A moeda chinesa saiu da sua banda e desvalorizou para mais de 7 yuans a 1 dólar. Ao mesmo tempo, a China anunciou que não compraria mais produtos agrícolas dos EUA. A estratégia comercial de Trump e dos neocons americanos acaba de implodir. Como eu havia previsto, a última fronteira foi agora ultrapassada: de uma guerra comercial de tarifas entre os EUA e a China para uma guerra econômica mais ampla, em que outras táticas e medidas estão sendo executadas.
Trump, sem dúvida, declarará que a China está manipulando sua moeda. Uma desvalorização do yuan tem o efeito de retaliação às tarifas de Trump impostas à China. Contudo, a China não está manipulando sua moeda. A manipulação é definida como a entrada nos mercados monetários globais para comprar e/ou vender uma moeda em troca de dólares (a moeda global de negociação) a fim de influenciar o preço final (taxa de câmbio) da sua própria moeda em relação ao dólar.
Mas a China não está fazendo isso. Portanto, os chineses não estão manipulando. O que está acontecendo é que o dólar americano está se valorizando (ou espera-se que esteja), e essa valorização, na verdade, reduz o valor do yuan. O mesmo está ocorrendo também com outras moedas em decorrência da alta do dólar. Por que o dólar está subindo? Há uma debandada global por segurança, e isso significa comprar títulos do Tesouro americano – que agora estão em queda livre em termos de taxas de juros (e aumentando em termos de preço). Os preços de um ano ou até menos, para os títulos do Tesouro de 10 e 30 anos, estão aumentando. Porém, para comprar títulos do Tesouro, os investidores estrangeiros precisam vender suas moedas e comprar dólares. Essa demanda crescente por dólares é o que eleva o valor da moeda americana, o que, por sua vez, desvaloriza o yuan em relação a ela.
Em outras palavras, a desaceleração da economia global, impulsionada pelas guerras comerciais de Trump, é o que está causando uma fuga para o dólar e para o refúgio seguro dos títulos do Tesouro dos EUA. As políticas de Trump estão no centro da desaceleração global (já em andamento devido a forças fundamentais que paralisam o investimento e o crescimento). Tal desaceleração é o que segue impulsionando o dólar e, por sua vez, reduzindo o valor do yuan. São as políticas de Trump as responsáveis pela “manipulação” do yuan e não a China.
A China, é claro, permite que a desvalorização ocorra. Anteriormente, ela estava ingressando em mercados monetários para comprar yuan a fim de evitar sua desvalorização. Agora, é preciso apenas permitir que o processo ocorra. Essa é a resposta da China a Trump, que impôs tarifas adicionais de 10% sobre os US$ 300 bilhões de importações vindas da China semanas atrás. Ele sinaliza que a guerra “comercial” (que agora se tornou uma guerra econômica) foi além das tarifas. Com as recentes ações de Trump e agora a resposta chinesa, o potencial para um acordo comercial em 2019 parece ainda mais improvável do que antes.
O que fará Trump agora? Se permanecer fiel a seu comportamento anterior quando seus parceiros de barganha se levantarem contra ele, Trump tentará encontrar uma maneira de “dobrar a aposta” e tomar medidas adicionais. Ele poderia intensificar seu ataque à Huawei e às parcerias e investimentos de outras corporações da China nos EUA. Os chineses, por sua vez, imporão restrições às empresas norte-americanas que fazem negócios na China (ou seja, maior imposição de licenças, mais inspeções alfandegárias e mais barreiras não tarifárias). Poderiam desencadear um boicote antiamericano na China contra produtos dos EUA. Poderiam reduzir a oferta de exportação de “terras raras”. Poderiam suspender sua decisão de permitir que empresas norte-americanas que fazem negócios na China tivessem uma participação de 51% nessas operações. E há ainda “opções nucleares”: reduzir drasticamente ou interromper completamente a compra de títulos do Tesouro americano e, assim, parar a reciclagem de dólares americanos. Se isso ocorrer, o governo americano teria que pedir emprestado dólares de outras fontes para compensar seu déficit orçamentário anual. Isso elevaria a dívida nacional anual dos EUA ainda mais rapidamente do que ela já tem crescido – hoje superior a US$ 22 trilhões, com projeção de subir mais de US$ 1 trilhão este ano. Se a recessão acontecer, os déficits e dívidas poderão subir até US$ 1,7 trilhão, segundo pesquisa do Escritório de Orçamento do Congresso dos EUA (CBO).
Todavia, considerando a maior demanda por dólares para a compra títulos do Tesouro, o Tesouro americano e o FED teriam mais dificuldade em vender esses títulos, dado a diminuição de compras da China, visto que os preços do Tesouro estão subindo e os juros caindo.
Em suma, a guerra comercial EUA-China, a desaceleração da economia global (que está prestes a chegar à economia americana), o déficit orçamentário dos EUA e as taxas de juros do FED estão todos inter-relacionados. As políticas de Trump estão provocando destruição econômica em todas essas frentes.
Quais são algumas das prováveis respostas, por conseguinte, às reações da China à dura estratégia de Trump, impulsionada pelos neoconservadores norte-americanos desde maio?
