras pela mídia até que sua repetição as tornem “verdades”.
O tabuleiro e as peças
O uso do aparato midiático para funções estratégicas e militares não é novidade na história. Desde os primórdios da massificação da mídia, ainda no século XIX, meias verdades, distorções e mentiras deslavadas vêm sendo desbragadamente oferecidas ao público sob o manto do jornalismo e da denúncia. As mentiras veiculadas sobre a região autônoma Uigur de Xinjiang são só mais uma página no longo livro de ataques do império estadunidense contra a soberania dos povos.
Localizada no noroeste da China, com uma população de 21 milhões de habitantes, Xinjiang é, ao lado do Tibete, a maior região territorial da China com uma área superior a 1.600.000 km². Some-se a seu tamanho sua importância estratégica para a Iniciativa Um Cinturão, Uma Estrada (Belt and Road Initiative), e os ataques começam a fazer sentido.
Porém, estamos apenas começando. A composição étnica e religiosa de Xinjiang também é sui generis para os padrões chineses. Lembremo-nos aqui que à etnia Han pertence 91% da população da China. As outras 55 etnias reconhecidas pela República Popular da China, combinadas, respondem por pouco menos de 9%.
Porém, em Xinjiang, a maioria é Uigur (45% – 8.800.000 habitantes) com os Han contando com pouco mais de 40% (8.048.000 habitantes) e ainda uma importante presença de Cazaques e Huis (juntos somam mais de 2.000.000 de habitantes). Tirando os Hans, a maior parte dessas outras populações pratica o Islã, sendo essa religião praticada por 58% da população de Xinjiang de acordo com dados de 2010.
Façamos agora um pequeno desvio histórico; Polônia, Primeira Guerra Mundial, o marechal Józef Piłsudski desenvolve uma teoria que teria desdobramentos globais algumas gerações após sua morte. A teoria? Piłsudski acreditava que a formação de estados não-russos nos Balcãs enfraqueceria a Rússia e criaria uma pressão capaz de fragmentar um Estado plurinacional e multiétnico.
Caminhemos um pouco mais no tempo: Estados Unidos, década de 1990, o estrategista militar e ex-conselheiro de Segurança Nacional do presidente Jimmy Carter, pai dos Mujahedin e descendente de poloneses, Zbigniev Brzezinski, publica a obra O grande tabuleiro de xadrez: a primazia estadunidense e seus fundamentos geoestratégicos. O cerne da obra é como os Estados Unidos poderiam preservar seu domínio na Eurásia usando a estratégia dos chamados “Balcãs eurasiáticos”.
O conceito é bastante simples, inspirado em Piłsudski, a ideia é criar “balcãs”, ou seja, pequenos Estados pulverizados nas orlas da nação a ser combatida para criar um ambiente de desestabilização que force a potência circundada a empregar suas forças sempre na defensiva. À época, o conceito fora forjado para manutenção de uma Rússia acuada em uma ordem unipolar, porém, adaptá-lo às circunstâncias é algo que os Estados Unidos sempre foram perfeitamente capazes de fazer.
Com a subida de Trump ao poder e o crescimento exponencial da economia chinesa que começa a se desdobrar em uma política expansionista mais agressiva (Iniciativa Um Cinturão, Uma Estrada, bases militares no Chifre da África) a ideia de “balcanizar” a China parece cada vez mais atraente.
Uma última peça teórica ainda deve ser revelada para entendermos o quebra-cabeça geopolítico de Xinjiang, o conceito de guerra híbrida. O analista geopolítico Andrew Korybko publicou em 2015 seu livro Guerras Híbridas: Das revoluções coloridas aos golpes, em que defende a tese que os Estados Unidos vem, desde a guerra na Iugoslávia, forjando uma nova forma indireta de mudança de regime que combina uma “revolução colorida” (golpe brando) seguida, se necessário, por uma guerra não convencional (golpe rígido). Como exemplos dessas intentonas temos a Primavera Árabe, o Euromaidan, e agora, mais recentemente, o golpe no Brasil e a tentativa em Hong Kong.
Independente do grau de sucesso das tentativas e da necessidade ou não de uma fase rígida do golpe, o quomodo da implantação indireta do novo regime é sempre o mesmo: por meio de agências de inteligência estrangeiras, um núcleo duro do futuro golpe é criado dentro da população visada e uma campanha de desinformação em massa é principiada, mormente usando redes online, para se criar uma desestabilização do regime e uma mentalidade de enxame que leva a uma insurgência popular. Se isso for o bastante para a mudança, ótimo. Se não, como no caso ucraniano, começa-se uma guerra assimétrica de baixa intensidade recorrendo-se a Estados fronteiriços cooptados para se traficar armas e companhias mercenárias para fortalecer os insurgentes.
