Nas conversas sobre Hong Kong e a China continental, sempre chegávamos a um consenso: se você quer progredir de vida, vá para os Estados Unidos ou volte para o continente, mas não há futuro em Hong Kong. Nos últimos anos, o declínio da cidade ocorreu a uma velocidade chocante. No momento da devolução em 1997, o PIB per capita de Hong Kong era o dobro de Macau. O PIB de Hong Kong era 18% do da China na época; em 2013, era apenas 3%. Agora, o PIB de Macau é três vezes o de Hong Kong. Em 1997, nem Pequim, Xangai e Cantão tinham PIBs próximos dos de Hong Kong; agora todos os três são superiores, assim como os de Shenzhen e Tianjin. Hong Kong, por favor, me esqueça.
Os bons e velhos tempos
Sob o domínio britânico, a população de Hong Kong não tinha voz nas nomeações políticas e na escolha de seu governador, que era comandante em chefe das forças militares e podia fazer absolutamente qualquer coisa, menos condenar pessoas à morte. Grampos telefônicos não exigiam mandados; quando a polícia negava permissão para um protesto de rua, o máximo que os tribunais locais podiam fazer era adequar sua própria papelada às decisões policiais; o Legislativo hong-konguês era um mero carimbo de borracha, e não havia oposição política. Sob a opressão comunista, os tribunais revisam decisões policiais por razoabilidade, os cidadãos elegem seus legisladores, o governo tem oposição política, e a chefe do Executivo não pode declarar a lei marcial nem convocar os militares. Todavia, algumas coisas não mudaram: ainda é ilegal em Hong Kong se filiar ao Partido Comunista da China.
Elementos ausentes
Alguns aspectos da Hong Kong contemporânea ausentes da cobertura da nossa mídia:
- Enquanto controlava o acesso ao mercado gigantesco da China, Hong Kong prosperou. Claro que o capitalismo, a democracia e a justiça britânica não tinham nada a ver com isso.
- Se Hong Kong tivesse sido incorporada por completo ao continente em 1997, sua prosperidade estava assegurada.
- Antes da devolução da cidade, o Reino Unido introduziu a democracia eleitoral, o cálice envenenado que pôs fim às esperanças de desenvolvimento da colônia.
- Quando a crise financeira asiática derrubou os mercados imobiliários, o chefe do Executivo, Tung Chee-Hwa, criou o “Projeto de Desenvolvimento Habitacional de 85 mil” para construir casas acessíveis e diversificar a economia, construindo o Parque Científico de Hong Kong e aumentando o investimento em comércio, educação, indústria e turismo.
- Quando as unidades habitacionais acessíveis chegaram ao mercado, a burguesia se opôs a elas porque afetavam os preços dos imóveis. O Legislativo votou com a burguesia e os jovens apoiaram os protestos burgueses. Tung foi difamado e derrubado.
- Depois que 224 pessoas foram mortas nos tumultos na Praça da Paz Celestial em 1989, a Inteligência Francesa, o MI6 da Grã-Bretanha e a CIA transportaram clandestinamente 600 agentes de Hong Kong para os países ocidentais. A República Popular da China prendeu três ativistas de Hong Kong, mas os libertou após a intervenção do governo hong-konguês.
- Quando a China ingressou na OMC em 2001, o comércio contornou Hong Kong, a estagnação se instalou, e os hong-kongueses mais brilhantes e capacitados, assim como os taiwaneses, foram buscar uma vida melhor no continente.[1]
- O perfil de Hong Kong agora se parece, de fato, com o da Grã-Bretanha: 23% de suas crianças vivem na pobreza – em comparação com o 1% da China continental.
- A propriedade de casas – um pré-requisito matrimonial – caiu de 53% em 2010 para 49% em 2018 –, em comparação a 78% na China continental.
- Hong Kong está atrás de Londres e Nova York entre a maior concentração de indivíduos em um mesmo espaço que, juntos, têm renda equivalente a mais de US$ 30 milhões.
- Os dez cidadãos mais ricos de Hong Kong representam 35% do seu PIB.
- O coeficiente Gini de Hong Kong é de 0,539, o de Singapura é de 0,458 em 2016, o dos EUA é de 0,394 e o do Reino Unido é de 0,358. (0 = igualdade).
- O aluguel para um “apartamento-caixão” em Hong Kong é de HK$ 2.000/mês.
