O Simpatia É Quase Amor, um dos blocos mais concorridos do Carnaval carioca, saiu às ruas pela primeira vez em 1985, em meio à campanha das Diretas Já. É conhecido por seus sambas politizados e carregados de bom humor, escolhidos a dedo em animadas disputas com direito à cobertura da imprensa e o escambau. Suas cores são o amarelo e o lilás, inspiradas na embalagem do Engov (antiácido que se toma para evitar a ressaca). Seu nome faz alusão a um personagem criado por Aldir Blanc no livro Rua dos Artistas e Arredores. E a senha para o início dos desfiles, antecedidos por uma queima de fogos, é um debochado grito de guerra: “Alô, burguesia de Ipanema!!!”.
Manuela Trindade Oiticica nasceu quase junto com o Simpatia, em 4 de maio de 1984, no bairro de Laranjeiras. Como toda garota da Zona Sul, cresceu ouvindo tocar os ritmistas do bloco e se esbaldando nele durante o reinado de Momo. Prestes a completar vinte e nove anos de idade, ela veria um samba de sua autoria cantado pela multidão que acompanha a bateria do Mestre Penha. Isso se deu em 2013, ano do centenário de Vinicius de Moraes. O enredo, intitulado Simpatia de Moraes, era justamente a efeméride do poeta. A primeira parte do samba (feito em parceria com Nina Rosa, Bil Rait Buchecha e Guilherme Vargues), dizia:
“Olha que coisa mais linda
Saindo da praça
É o Simpatia que vem e que passa
Doce balanço
A caminho de Iemanjá
A bateria sempre manda o seu recado
E o cachorro engarrafado
Hoje eu trouxe pra sambar”
O “cachorro engarrafado” na letra nada mais era do que a expressão carinhosa criada por Vinicius de Moraes para se referir ao uísque, sua bebida predileta. Por essas e outras sacadas, o samba de Manuela foi um sucesso. O desfile daquele ano significou um dos acontecimentos mais importantes da vida da moça que, em 2016, escreveria uma crônica para o livro Simpatia É Quase Amor: 30 Carnavais em Amarelo e Lilás, na qual descreve o processo de composição do samba entre amigos:
“Em 2013, quem fazia samba gostaria de ver um dos maiores blocos da cidade cantando um seu, no isquidum do Mestre Penha. Olhar pro lado e ver nas bocas o verso rabiscado com os amigos num guardanapo de salame – todo mundo ia achar gostoso. Lá pelas bandas da Gomes Freire, a gente se concentrando pra defender no ensaio de logo mais uma homenagem a Vinicius. Não havia alguma coisa ali que não fosse encontro.
Mas: e daí disputar um samba?
O moleque do cavaco não ganhava por isso e as madrugadas viradas cobravam a conta depois de quarta-feira. Era rima empurrando rima, enquanto alguém repetia: ‘Caí nos braços de Orfeu de amarelo e de lilás’. Que se largava o riso quando verso vinha certo. Que começavam a juntar letra e melodia, todo mundo na palma pra firmar. Quem beirava os trinta e tava no boteco se concentrando pra defender o samba no ensaio do Simpatia queria mesmo era farra. E eu com a minha avó enchendo o copo e ensinando o refrão que ela ia defender com a gente. Sentindo rima empurrando rima, com a cadeira quase no meio da rua – essa coisa imprescindível.”
Quatro anos mais tarde, na véspera da escolha do samba do bloco, Manuela descobriu que estava grávida do jornalista Luiz Carlos Máximo, renomado compositor de sambas-enredo e outras bossas. Namoravam há apenas três meses, embora fossem amigos há mais tempo. A notícia coincidiu com a vitória da dupla na disputa mais aguardada do Carnaval de rua do Rio. Juntos fizeram uma sátira, intitulada Samba da Adivinhação, que sacaneava o prefeito Marcelo Crivella. O nome do burgomestre não era citado diretamente, mas a letra não deixava dúvidas sobre a identidade do muso inspirador:
“Ensaio de escola? Ele mela;
Roda de samba? Atropela;
Macumba? Não tolera;
Só gosta de bloco Nutella;
Ele não cuida? Nem zela;
Casa de jongo? Cancela;
Em nome de Deus? Apela;
Qual o nome do hômi?”