O objetivo é sempre o mesmo, em última instância propiciar uma mudança de regime, mas, ao menos em caso de falha, garantir que o Estado visado passe à defensiva, causando uma perda sensível de capital político. Em uma ordem multipolar onde a China cada vez mais se estabelece como o grande antagonista econômico do Império estadunidense, a desestabilização do gigante asiático está na ordem do dia dos planos de Washington. Regressemos a Xinjiang.
Conforme dissemos acima, Xinjiang tem a maioria de sua população composta pela etnia Uigur. Os Uigures são um povo de origem turcomena cujas populações se espalham pela China, Cazaquistão, Uzbequistão, Tajiquistão, Quirguistão, Rússia e Turquia sendo que a maioria absoluta da população Uigur habita a região de Xinjiang.
Movimentos separatistas pela independência do Turquestão Oriental existem desde o século XIX, sendo que houve durante o século XX duas curtas experiências independentistas em partes da região. Não obstante, desde 1949, a região voltou a pertencer à China e está sob a tutela da política “Uma só China”, política unitária do Estado chinês e condição sine qua non para a manutenção de relações diplomáticas com a RPC.
Ademais, é importante ressaltar que tais movimentos desde a década de 1980 foram cooptados por segmentos islâmicos ligados ao Wahabismo e à al-Qaeda, e o terrorismo tornou sua forma de ação desde o começo da década de 1990. Movimentos estes que, apesar da negativa de Washington, recebem, de acordo com Pequim, vultosos aportes de armas e dinheiro por meio de procuradores ligados ao Departamento de Estado norte-americano.
A política oficial chinesa
A China entende a província de Xinjiang como parte de seu território e encara os ataques difusos de desinformação contra Xinjiang como um ataque à sua soberania e à política de “Uma só China”. Há três documentos oficiais da RPC que quando analisados conjuntamente nos informam sobre a postura oficial sobre a região de Xinjiang, bem como sobre o desenvolvimento regional chinês em uma perspectiva mais ampla. Os dois primeiros são os chamados “whitepapers” do Escritório de Informação do Conselho de Estado da RPC, a saber: Historical Witness to Ethnic Equality, Unity and Development in Xinjiang de 2015 e Cultural Protection and Development in Xinjiang de 2019; o último é o relatório de Xi Jinping para o XIX Congresso do Partido Comunista Chinês, intitulado “Alcançar o Triunfo Definitivo de Concluir a Construção Integral de uma Sociedade Moderadamente Abastecida e Conquistar a Grande Vitória do Socialismo com Características Chinesas na Nova Época” (2017). Analisemos brevemente as linhas gerais dos três escritos.
Ambos os relatórios do Escritório de Informação têm como ponto-chave o respeito à diversidade cultural, étnica e religiosa da Região Autônoma de Xinjiang sem abrir mão de seu pertencimento à República da China. Também trabalham a necessidade de todas as suas culturas e etnias cooperarem em uníssono pelo bem da nação. A região é exaltada por suas potencialidades geoestratégicas e seu desenvolvimento é visto como a ferramenta principal para sua estabilidade. Abaixo alguns excertos reveladores:
“Desde a fundação da República Popular da China em 1949 o governo chinês atribui grande importância na documentação e proteção das culturas tradicionais étnicas em Xinjiang garantindo que elas sejam transmitidas às gerações subsequentes. Ele tem promovido transformação criativa e desenvolvimento inovador encorajando estes grupos étnicos a aprenderem as línguas escritas e faladas uns dos outros, promovendo comunicação e integração, respeitando suas liberdades religiosas e trabalhando para desenvolver suas iniciativas culturais e industriais”.
“Hoje, Xinjiang se encontra em um novo ponto de seu desenvolvimento. Como uma região chave no Cinturão Econômico Rota da Seda, ela funciona como uma enorme janela da abertura chinesa para o Oeste. É um centro de transportes que conecta os continentes da Ásia à Europa e um centro de negócios e troca, finanças, intercâmbio cultural e científico e de serviços médicos. A Segunda Reunião Central sobre o Trabalho em Xinjiang formulou a estratégia ‘governar Xinjiang de acordo com a lei, estabilizar Xinjiang com unidade e construir Xinjiang com objetivos de longo prazo’. O povo de todos os grupos étnicos de Xinjiang aproveitarão a preciosa oportunidade de unir seus esforços para perseguir ainda mais conquistas históricas”.