Os problemas de Hong Kong ilustram as deficiências tão familiares ao capitalismo: a acumulação de riqueza superou em muito o desenvolvimento das forças produtivas, e a grande maioria dos cidadãos não tem como compartilhar de seus benefícios. Uma grande classe rentista detém a maior parte dos recursos sociais da cidade, ou seja, a mesma contradição – entre a acumulação de capital e o desejo da sociedade de ter uma vida digna – que enfrentamos nos EUA.
O que os hong-kongueses realmente precisam? Crescimento econômico, oportunidades de emprego e melhor moradia, objetivos que a China continental já logrou. Se os habitantes de Hong Kong desejam um futuro brilhante, eles precisam trabalhar mais juntos da China e fazer com que seus padrões educacionais acompanhem o continente. Sua juventude deve desenvolver uma compreensão clara de seus verdadeiros amigos e inimigos reais.
O quebra-cabeça dos protestos
Os protestos são interessantes por vários motivos:
- Eles são dirigidos a Pequim, que nem sequer conta com um tratado de extradição com Hong Kong e nunca solicitou um.
- Eles são cronometrados (provavelmente pela NED) para coincidir com o aniversário da devolução da cidade pelo Reino Unido – julho de 1997.
- Eles ignoram as instituições financeiras e os capitalistas que bloqueiam a mudança legislativa.
- A mídia ocidental os cobre simpática e quase histericamente, ignorando os protestos reais em Gaza, Honduras, Sudão, Iêmen e Brasil.
- A mídia britânica – que perseguiu, torturou e encarcerou Julian Assange por crimes não políticos – agora pede sua extradição, enquanto teme que o governo chinês use “crimes não políticos para processar os críticos”.
- O governo do Reino Unido se recusou a vender equipamento de controle de multidões para a polícia de Hong Kong.
- Imagine como o Departamento de Polícia de Nova York responderia se um de seus policiais fosse atacado assim:
https://www.youtube.com/watch?v=DMBhSH6zHpU
- A polícia de Hong Kong informou ter disparado 150 bombas de gás lacrimogêneo, várias balas de borracha e 20 bean bags durante um dia de grave violência, causando 72 feridos – nenhum dos quais exigiu hospitalização – e 30 prisões.
- A polícia francesa, por outro lado, disparou 19 mil balas de borracha no ano passado e 5.400 granadas de choque, causando 850 ferimentos graves e 30 mutilações, além de dezenas de fraturas faciais e cranianas. Doze manifestantes franceses perderam um olho. Incluindo os feridos por gás lacrimogêneo, canhões de água e cassetetes, o número se aproximaria de seis números, um nível de repressão que não se via desde a ocupação alemã.
- A polícia francesa prendeu nove mil pessoas apenas no dia 24 de março, metade dos quais foram condenados à prisão – e isso antes de as ordens serem emitidas para prender os manifestantes o mais rápido possível.
- O quase total silêncio da mídia ocidental sobre os manifestantes franceses foi acompanhado por uma propaganda implacável, apresentando-os como hooligans.
A NED: Fazendo o trabalho de Deus
A conclusão da ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau e a ferrovia de alta velocidade Hong Kong-Continente, juntamente com o implacável declínio do apoio dos eleitores aos partidos pró-”democracia” [2] em todas as eleições de Hong Kong estão acelerando a retirada indecorosa do Ocidente de uma Ásia que nunca os convidou. A lei de extradição irá corroer ainda mais a influência ocidental e acelerar a integração política e econômica de Hong Kong. Aqui estão alguns elementos de desintegração:
- Existem 37 mil ONGs registradas em Hong Kong (em comparação com 13 mil em Xangai, que é uma cidade quatro vezes maior), muitas das quais recebem financiamento dos EUA e da Europa.
- Em março de 1997, a NED enviou sua primeira missão de pesquisa a Hong Kong para avaliar o ambiente político e identificar possibilidades de programação da NED no território.[3]
- 14 missões de pesquisa da NED visitaram Hong Kong até 2012 para avaliar o ambiente político e identificar suas possibilidades de atuação.
- Em 2004, a NED constatou pouco interesse entre os estudantes universitários de Hong Kong em ativismo político.
- Entre 1995 e 2013, o Hong Kong Human Rights Monitor (HKHRM) recebeu mais de US$ 1,9 milhões em fundos da NED.
- Por meio de suas filiais NDI e SC, a NED mantém estreitas relações com outros grupos em Hong Kong. A SC doou US$ 540 mil à Confederação de Sindicatos de Hong Kong nos últimos sete anos.