Manuela já conhecia a sensação de colocar um samba na boca do povo, mas dessa vez a vitória à frente do bloco tinha um sabor diferente: era a primeira vez que ganhava uma disputa como Manu da Cuíca, apelido adquirido nas rodas de samba e choro do Bip Bip — lendário botequim que merecerá um capítulo à parte em sua trajetória. E era também a primeira que ganhava ao lado de Luiz Carlos Máximo, agora bem mais do que um simples parceiro.
Naquele Carnaval de 2018, como se fosse o prenúncio de um acontecimento ainda maior, mais de trezentas mil pessoas — um recorde! — acompanharam o carro de som do Simpatia. O fato de estar grávida era um detalhe que tornava a conquista bem mais especial: foi seu último desfile antes do parto e ela ainda não sabia que seria mãe de uma menina.
“Eu quero um país que não está no retrato”
Com sua gestação ligada à disputa de um samba de bloco, ninguém ficou muito surpreso quando Havana veio ao mundo faltando dois dias para a escolha do samba da Estação Primeira de Mangueira. Antes de ser uma homenagem à capital de Cuba, Havana foi uma homenagem à palavra: “O nome da minha filha é sonoramente muito bonito”, gaba-se Manu. Era uma quinta-feira, 11 de outubro de 2018, data do aniversário de Cartola, um dos fundadores da Verde e Rosa. A cidade já estava entregue ao clima do pré-Carnaval.
Das dezoito composições inscritas na disputa da Mangueira, apenas três chegaram à finalíssima. Uma delas era a do sexteto formado por Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Marcio Bola, Ronie Oliveira, Mama e Danilo Firmino. Alguns contribuíram com a composição. Outros com tarefas necessárias a uma disputa na quadra. Luiz Carlos Máximo e Manu da Cuíca eram os responsáveis pela obra, mas seus nomes tiveram de ser omitidos porque ambos concorriam, paralelamente, com outro samba em outra escola — o regulamento não permitia a “bigamia”, embora todos soubessem que era um procedimento comum entre compositores.
Disputar com um samba num bloco é uma coisa. A competição é acirrada, mas os participantes entram com as mesmas chances, em pé de igualdade. Disputar com um samba dentro de uma escola do Grupo Especial é outra bem diferente. Numa grande escola, status e dinheiro contam muito. Dificilmente alguém fora do meio, um “franco-atirador”, terá chances de ver um samba seu cantado na Marquês de Sapucaí. Se o compositor não tiver recursos financeiros próprios ou um grande investidor que cubra as despesas (gravação em estúdio, videoclipe, cachê dos músicos e do puxador, camisetas e ônibus para a torcida), sequer poderá sonhar com a disputa.
Luiz Carlos Máximo pertence ao seleto time de compositores que não têm grana, mas têm nome. Nome que virou sinônimo de qualidade e ganhou ainda mais peso após três vitórias consecutivas na Portela (2012, 2013 e 2014). Seus sambas, em parceria com Toninho Nascimento (autor de Conto de Areia, gravado por Clara Nunes), não chegaram a ser campeões do Carnaval, mas foram aclamados pelos portelenses na avenida — o que não é pouca coisa. Por isso, Manu afirma que quase caiu para trás quando Máximo a convidou, em 2017, para fazer a letra de um samba para a Portela, visando a disputa do Carnaval de 2018.