Tal política regional só pode ser uma surpresa para quem desconhece profundamente os rumos da governança chinesa no período Xi Jinping. A estabilidade nacional por meio do desenvolvimento de todos os rincões chineses bem como a consecução do objetivo de “uma sociedade moderadamente próspera” são os objetivos centrais do PCCh em seus últimos congressos. Objetivos esses que vêm sendo perseguidos por meio de políticas públicas de investimento direto e pela formação de um arcabouço legal integrado que permita sua realização. Sobre o assunto, diz o próprio Xi:
“Iremos reforçar o apoio à aceleração do desenvolvimento das antigas áreas da base revolucionária, das áreas de minorias étnicas e das regiões fronteiriças e pobres, acentuar medidas para formar uma nova conjuntura do Grande Desenvolvimento do Oeste…”
“Impulsionamos profundamente a legislação científica, a aplicação rigorosa da lei, a prática imparcial da justiça e o respeito à lei por todos. Promoveu-se reciprocamente a construção de um Estado, um governo e uma sociedade regidos pela lei. O sistema de Estado de Direito socialista com características chinesas vem melhorando a cada dia, e a consciência de toda a sociedade sobre Estado de Direito foi fortalecida significativamente.”
“Defendemos com determinação a soberania nacional e a integridade territorial, jamais tolerando a repetição da tragédia histórica de separar o país. Qualquer atividade que visa separar a Pátria será firmemente oposta por todos os chineses.”
Ou seja, a China trabalha, ao menos no papel, para a construção de uma região autônoma onde seja respeitada a pluralidade étnica e religiosa e onde exista uma sociedade em rápido e profundo desenvolvimento social e econômico com vistas à integração interna e externa. Todavia, o que nos diz a mídia hegemônica?
O tsunami de mentiras
“A política chinesa contra os Uigures é a mancha de direitos humanos do nosso século”, “Refugiada Uigur conta sobre a morte e o medo dentro dos campos em Xinjiang”, “Os campos secretos chineses: o que aconteceu com os desaparecidos uigures de Xinjiang”.
Bem, ao lermos as notícias da mídia hegemônica, resta a impressão que o governo chinês vem perseguindo sistematicamente uma minoria, com requintes de crueldade, dentro de seu próprio território. Atentemos, ademais, ao fato de que tais notícias são veiculadas por grandes portais ocidentais, norte-americanos e britânicos, supostamente defensores da “liberdade democrática”.
Aqui as coincidências com a cobertura midiática sobre a Coreia do Norte são imensas. “Campos de concentração”, “perseguição política”, “dissidentes que passaram por condições infernais”, todos eles abundam na construção arquitetada de uma realidade alternativa com claros fins políticos de minar uma nação que compete com os poderes hegemônicos, seja no caso norte-coreano pelo seu próprio direito à existência, seja no caso chinês por mercados e domínio econômico.
Em um mundo coberto por satélites em que, apesar de qual seja o controle estatal, qualquer pessoa consegue facilmente acessar a Internet seja diretamente, seja pelo uso de proxies, de fato estaria havendo uma perseguição sistemática? Se sim, por qual razão?
A contraofensiva diplomática
Lembremo-nos aqui sobre as revoluções coloridas. Existe uma tentativa de implantar uma agora mesmo em Hong Kong – por sinal, ex-colônia britânica; com grande interesse dos Estados Unidos. À medida que essa tentativa vem arrefecendo e falhando, e a política de “Um país, dois sistemas”, política essa tão criticada por amplos setores das esquerdas, vem sendo mantida apesar dos pesares por Pequim, os Uigures, que haviam sumido dos noticiários desde janeiro deste ano, voltaram a se tornar foco da ofensiva estadunidense em declarações do secretário de Estado, Mike Pompeo.