- As mensagens do protesto atual e seus grupos associados levantam questões sobre o quão orgânico o movimento é: alguns dos grupos recebem financiamento direto e significativo da NED; os ministérios das Relações Exteriores do Canadá e da Grã-Bretanha divulgaram publicamente seu papel por trás dos protestos; os manifestantes apelam ao público ocidental, usando cartazes em inglês e a hashtag “AntiExtraditionLaw”; grupos de manifestantes empunham bandeiras coloniais de Hong Kong enquanto acusando a China de colonialismo.
- Manter Hong Kong separada da China tem sido uma prioridade americana por décadas. Um ex-agente da CIA chegou a admitir: “Hong Kong era nosso posto de escuta”.
- 70 ONGs internacionais endossaram uma carta aberta pedindo que o projeto de lei fosse enterrado, mas assinaram apenas a Anistia Internacional, a Human Rights Watch e a Hong Kong Human Rights Monitor (HKHRM) – todas fachadas dos EUA.
- Em 2018, a NED concedeu US$ 155 mil para a SC e US$ 200 mil para a NDI para atuar em Hong Kong, e US$ 90 mil para a HKHRM, que não é uma filial da NED, mas uma parceira sua na cidade.
- A coalizão citada pela mídia de Hong Kong, incluindo o South China Morning Post e a Hong Kong Free Press, lista como organizadores das manifestações a Frente Civil de Direitos Humanos. O site dessa organização lista o HKHRM (financiado pela NED), a Confederação de Sindicatos de Hong Kong, a Associação de Jornalistas de Hong Kong, o Partido Cívico, o Partido Trabalhista e o Partido Democrata como membros da coalizão.
- Como Pequim tem conhecimento da influência da NED nos protestos do Occupy em Hong Kong em 2014, é inconcebível que os atuais organizadores do protesto não estejam cientes dos laços da NED com seus membros. Uma autoridade da NED, Louisa Greve, disse à Voz da América que os “ativistas sabem dos riscos de trabalhar com parceiros da NED” em Hong Kong.
- A presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Nancy Pelosi, disse que o Congresso “não tem escolha a não ser reavaliar se Hong Kong é ‘suficientemente autônoma’ sob a estrutura ‘um país, dois sistemas’”.
- O Departamento de Estado diz que o projeto de lei de extradição poderia “minar a autonomia de Hong Kong e afetar negativamente a proteção a longo prazo dos direitos humanos, liberdades fundamentais e valores democráticos”.
- Martin Lee, fundador do Partido Democrático de Hong Kong, uma organização integrante da Frente Civil de Direitos Humanos, reuniu-se com o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, que expressou seu apoio aos protestos.
- Por que os protestos estão sendo apoiados por uma potência estrangeira que atualmente promove um golpe na Venezuela, ameaça a Coreia do Norte e tenta iniciar uma guerra contra o Irã?
A atual emenda
A emenda “permitiria, caso a caso, que Hong Kong entregasse fugitivos a jurisdições que não contam com acordos de extradição a longo prazo com a cidade”, entre elas a China continental e Taiwan. A proposta foi introduzida quando autoridades descobriram que um homem de Hong Kong, procurado por assassinar sua namorada grávida, não poderia ser devolvido a Taiwan para ser julgado. Sob a lei atual, criminosos de outras partes da China podem escapar das acusações fugindo para Hong Kong (imagine se a Louisiana, sob seu código napoleônico, se recusasse a extraditar fugitivos do Texas ou da Califórnia por crimes cometidos naqueles estados). Nos termos da emenda, serão extraditáveis os seguintes crimes:
- Auxílio, cumplicidade, aconselhamento ou provocação de suicídio.
- Ferir maliciosamente; mutilar; infligir dano corporal grave ou real; agressão ocasionando danos corporais reais; ameaças de homicídio; risco intencional ou imprudente de morte, seja por meio de arma, substância perigosa ou não; infrações relativas a ferimentos ou lesões ilegais.
- Ofensas de natureza sexual, incluindo violações; agressão sexual; atentado ao pudor; atos sexuais ilícitos contra crianças; delitos sexuais estatutários.
- Indecência grosseira com uma criança, um deficiente mental ou uma pessoa inconsciente.
- Rapto; abdução; prisão falsa; confinamento ilegal; intercâmbio ou tráfico de escravos ou outras pessoas; tomar um refém.
- Intimidação criminal.
- Infrações contra a lei relativa a drogas perigosas, incluindo narcóticos, substâncias psicotrópicas, precursores de drogas e produtos químicos essenciais utilizados na fabricação ilegal de narcóticos e substâncias psicotrópicas; infrações relativas ao produto do tráfico de droga.