“Até então eu havia disputado apenas na Canários de Laranjeiras, uma escola pequena dos grupos de acesso. Nunca pensei que um cara tarimbado, autor de vários sambas emblemáticos, pudesse delegar a mim uma responsabilidade tão grande”, conta a letrista. Seu papel era estudar a sinopse da carnavalesca Rosa Magalhães e a partir dela escrever a letra do samba. O enredo era De Repente de Lá Pra Cá e Dirrepente de Cá Pra Lá…, baseado no livro Caminhos Cruzados: A Vitoriosa Saga dos Judeus do Recife — da Espanha à fundação de Nova York, do escritor pernambucano Paulo Carneiro, que narra a trajetória dos imigrantes judeus que passaram por Pernambuco e, após a expulsão holandesa, no século 17, foram parar nos Estados Unidos. Máximo entraria depois com a melodia, mas seu nome não poderia ser divulgado — pra variar estava concorrendo em outra escola, dessa vez na São Clemente.
Em sua primeira grande disputa, Manu da Cuíca acertou em cheio e levou o samba até a final. Não ganhou por pouco. Ela acredita que se Luiz Carlos Máximo tivesse assinado a composição, a história teria sido outra. “Sabemos que isso influencia os jurados. O samba, com o nome dele na parceria, teria outro peso”, avalia. A derrota, porém, não foi encarada como tal. Além de chamar a atenção da mídia para o fato de ser uma das poucas mulheres a disputar e chegar a uma final de samba-enredo, ter concorrido na quadra fez com que Manuela e Máximo ficassem mais próximos. “O dia a dia de uma disputa de samba é uma loucura, a gente passava quase que o tempo todo juntos. O resultado foi que começamos a namorar ali”, conta.
Em 2018, quando soube que estavam novamente numa final de samba-enredo — agora pela Mangueira —, Manu temeu pelo pior. Isso porque, dessa vez, nem ela e nem Luiz Carlos Máximo constavam como autores do samba (como já foi dito, estavam disputando em duas escolas ao mesmo tempo e não poderiam concorrer nominalmente na Mangueira). A esperança estava no fato de que a agremiação, de forma ousada e até mesmo revolucionária, havia instituído naquele ano mudanças nas regras da disputa do samba, visando democratizar a participação — o que proporcionou chances parelhas a todos os concorrentes, dos mais aos menos conhecidos.
Sob orientação do carnavalesco Leandro Vieira, a Estação Primeira resolveu enfrentar o poder econômico a partir de um modelo de disputa em que torcidas pagas e uniformizadas não foram permitidas. Num esquema autossustentável, a escola cobrou dos participantes um preço de inscrição e este valor foi usado para a gravação de todos os sambas concorrentes. As músicas foram gravadas no mesmo estúdio, pelos mesmos intérpretes. Na disputa, os puxadores de cada samba foram sorteados na hora, evitando favorecimentos. “Todo mundo teve igualdade de condições. A Mangueira criou um jeito que nenhuma escola havia tentado. É muito bom participar de uma disputa em que você não tem o poder financeiro interferindo nas suas chances de ganhar ou perder”, comenta Manu da Cuíca.
Por estar em recuperação do parto, acompanhou a decisão à distância, em sua casa no Leme, tentando controlar a ansiedade no silêncio do quarto escuro, enquanto amamentava a filha recém-nascida. Num dado momento da noite, Máximo, que acompanhava a escolha pelo rádio, entrou no recinto com uma expressão de incontida felicidade, deu-lhe um beijo e um abraço apertado, sem fazer alarde para não acordar o bebê. Naquele instante ela soube que haviam ganhado. “Foi uma emoção indescritível. Nem nos meus melhores sonhos pensei que um dia pudesse ter um samba meu cantado pela Mangueira”, diz.
Na véspera do desfile, pouco antes da noite de gala da Verde e Rosa, Manu da Cuíca resolveu assumir a autoria do samba e revelou à imprensa que seu nome também constava na parceria mais comentada dos últimos carnavais. “Decidi abrir o jogo justamente porque somos poucas (as mulheres no samba). Eu não tinha o direito de me esconder. Sei que é difícil as pessoas me entenderem como compositora, ainda mais de samba-enredo. Elas têm seus arquétipos e não vou preencher esses requisitos. Muitas vezes a figura do compositor é folclórica, não condiz com a realidade”, afirmou naquela ocasião.
