Marcado por um regime de proteção social de ideologia liberal, o sistema de saúde estadunidense é público-privado, porém o predomínio é do setor privado, que cobre maior parcela da população [1]. Apesar de ser uma das maiores potências econômicas do mundo, parte da malha social nos Estados Unidos deixa a desejar, em especial no setor saúde. O país não possui um sistema de saúde universal como o Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, o National Health Services (NHS) na Inglaterra, o Sistema Nacional de Salud (SNS) na Espanha, dentre outros ao redor do mundo que, apesar de seus problemas e desafios (inclusive estruturais), fazem parte de um conjunto de conquistas sociais importantes.
Mesmo com um gasto de, em média, 17% do Produto Interno Bruto (PIB) em saúde, a “grande potência” está longe de apresentar os resultados (outcomes) condizentes com este gasto [2]. O alto custo não está atrelado aos resultados. Em outras palavras, trata-se do sistema de saúde mais caro do mundo, mas que possui um desempenho muito abaixo do esperado. Estudos apontam que o país tem uma Atenção Primária à Saúde (APS) fraca; não se tem investimento necessário nos cuidados de promoção e prevenção – um exemplo disso são as vacinas. Hipóteses do porquê se gasta tanto em desfechos não favoráveis, apontam para a falta de uma boa APS que faz com que os casos sejam encaminhados para a média e alta complexidade, que são serviços/exames/equipamentos mais custosos e tratamentos mais caros. “Gasta-se muito, porém mal” pode ser uma boa síntese do fenômeno.
Em estudo do The Commonwealth Fund (2014), diversos indicadores (qualidade do cuidado; acesso; eficiência; equidade; vidas saudáveis) foram utilizados para comparar os sistemas de saúde de onze países ‘desenvolvidos’ (Alemanha, Austrália, Canadá, EUA, França, Holanda, Noruega, Nova Zelândia, Reino Unido, Suécia, Suíça). Os EUA ficou em último lugar no ranking e apresentou os piores índices em termos de “eficiência, equidade e vidas saudáveis”.
O documentário “SICKO: SOS Saúde” de Michael Moore (2007), também nos oferece elementos para analisarmos o sistema de saúde estadunidense ao compará-lo com os do Canadá, Cuba, França e Inglaterra.
Tem acesso quem tem dinheiro
Nos EUA, o governo subsidia o seguro de alguns grupos específicos – o Medicare para maiores de 65 anos e pessoas com incapacidade/invalidez, e o Medicaid para população de baixa renda. Ambos os programas entraram em vigor em 1965. Entretanto, mesmo esses grupos precisam entrar com parte da despesa e pagar por medicamentos, internações hospitalares e tratamentos especiais (“copayment“/copagamento ou coparticipação).
“E o resto da população?” À mercê das leis do mercado e se endividando para pagar um seguro de saúde (health insurance) privado. E mesmo sendo praticamente a única opção da população, as seguradoras são bem rigorosas no processo de adesão da clientela. Elas possuem autonomia para recusar planos às pessoas sob as mais diversas alegações (doenças preexistentes, por exemplo), além de não haver uma agência reguladora desse setor privado no país [3]. Com isso, as seguradoras têm liberdade para cobrar “o quanto quiserem” de seus clientes, sem intervenção do Estado – o controle é do mercado.
Obamacare: um avanço ameaçado pelo “Trumpismo”
O ex-presidente Barack Obama tentou mudar a estrutura do sistema de saúde dos EUA. O Patient Protection and Affordable Care Act (PPACA – Lei de Proteção e Cuidado ao Paciente), conhecido como Affordable Care Act (ACA) e apelidado como “Obamacare“, é uma lei federal dos Estados Unidos sancionada em 2010, mas que entrou em vigor apenas em 2014. Foi a reforma mais ambiciosa no sistema de saúde estadunidense desde os programas Medicare e Medicaid.
A lei facilita a aquisição de seguros aos cidadãos do país ao implementar uma série de medidas, com subsídios estatais, para tornar os planos acessíveis a uma maior parcela da população. Além disso, impôs regras às seguradoras (como aceitar pacientes com doenças preexistentes). Estima-se que mais de 15% da população não estava coberta (mais de 40 milhões de pessoas) até o Obamacare entrar em vigência em 2014. Desde então o número vem reduzindo.
Ainda que a reforma de Obama seguisse mantendo o setor privado como principal porta de acesso à saúde, ela não foi bem aceita pelos republicanos e menos ainda pelo mercado; parte significativa da população também não se colocou a favor. Isso talvez não seja novidade tendo em vista que o discurso liberal do “self-made man” e do “Estado mínimo” nos EUA é bem forte. A população por vezes opta ficar doente para aderir ao plano já que, graças ao programa Obamacare, as seguradoras são obrigadas a aceitarem pessoas com doenças preexistentes.
A proposta de Donald Trump para a saúde ainda não está consolidada. O que se sabe é que Trump prometeu desmantelar o programa do ex-presidente. O caso já inclui a declaração de um juiz federal como benefício inconstitucional e Trump afirma que trará novidades para sua campanha em 2020.
Para ele, o Estado não deve dizer ao cidadão “como gastar seu dinheiro”. Espera-se que os subsídios federais para pessoas de baixa renda sejam consideravelmente reduzidos e mais pessoas voltem a ficar sem cobertura e assistência à saúde.
Estado de “desproteção social”
No início do mês de agosto deste ano, um homem de 77 anos matou sua mulher, de 76, e se matou em seguida na Costa Oeste dos EUA. Uma matéria foi recentemente publicada na Revista Piauí e traz com mais detalhes o caso. O que se quer destacar aqui é: “Não foi um crime passional, nem motivado por briga, nem por nenhuma razão que se possa imaginar intuitivamente: foi pelo desespero de não poder pagar dívidas médicas”.
