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O mundo dos sonhos e o sangue negro (ou uma carta aberta ao The Intercept)

Com debate rebaixado sobre “ditadura e democracia”, comunistas viram assassinos, enquanto o massacre democrático fica incólume.
por Jones Manoel
Operação na Rocinha. (Foto: Fernando Frasão/Agência Brasil)

Dois jornalistas, Tatiana Dias e Rafael Moro Martins, no The Intercept Brasil, me criticaram em um escrito chamado “Elogiar ditadores é a melhor maneira de a esquerda continuar perdendo”. No escrito, criticam, tomando como mote principal uma postagem da deputada do PSOL Talíria Petrone em homenagem a Lênin, a “esquerda que homenageia ditadores”.

Eu sou citado (com nome errado) nesse trecho: “O historiador e influenciador marxista Jones Manuel (sic) não corou em falar publicamente que matar pessoas em uma revolução ‘é uma contingência que acontece'”. Em seguida, os dois jornalistas, com uma típica ironia liberal, dizem: “Fuzilar uma família aqui, matar outros tantos milhões de fome ali, torturar e assassinar indiscriminadamente e promover o terror entre os dissidentes. Assim mesmo. É normal, efeito colateral.”

Muitas coisas podem ser comentadas a partir desse escrito. Vamos começar com o básico: em um escrito sobre não homenagear ditadores não existe, em nenhum momento, um debate ainda que mínimo sobre o conceito de ditadura e democracia. Bem ao gosto do jornalismo apressado, raso e superficial, no lugar do debate conceitual sobre o que se está chamando de democracia, temos um vazio. Porém, na política e no universo, não existe de verdade um espaço vazio. Esse espaço é preenchido pelo senso comum liberal que brota sobre todos os poros do artigo.

A prova disso é que, ao citar uma ditadura, o exemplo buscado é o da Venezuela. Pouco importa se a Colômbia, crivada de bases militares dos Estados Unidos, bate recordes seguidos no assassinato de jornalistas, defensores dos direitos humanos, sindicalistas, camponeses, militantes e comunistas. Os comunistas, inclusive, nunca podem ser vistos como vítimas. Apenas como vilões em potencial, sempre prontos a aplicar o totalitarismo e matar a democracia. Os dois jornalistas, com a profundidade de um pires quebrado, citam um referencial teórico: o livro “Como as Democracias Morrem”. Bem, esse panfleto divulgado no Brasil com o beneplácito de FHC afirma, dentre outros absurdos, que Hugo Chávez era um ditador, e chega a insinuar uma comparação do líder bolivariano com Hitler. No fantástico mundo do liberalismo, Hugo Chávez é um ditador do mal, mas um sujeito como Bush, responsável por declarar uma guerra ilegal contra o Iraque baseado em uma mentira (quem sabe as armas de destruição em massa não estão na casa de FHC) ou Obama, responsável pela destruição da Líbia, o país até então com maior IDH da África, não são ditadores; ao contrário: belos democratas que sabem que a democracia não se aplica aos bárbaros não-brancos da periferia do sistema.

Tatiana e Rafael devem ser dois pacifistas. Talvez descendentes diretos de Mahatma Gandhi. Eles se escandalizam porque eu afirmo que numa revolução pessoas morrem. Essas belas almas, consciências típicas da Esquerda Itaú no estilo Tabata Amaral, conseguem, porém, todo dia dormir tranquilos com mais de 60 mil assassinados todos os anos e o maior sistema carcerário do mundo em termos relativos. Todo santo dia, as forças do Estado estão matando, “atirando na cabecinha”, prendendo de forma ilegal. São mais de 260 mil presos sem ao menos passar por um julgamento no sistema carcerário brasileiro. Sem falar dos que morrem de fome ou nas filas dos hospitais, as que definham mais rápido por uma vida cheia de privações e trabalhos horríveis, os assassinados no campo. Todo ano, no Brasil, juntando todas as mazelas, quase 100 mil pessoas estão indo para a vala: quase todos pobres, quase todos negros, quase todos jovens, quase todos favelados.

A despeito desse morticínio, e alguns detalhes como, volta e meia, um grande monopólio tirar do mapa uma cidade (lembra de Brumadinho?), temos um belo Estado de Direito, democracia, Constituição, instituições. Eu, o stalinista do mal, quero, veja só, introduzir a violência na política. Eu quero negar o diálogo intersubjetivo constitutivo – e ontológico? – da bela política brasileira.

Tatiana e Rafael devem ser grandes admiradores de Hannah Arendt. A filósofa famosa pelo seu livro “As origens do totalitarismo”, ao celebrar a liberdade e a revolução americana, “esqueceu” um pequeno detalhe: a escravidão e o regime de segregação racial Jim Crow, nos Estados Unidos. Um belo dia, porém, os negros dos EUA decidiram lembrar que viviam na pátria da liberdade um “racismo totalitário” (conceito de Fanon, autor pouco lido no Instituto FHC!) e protestar. Alguns desses negros, esses malditos negros não liberais, decidiram usar a violência na sua luta. Hannah Arendt afirmava que a violência é a negação da política e criticou os “radicais” do movimento negro dos EUA. Mas, calma! Se a violência é a negação da política, isso significa que nos Estados Unidos da escravidão e do Jim Crow nunca existiu política, dado que esses regimes são baseados na violência? É claro que não! Para Hannah Arendt isso é apenas defeito pequeno, contingência, detalhe. A violência começa com Malcolm X – maldito radical!

No fantástico mundo de Tatiana e Rafael eu não posso falar que as pessoas morrem em uma revolução. Sou como um câncer em metástase na esquerda. Mas as pessoas, como a menina Ágatha Félix ou o menino Eduardo, podem morrer no hoje, no agora, que isso não macula em nada o caráter democrático de nossa democracia.

Casos como o do pedreiro Amarildo ou Carandiru? Simples falhas que um dia, com a graça de Deus, vão ser corrigidos. Não sabemos quando, talvez no dia que Bush descobrir as armas de destruição em massa no Iraque ou o continente africano for restituído por séculos de colonialismo. Enquanto isso o sangue derrama, derramará mais, e o “tiro na cabecinha” continua. E viva o liberalismo.

Nesse meio tempo, porém, é dever de todos os cidadãos de bem devotos de John Locke (pai do liberalismo político e defensor da escravidão) excomungar os stalinistas, os radicais, os violentos. E se um dia aparecer um Malcolm X em terras brasileiras, estaremos todos juntos, com Wilson Witzel, João Dória e o brasão da Polícia Militar, gritando viva a democracia e sem violência!

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