O samba da dupla, História para Ninar Gente Grande — título do enredo de Leandro Vieira —, não apenas foi o vencedor na quadra da escola como provocou uma comoção geral na avenida e na arquibancada do Sambódromo, ajudou a Mangueira a conquistar seu vigésimo título de campeã, ganhou o Estandarte de Ouro de 2019 e realizou um feito que poucos sambas-enredo conseguiram até hoje: ser lembrado, cantado e regravado meses após os desfiles. É como se a composição extrapolasse os limites do Carnaval para se tornar um clássico instantâneo do nosso cancioneiro.
Corais de colégios passaram a cantar o samba campeão em festas de formatura. Ele foi ouvido também em manifestações políticas. Marina Iris cantou à capela na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), durante sessão solene que homenageou a vereadora Marielle Franco, assassinada um ano antes pela milícia, num crime cujo mandante até hoje não foi revelado. Depois gravou-o, ao lado de Leci Brandão, em seu disco Voz Bandeira. Também Maria Bethânia, em versão quase declamada, registrou a composição no álbum A Menina dos Meus Olhos, todo dedicado à Mangueira. O samba chegou até o Velho Continente: as cantoras francesas Aurélie Tyszblat e Verioca Lherm fizeram uma versão chamada de Berceuse pour Grands Enfants, que viralizou na internet. Por tudo o que significou antes, durante e depois do desfile, a letra de História para Ninar Gente Grande ganhou a eternidade.
“Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500 tem mais invasão do que Descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato
Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati
Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês“
Responsável pela maior parte da letra do samba, Manu afirma que o processo de criação foi diretamente influenciado pelo espírito da gravidez. “Muita gente diz que este samba tem uma forma acolhedora de falar com o Brasil, de falar com o país, e reconheço nessa forma de falar alguns sentimentos presentes na minha gestação. Máximo e eu fizemos o samba num ambiente de espera, de cuidado, de afeto e de aposta no futuro”, conta a compositora.
Na letra é possível perceber a mão de Manu na sutil referência a Marielle Franco, cujo nome é citado logo após o de Luísa Mahin, uma das cabeças da Revolta dos Malês e símbolo de resistência da população negra. “Ela não estava na sinopse, mas estava no enredo. A partir do momento em que você está contando a história dos nossos lutadores, Marielle — mulher negra, favelada, que dedicou sua vida a lutar por justiça social e foi assassinada por isso — tem todo o direito de se situar dessa forma no samba”, disse em entrevista à Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles.
Mas a simples menção do nome de Marielle, ativista de esquerda, foi suficiente para precipitar uma enxurrada de críticas e ofensas à escola. As mais amenas diziam que a Mangueira havia feito um desfile “contaminado pela ideologia marxista”. Para Manu, reflexo do obscurantismo que se apossou do país. “As pessoas se sentem muito desconfortáveis de falar sobre personagens recentes. É mais cômodo falar dos personagens do passado, como se o tempo esterelizasse as tensões. Quando você traz a discussão para o presente, você tem que se posicionar — e isso incomoda”, diz.
O que de fato fez a Mangueira, em seu enredo, foi propor uma releitura da História do Brasil a partir do ponto de vista dos “heróis esquecidos”, donos do “sangue retinto pisado”, oriundos das camadas populares. Personagens como Chico da Matilde (o “Dragão do Mar”, jangadeiro responsável por antecipar o fim da escravidão no Ceará) foram exaltados, enquanto bandeirantes, príncipes e generais foram ridicularizados pela escola.
Nas palavras da compositora, classificar a composição como o “samba da Marielle” é um equívoco cometido pelo senso comum. “É mero reducionismo. O enredo trouxe para a avenida a verdadeira história do povo brasileiro, ou parte da história que nos é negada pela narrativa conservadora da elite. A Mangueira mostrou uma história do Brasil feita muito mais por heróis de barracões do que por príncipes e princesas”.