Um detalhe: os EUA, que se pintam de campeões da tolerância religiosa são os mesmos cujo presidente acaba de vociferar ofensas contra uma congressista de origem islâmica. Aqui se torna muito interessante cotejarmos as declarações do secretário de Estado dos Estados Unidos, que provavelmente não conseguiria apontar Xinjiang em um mapa se sua vida dependesse disso, com as declarações de Mumtaz Baloch, ministra-conselheira da embaixada do Paquistão em Pequim, que visitou Urumqi, Kashgar e Hotan em Xinjiang com outros colegas do corpo diplomático de 12 nações:
“Nós pudemos testemunhar sinais deste desenvolvimento mesmo em partes remotas da região incluindo as áreas menos desenvolvidas ao sul… Nossa visita reforçou minhas percepções sobre essa região que a mesma possui uma identidade multiétnica e multicultural que é crítica para o desenvolvimento da região oeste da China e que é um importante nodo para a conectividade regional sob a Iniciativa Um Cinturão, Uma Estrada… Eu fiquei particularmente impressionada com as fábricas gerenciadas pelos Vilarejos e pelas SME’s (Pequenas e Médias Empresas) e as habitações de baixo custo sendo desenvolvidas para os vilarinhos… Durante a visita, nós tivemos a oportunidade de visitar o Instituto Islâmico de Xinjiang, os bazares, mesquitas, estações da polícia, o desenvolvimento econômico e os projetos de alívio da pobreza bem como os centros de treinamento e educação vocacional… Nós tivemos a oportunidade de interagir com ambos gerência e estudantes… Nós observamos que os estudantes estão com boa saúde física. Suas habitações são razoavelmente modernas e confortáveis com dormitórios separados para homens e mulheres. A eles é servida comida halal…. Eu não encontrei nenhuma instância de trabalho forçado ou repressão cultural ou religiosa. Os imãs que conhecemos nas mesquitas e os estudantes e professores do Instituto Islâmico de Xinjiang nos contaram que eles possuem liberdade para praticar o Islã e que o governo chinês oferece suporte para a manutenção de mesquitas por toda Xinjiang. Eu aprendi que existem mais de 30 mil mesquitas por toda a província de Xinjiang, que formam parte da vida religiosa das pessoas que vivem lá”.
Salta aos olhos a diferença brutal entre os relatos. De um lado, temos uma distopia pós-apocalíptica de campos de concentração, perseguição e morte. Do outro, temos uma região que vem se desenvolvendo e que aparenta ser um local de convivência pacífica entre diferentes etnias e religiões.
Aqui, assim como no exemplo norte-coreano onde as mentiras são tão absurdas que a cada semana temos uma nova “ressurreição”, é preciso que nos perguntemos o que é mais verossímil.
Um lugar onde as minorias islâmicas são perseguidas, porém existem 30 mil mesquitas. Onde não se pode ser muçulmano em paz, porém o Estado que persegue serve comida halal nos Institutos de Educação (islâmica, por sinal)… ou que exista, assim como tantas outras vezes na nossa história, uma campanha orquestrada de mídia com interesses geoestratégicos militares e políticos sendo conduzida pelas potências dominantes…
Conclusão
Frances Stonor Sauders, em seu brilhante livro Quem Pagou a Conta, já deixou demonstrado com um enorme cabedal de provas a participação da CIA e do Departamento de Estado norte-americano na construção de um aparato de Guerra Fria cultural que contava com artistas, intelectuais e empresas de mídia em todo o mundo. De igual maneira, Edward Said em seu clássico Orientalismo já nos mostrou como se deu a construção de um bizarro arquétipo maniqueísta do outro não-ocidental.
Por sua vez, Domenico Losurdo, uma das maiores mentes do último século, mapeou em seu A linguagem do Império, Léxico da Ideologia Estadunidense como aquele país usa de categorias do discurso para construir inimigos, reais ou imaginários, que sirvam aos desígnios de hegemonia da besta de guerra norte-americana.
Um último detalhe importante é lembrar aqui que se existe um lugar nesse planeta onde a xenofobia e o racismo matam constantemente, esse lugar se chama Estados Unidos da América, e, por falar em supostos “campos de concentração”, adivinhe quem tem a maior população carcerária do planeta em termos absolutos e em termos relativos (majoritariamente composta por negros e imigrantes)?
Mais uma vez, estamos diante de um construto fruto de pastiches mal-ajambrados e orientalismo barato. Ao ouvir o bater de cascos, podemos contar que, a cada 100 vezes, 99 será um cavalo ou jumento, uma vez será uma zebra e jamais será um unicórnio. Mas a mídia ocidental insiste em vender o “unicórnio de Xinjiang”.
Fontes:
https://drive.google.com/file/d/1Pf3f7mynOPMA7dhDX5C0zI3XJogmIuFZ/view?usp=sharing
http://www.china.org.cn/government/whitepaper/node_7230328.htm
http://english.gov.cn/archive/white_paper/2018/11/15/content_281476391524846.htm
https://edition.cnn.com/2019/01/18/asia/uyghur-china-detention-center-intl/index.html
https://www.bbc.co.uk/news/resources/idt-sh/China_hidden_camps
https://www.thenews.com.pk/amp/422970-pakistani-diplomat-narrates-visit-to-chinas-xinjiang
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/18/internacional/1563415828_332793.html
https://revistaopera.operamundi.uol.com.br/2019/06/14/o-que-esta-acontecendo-em-hong-kong/