Talvez não tenham sido os primeiros e talvez nem serão os últimos. Quantas vidas mais serão tomadas por um modelo que não trata de resolver os problemas mais básicos da vida humana? O que se sabe é que as companhias de seguros continuam a absorver bilhões de dólares em cuidados com a saúde.
Uma luz no fim do túnel?
Tendo em vista os custos astronômicos do país com os cuidados em saúde e a falta de acesso que continuam a levar indivíduos, famílias e empresas a ultrapassar seus limites, movimentos relativamente recentes têm ganhado força para romper com esse modelo. Desde 2017, essa agenda tem aparecido com mais potência.
Proposto pelo senador Bernie Sanders (Partido Democrata), o Medicare for All seria um novo sistema de saúde administrado pelo governo federal em que este seria o único fornecedor de seguros saúde nos EUA. Nesta proposta, os seguros privados de saúde seriam eliminados e o Medicare seria substituído por um novo programa que englobaria não apenas a população idosa, mas toda a população estadunidense.
No geral, os políticos afirmam querer uma saúde universal para os EUA, mas não falam como chegar à ela. As abordagens do que seria a “cobertura universal” também variam bastante [4]. De qualquer modo, a promessa é a de que em quatro anos o Medicare for All modifique a distribuição da cobertura por seguro no país.
Análises do programa proposto afirmam que será um sistema caro, pois além do setor privado ficar responsável apenas pelos serviços odontológicos e oftalmológicos, o único gasto out-of-pocket (pagamento total “direto do bolso” do paciente) seria o de $200 dólares/ano por meio de co-pagamento na prescrição de medicamentos.
Acredita-se que o financiamento do programa será feito por meio de taxas e impostos, que irão sofrer um aumento progressivo. O senador afirma que pagarão mais taxas, porém pagarão menos na assistência médica que vierem a receber. Outras propostas como a da senadora Kirsten Gillibrand (também do Partido Democrata), que também acredita no sistema de saúde universal como um direito, sustenta que a maneira mais rápida de se chegar lá é criando competição entre as seguradoras. Ou mesmo nivelar o campo de jogo e fazer com que os seguros privados compitam com a opção pública.
De fato esta seria uma reforma ainda mais ambiciosa que o Obamacare. Com apoio público recorde entre a população e os democratas, que agora controlam a Câmara, o movimento busca a aprovação da Lei do “Medicare for All” (2019) na Câmara para dar continuidade nas instâncias superiores. Mas, para fazer isso, é necessário que se construa um apoio público ainda maior.
Diversos setores têm participado veemente do debate com agendas e encontros para a discussão. Destaca-se a National Nurses United (NNU), que é a maior associação sindical e profissional de enfermeiras e enfermeiros registrados na história dos EUA, e realiza articulações entre a população e políticos democratas. Fundada em 2009, a NNU adotou um chamado para ação com base em princípios destinados a combater o ataque nacional ao setor saúde. Dentre um dos princípios está “obter justiça em cuidados de saúde, assistência médica acessível e de qualidade para todos, como um direito humano” (tradução livre). Afinal, pode-se observar que a saúde como um direito dos cidadãos e dever do Estado não é uma realidade nos EUA. Ainda.
[rev_slider alias=”livros”][/rev_slider]Notas:
[1] Cabe mencionar que são raros os sistemas de saúde “puros” atualmente. O que existe, de fato, hoje são sistemas mistos (Santos et al., 2008). Mesmo o sistema cubano, que possui um encargo de 91,6% por parte do Estado, possui, consequentemente, 8,4% por parte dos privados na saúde (dados de 2006). No Brasil, esses encargos, no mesmo ano, eram de 47,9% e 52,1%, respectivamente. Para ver este outro estudo, clique aqui. Isso tudo para dizer que a relação público-privada no setor saúde é uma realidade nos países ao redor do mundo.
[2] O gasto do PIB em saúde (público e privado) nos países varia, em média, de 8 a 12%. O Brasil, apesar de ter constitucionalmente um sistema de saúde público e de acesso universal, apresenta como gasto do PIB 8,3%, sendo 4,5% gasto privado e 3,8% público (Figueiredo et al., 2018). O Estado brasileiro sustenta diretamente o setor privado e também induz o crescimento de seu mercado (Barros, Piola; 2016 – capítulo 3). O Brasil possui o segundo maior mercado de planos privados no mundo (Bahia, Scheffer; 2018), perdendo apenas para os EUA. A taxa de cobertura populacional por planos privados de saúde foi de 24,2% da população em junho de 2019 (ANS). Não entrarei na discussão sobre a dupla porta de entrada e da duplicada de serviços e cobertura, mas cabe mencionar que também são debates presentes na literatura há um tempo.
[3] No Brasil temos a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS –, autarquia do governo federal, como órgão regulador do setor privado. Apesar de dissensos sobre seu papel, a regulação do setor é imprescindível para a garantia social da política de saúde como direito do cidadão em sua coletividade.
[4] Essa é uma discussão bem atual. Apesar de desde 2005 já se ouvir falar em “Cobertura Universal de Saúde (CUS)”, o debate tem se intensificado cada vez mais e coloca em xeque o Sistema Universal de Saúde” (CUS X SUS). É importante destacar que não são conceitos/processos sinônimos e abordam o “universal” de maneiras distintas. Ver relatório da Organização Mundial da Saúde sobre o tema aqui.