Os neocons terão atingido seu objetivo, que sempre foi o de frear as negociações com a China, a menos que o país asiático capitulasse no tema da tecnologia. Por trás das tarifas, por trás da guerra comercial, sempre esteve a guerra pelas tecnologias de última geração (segurança cibernética, 5G e Inteligência Artificial – IA). Agora está claro que a China não capitulará. Dessa forma, nenhum acordo comercial é possível enquanto os neoconservadores dos EUA continuarem no controle das negociações comerciais, algo que, até o momento, ainda se mantém. Os neocons usarão a forte resposta da China às últimas tarifas de Trump para convencê-lo a adotar uma linha ainda mais dura contra as empresas chinesas instaladas nos EUA e no exterior, contando com aliados obsequiosos, como o Reino Unido e o Canadá.
A equipe de reeleição da campanha de Trump verá isso como uma oportunidade para começar a culpar a China pela desaceleração da economia americana. Temas como a “manipulação da moeda chinesa” e “China, a fonte dos opiáceos dos EUA” podem se tornar o mantra da Casa Branca.
Grandes empresas americanas e corporações multinacionais ficarão mais motivadas para pressionar Trump a voltar à mesa de negociação e resolver a questão. Até agora, entretanto, elas não obtiveram sucesso em influenciar o presidente e as negociações comerciais. O Pentágono, o complexo industrial-militar e a indústria de guerra dos EUA estão gritando no ouvido de Trump: “Ou a capitulação em matéria tecnológica, ou nenhum acordo”.
O setor agrícola americano estará em apuros. É quase certo que dentro dos próximos seis meses Trump precisará lhes fornecer um terceiro pacote de ajuda, chegando a US$ 20 bilhões ou mais. Isso significará um gasto total de US$ 50 bilhões em subsídios agrícolas por conta da guerra comercial China-EUA.
Do ponto de vista global, as economias emergentes tendem a ser grandes perdedoras em decorrência da piora das relações comerciais entre Trump e China. Suas moedas reduzirão como o yuan. Porém, esses países dispõem de muito menos recursos que a China para enfrentar a crise. A desvalorização da moeda em economias de mercado emergentes (EMEs) significará maior fuga de capital, buscando “refúgio seguro” em títulos do Tesouro dos EUA, em outras moedas (iene do Japão como “carry trade”) ou no ouro. Tal fuga de capital desacelerará o investimento doméstico. Seus bancos centrais aumentarão as taxas de juros para diminuir a fuga, mas isso irá desacelerar ainda mais suas economias domésticas. As moedas em queda também significarão o aumento da inflação de bens de importação e elevarão os níveis de inflação doméstica, à medida que suas economias simultaneamente desacelerarem. As EMEs enfrentarão mais recessão em meio à crescente inflação.
A deterioração do comércio entre a China e os EUA também provavelmente exacerbará os conflitos intercapitalistas, como já está começando a aparecer na atual disputa comercial Coreia do Sul-Japão.
O agravamento da situação EUA-China terá ainda um efeito negativo sobre a economia da Europa, que já está prestes a entrar em recessão. Mais dependente das exportações, em especial a Alemanha, a deterioração do comércio global exacerbará a desaceleração europeia. A crescente probabilidade de um “hard Brexit” acontecer em outubro levará quase certamente a Europa a uma outra grande recessão, mesmo antes dos EUA.
À medida que a economia global se contrai, os mercados financeiros – já caindo drasticamente a nível recorde – podem ficar cada vez mais instáveis. No topo da lista de mercados financeiros “frágeis” estão os empréstimos bancários inadimplentes na Europa, no Japão e especialmente na Índia. Os “bancos-sombra” da Índia são particularmente instáveis. Mercados de títulos corporativos baseados em dólar na América Latina são outro ponto de fragilidade. E nos EUA, os junk bonds, títulos corporativos (também títulos podres) e empréstimos alavancados (ou seja, empréstimos não garantidos) estão sujeitos a eventos de instabilidade financeira após a próxima recessão americana.
Em suma, Trump tem feito uma bagunça na política econômica americana. E o FED e a política monetária de juros baixos não poderão “salvá-lo”. Os cortes nas taxas de juros recentes (e futuros) não terão praticamente efeito algum sobre a economia real americana nos próximos meses. E Trump essencialmente negou a política fiscal como fonte de estímulo. Seus enormes cortes de impostos em 2018 (US$ 4 trilhões no decorrer da próxima década) tiveram um papel primordial nos déficits orçamentários anuais de US$ 1 trilhão dos EUA, agora incorporados anualmente à economia americana por mais uma década. A dívida nacional dos EUA chegará a US$ 34 trilhões e, segundo o CBO, os juros da dívida subirão para US$ 900 bilhões por ano até 2027. Assim, tanto a política fiscal como a política tributária se encontram encurraladas junto à política de juros dos bancos centrais. E os enormes déficits e dívidas mitigam as ações políticas de Trump para aumentar os gastos do governo como uma forma de sair da crise.
Na última década ou mais, a política dos EUA consistiu em usar tanto a política monetária quanto a tributária para subsidiar a renda do capital na cifra de trilhões de dólares ao ano, todos os anos. Antes, a política monetária (FED) e fiscal era utilizada para “estabilizar” a economia em caso de recessão ou inflação. Não mais. Mais de uma década utilizando essas políticas levou à negação de sua eficácia para fins de estabilização econômica.
Os EUA estão agora a caminho de uma grande recessão, sem a “munição monetária” nem a munição fiscal à sua disposição para tentar estimular a economia. Isso nunca aconteceu antes. Contudo, suas consequências podem ser imensas – para a profundidade e duração de qualquer recessão.
[rev_slider alias=”livros”][/rev_slider]