“Se posicionar não é uma opção, é uma necessidade”
Não seria exagero dizer que 2019 foi o ano de Manu da Cuíca. Pelo menos no universo do samba, não houve nome mais comentado. Além de ajudar a escrever a história do Carnaval com um samba-enredo antológico, tornou-se recentemente uma das poucas mulheres a colocar duas vezes um samba na avenida. E novamente pela Mangueira.
Com este feito, Manu passou a integrar o exclusivo grupo de mulheres que se sobressaíram no ambiente da escola de samba, que sempre foi dominado por homens. Até onde se sabe, o pioneirismo coube a Carmelita Brasil, presidente e compositora da Unidos da Ponte — que desfilou com sambas feitos por ela entre 1959 e 1964. A compositora de samba-enredo mais lembrada é Dona Ivone Lara, primeira a vencer uma disputa numa grande escola. Em 1965, com Bacalhau e Silas de Oliveira, assinou o clássico Cinco Bailes da História do Rio, dando ao Império Serrano o vice-campeonato.
Se a Mangueira for campeã em 2020, Manu da Cuíca se tornará a primeira mulher a ganhar duas vezes seguidas o Carnaval carioca. Embora otimista — considera o samba deste ano “mais firme e contundente” —, revela que não teve o mesmo tempo de imersão no processo criativo desfrutado durante a gravidez. “Foi bem mais difícil fazer este samba”, conta. “Tive que encontrar tempo para escrever a letra em meio às tarefas de ordem prática. Foi preciso reinventar meu jeito de compor. Fiz como deu, entre uma troca de fralda e outra; e geralmente de madrugada, enquanto Havana dormia”.
Luiz Carlos Máximo, mais uma vez parceiro na composição, confirma que o casal enfrentou muitas dificuldades para compor. “Os poucos minutos no banho e no percurso para o trabalho foram preciosos para construirmos a música”, conta. Porém, o fato de estarem morando juntos amenizou o prejuízo causado pela falta de tempo. “A intimidade facilita a parceria. Podemos dizer um ao outro o que não gostamos, sem constrangimento. O conhecimento da sensibilidade e do gosto musical do parceiro ajuda também. Eu sei numa letra da Manu o que ela espera melodicamente. Somos como uma dupla de jogadores que sabe sempre onde o parceiro está posicionado e onde quer a bola”, define.
No enredo deste ano, A Verdade Vos Fará Livres, Leandro Vieira propõe à escola a releitura da vida de Cristo. No desfile, o carnavalesco promete humanizar a figura de Jesus, tratando-o por “Jesus da Gente”: negro, filho de pai desempregado e mãe humilde, que vai nascer e crescer no Morro da Mangueira. Pela ousadia, tal como ocorreu em 2019, a Estação Primeira tem sido alvo de críticas.
No dia 23 de janeiro, a Arquidiocese do Rio enviou uma carta ao presidente da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa), Jorge Castanheira, demonstrando a preocupação dos católicos com a maneira como questões religiosas serão abordadas na avenida. Na Internet, fundamentalistas ligados a igrejas evangélicas acusam a escola de promover “satanismo”, “homossexualismo”, “comunismo” e de “ofender a imagem de Cristo”.
Como contraponto, a atriz Fernanda Montenegro gravou um vídeo declamando a letra do samba, visivelmente emocionada. O teólogo Leonardo Boff manifestou solidariedade à Mangueira e declarou que cristãos e bispos tradicionalistas não aceitam o “Jesus pobre entre os pobres, que abraça as crianças e conversa com as prostitutas” porque teriam que mudar de vida: “Se aceitassem o Cristo dos evangelhos teriam que auxiliar os pobres, lutar pela fraternidade, por uma sociedade mais justa e menos desigual”, disse.
Em novembro passado, Manu da Cuíca deu importante entrevista ao jornal Brasil de Fato. Ela sabia que não seria nada fácil falar de uma personalidade da qual tanto se falou. “Não queríamos correr o risco de fazer um samba que soasse como música religiosa. Então reforçamos o que foi de fato a história de Cristo: nasceu pobre, lutou contra as injustiças, rebelou-se contra o Estado e foi torturado e morto por esse mesmo Estado. Ele atacou os profetas da fé, que no samba a gente chama de profetas da intolerância”, diz, sem medo de apontar o dedo para quem agora quer censurar a Mangueira.
