O povo equatoriano deu a todo o continente, por meio de uma heróica e brava mobilização nos últimos onze dias, algumas importantes lições.
Primeiro, demonstrou inválido aquele pensamento que predica um “unilateralismo” da história, no qual a mão que açoita com a chibata nunca vê o chicote retornar contra si. Há na história, como sempre houve, espaço para o povo. As medidas anunciadas pelo presidente equatoriano Lenín Moreno, exigidas pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) em troca de um pacote de crédito de 4,2 bilhões de dólares, não ficaram sem respostas. Elas geraram, sim, uma insurreição no país, como há tempos não se via no continente.
Segundo, provou que esse espaço não está dado por natureza, nem é assegurado eternamente pela presença do adjetivo “democrático” em constituições – é pela firmeza e pela força que é conquistado.
Terceiro, demonstrou que, à medida que a força do povo se firma, a mão dos carrascos também endurece. Se não se pode ter ilusões quanto a espaços cedidos pelo acaso, também não se pode imaginar que teremos caminho fácil quando os buscando.
A despeito daqueles que tanto falam sobre o caráter democrático do tempo em que vivemos, o que vimos no Equador foi um povo que, apesar de desde o início ter deixado clara sua posição, foi respondido pela força das armas, por toques de recolher, por estados de exceção e pela militarização. Para que Lenín Moreno se dispusesse ao diálogo – há quem diga que é disso que se trata a democracia; o regime do diálogo – ao menos cinco equatorianos tiveram de dar suas vidas, mais de mil foram detidos, e um outro milhar ficou ferido. Na democracia, mortos não falam, feridas não gritam e masmorras há aos montes. A agência de notícias Telesur, por não aceitar formar o conluio da imprensa regional que optou por diminuir e ignorar a importância dos eventos no Equador, foi logo tirada do ar.
Anotadas as lições de uma dura jornada, chegamos ao domingo. O presidente Lenín Moreno, que há sete dias dizia que não recuaria de sua decisão de aplicar as medidas exigidas pelo FMI, teve de dar o braço a torcer. Convocou uma reunião com as lideranças dos movimentos que o puseram contra a parede, e anunciou a liquidação do decreto 883, responsável pelo fim dos subsídios na gasolina e no diesel, que significou um aumento de até 120% nos preços.
O governo se comprometeu a derrogar o decreto e a escrever um novo, por meio de uma comissão composta por ele e pelos representantes indígenas, e acompanhada pela Conferência Episcopal Equatoriana e pela representação da ONU no país. As lideranças, por sua vez, comprometeram-se a encerrar a jornada de mobilizações.
Ainda assim, o que se vê até o momento é uma vitória parcial e momentânea do povo equatoriano. Apesar da derrogação do decreto 833 ser a principal reivindicação dos movimentos para que se pusessem ao diálogo e deixassem as ruas, o fim dos subsídios para a gasolina e diesel era somente uma das medidas antipopulares de uma longa lista anunciada pelo presidente. Talvez a mais grave delas, a longo prazo, seja o fim de impostos para importação de tecnologia e carros e a redução de impostos para compra de máquinas – neste caso, estamos tratando de cerca de 32% das importações equatorianas. Além disso, prossegue sem previsão de discussão a situação dos manifestantes presos, o fim do estado de exceção e a situação dos ministros do Interior e Defesa, apontados como responsáveis diretos pela violência.
“Acordo público com o presidente Lenín foi a revogação do decreto 883. Neste momento, uma comissão está trabalhando na redação do decreto que o substitui. Celebramos a vitória, mas isso não termina até que o acordo seja totalmente concretizado”, publicou a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) no Twitter, em meio a rumores de que, na reunião a portas fechadas, o governo esteja tentando forçar um decreto substitutivo que já estava escrito.
De fato, a efetiva concretização de um acordo com um presidente que cinicamente se disse amante da paz depois de onze dias de repressão, que prossegue até agora com a narrativa fantasiosa sobre um “golpe de estado” movido pelo ex-presidente Rafael Correa, e que mentiu repetidamente durante a semana – anunciando inclusive diálogos inexistentes – é o mínimo que se deve esperar antes de comemorar vitórias.
É certo que, desfeita a mobilização em Quito, o governo pode, com um pouco de ousadia, retornar à sua sanha desleal, assassina e mentirosa, ainda que isso custe ainda mais popularidade frente à opinião pública. Mas não sabemos se, neste cenário, o povo que tanto nos ensinou nos últimos dias teria igual capacidade de se mobilizar mais uma vez. Apesar de uma vitória parcial, o saldo das mobilizações até o momento é de mais perdas ao povo do que ao governo. Oxalá que a lembrança de Quito rebelada seja suficiente para que, na mesa de negociações, Moreno recue mais. Até lá, lembremos nós das lições de Quito.
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