- Obtenção de propriedade ou vantagem pecuniária por engano; furto; roubo; assalto (incluindo arrombamento); desfalque; chantagem; extorsão; manuseio ou recebimento ilegal de bens; contabilidade falsa; qualquer outra infração relativa à propriedade ou questões fiscais envolvendo fraude; qualquer infração contra a lei relativa à privação ilegal de propriedade.
- Infrações contra a lei de falências ou lei de insolvência.
- Infrações à lei relativas a empresas, incluindo infrações cometidas por funcionários, diretores e promotores.
- Infrações relacionadas a valores mobiliários e negociação de futuros.
- Infrações relacionadas à contrafação; infrações contra a lei relativas à adulteração ou proferir o que é forjado.
- Infrações à lei relacionadas à proteção de propriedade intelectual, direitos autorais, patentes ou marcas registradas.
- Infrações relacionadas a suborno, corrupção, comissões secretas e quebra de confiança.
- Perjúrio e suborno de perjúrio.
- Infrações relacionadas com perversão ou obstrução do curso da justiça.
- Incêndio culposo; danos criminais ou prejuízos morais, incluindo crimes em relação a dados de computador.
- Infrações contra a lei relativa a armas de fogo.
- Infrações contra a lei relativa a explosivos.
- Infrações relativas à poluição ambiental ou à proteção da saúde pública.
- Motim ou qualquer ato de motim cometido a bordo de um navio no mar.
- Pirataria envolvendo navios ou aeronaves.
- Apreensão ilegal ou exercício de controle de uma aeronave ou outro meio de transporte.
- Genocídio ou incitamento direto e público para cometimento de genocídio.
- Facilitar ou permitir a fuga de uma pessoa sob custódia.
- Infrações contra a lei relativa ao controle da exportação ou importação de mercadorias de qualquer tipo, ou a transferência internacional de fundos.
- Contrabando; importação e exportação de itens proibidos, incluindo itens históricos e arqueológicos.
- Infrações de imigração, incluindo aquisição fraudulenta ou uso de passaporte ou visto.
- Organizar ou facilitar, mediante ganho financeiro, a entrada ilegal de pessoas a uma jurisdição.
- Infrações relacionadas a jogos de azar ou lotarias.
- Infrações relacionadas à interrupção ilegal da gravidez.
- Roubar, abandonar, expor ou deter ilegalmente uma criança; quaisquer outras infrações envolvendo a exploração de crianças.
- Infrações relacionadas com a prostituição e instalações mantidas para fins de prostituição.
- Infrações envolvendo o uso ilegal de computadores.
- Infrações relacionadas a questões fiscais, impostos ou direitos.
- Infrações relacionadas à fuga ilícita da custódia; rebelião na prisão.
- Infrações relacionadas a mulheres e meninas.
- Infrações contra a lei relativa a descrições comerciais falsas ou enganosas.
- Delitos relacionados à posse ou lavagem de dinheiro obtidos com a prática de qualquer delito descrito neste Apêndice.
- Impedir a prisão ou acusação de uma pessoa que tem ou acredita-se ter cometido uma infração descrita nesta Tabela.
- Infrações pelas quais as pessoas podem ser entregues em convenções internacionais multilaterais; delitos criados como resultado de decisões de organizações internacionais.
- Conspiração para cometer fraude ou fraudar.
- Conspiração para cometer, ou qualquer tipo de associação para cometer, qualquer infração descrita neste Cronograma.
- Auxiliar, incentivar, aconselhar ou solicitar o cometimento de, incitar, servir de auxílio antes ou depois do fato, ou tentar cometer uma infração descrita no presente Cronograma.
A atual onda de guerras iniciadas pelos EUA, ameaças de guerras, embargos, ameaças de embargos, golpes, ameaças de golpes, censura pesada e propaganda massiva, embora impressionantes em sua amplitude, parece carecer de coerência estratégica, eficácia tática, credibilidade ou eficiência.
[rev_slider alias=”livros”][/rev_slider]Notas:
[1] – Taipei recentemente multou 30 taiwaneses por aceitarem empregos na China continental. [2] – O Tribunal de Hong Kong determinou que Howard Lam, 42 anos, fundador do Partido Democrata de Hong Kong, que alegou ter sido sequestrado em 10 de agosto de 2017 por agentes chineses do continente e mentiu sobre ser sequestrado e torturado com um grampeador por tais agentes. [3] – A NED conta com quatro filiais principais, das quais, pelo menos, duas são ativas em Hong Kong: o Centro de Solidariedade (SC) e o Instituto Nacional Democrático (NDI).