“Falam tanto em Cristo, mas que papel ele ocuparia hoje na sociedade?”, pergunta a letrista. “No Rio vemos muitos terreiros de Candomblé e Umbanda sendo atacados, apedrejados, incendiados por grupos de poder religiosos. Se Cristo estivesse vivo hoje, certamente não estaria ao lado dos religiosos que incentivam, promovem ou fingem não ver esses ataques”, diz.
E finaliza ao expor a grande contradição nacional: “O Brasil é um país que se diz cristão, mas ao mesmo tempo é líder em desigualdade social, líder em assassinatos contra a população indígena, contra as mulheres, contra os homossexuais. Um país que legitima a barbárie e cada vez mais a oficializa. É o país cuja maioria da população se diz cristã. Tem muita coisa nesse país cristão que não bate com os ensinamentos de Cristo. Com A Verdade Vos Fará Livres a Mangueira propõe essa reflexão”, afirma.
“Eu sou da Estação Primeira de Nazaré
Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher
Moleque pelintra do Buraco Quente
Meu nome é Jesus da Gente
Nasci de peito aberto, de punho cerrado
Meu pai carpinteiro desempregado
Minha mãe é Maria das Dores Brasil
Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira
Me encontro no amor que não encontra fronteira
Procura por mim nas fileiras contra a opressão
E no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão”
Na opinião do historiador Luiz Antonio Simas, um dos maiores especialistas em samba-enredo no Brasil, o melhor verso está situado do meio para o fim da obra: “Do céu deu pra ouvir/ O desabafo sincopado da cidade“. Para ele, este já pode ser considerado o grande verso do Carnaval deste ano. “Insuperável em poder de síntese, beleza, sonoridade (o efeito bafo/pado é música pura). A sofisticação disso é impressionante”, anotou em seu perfil no Twitter.
Entre os “profetas da intolerância”, por sua vez, nenhum verso tem despertado tanta ira quanto “Favela, pega a visão/ Não tem futuro sem partilha/ Nem Messias de arma na mão“. Em clara referência ao presidente Jair Messias Bolsonaro, ferrenho defensor do armamento da população, este verso seria o real responsável pela campanha de ódio deflagrada contra a Mangueira na Internet. Desde que a escola anunciou seu enredo, militantes de extrema direita passaram a recorrer a todo tipo de ofensas, ameaças e mentiras. Para coroar o festival de besteiras, uma associação católica ultraconservadora, com sede em São Paulo, criou um abaixo-assinado virtual que, na primeira semana de fevereiro, já somava mais de 110 mil assinaturas pela proibição do samba-enredo, tratado como “blasfêmia”.
Na história do Carnaval houve muitos sambas que fizeram críticas sociais, mas nem sempre isso aconteceu. Para Manu, há momentos do país que exigem esse posicionamento. “Se posicionar não é uma opção, é uma necessidade”, diz. No próximo dia 23 de fevereiro, pouco antes da meia-noite e mantendo a postura combativa do ano passado, a Mangueira percorrerá a Marquês de Sapucaí para “desafinar o coro dos contentes”. Depois do desfile restará a História.
“Então era isso? Eu tinha feito uma música?”
Manuela Trindade Oiticica é carioca, trinta e cinco anos de praia, letrista, cuiqueira e Flamengo até morrer. Envolvida com o samba desde os quinze. É assim que ela se apresenta: “Toco em rodas há mais ou menos vinte anos. As primeiras composições nem tinham parceiros e não eram boas, porque não sei fazer melodia. Desde criança brinco o Carnaval de rua e acompanho os desfiles na Sapucaí. Quanto mais fui me embrenhando pelas ruas e esquinas da cidade, mais fui me entendendo dentro do Carnaval. O universo do samba e do Carnaval é o universo que me forma”.
O pai, Ricardo Oiticica, era professor de Literatura, ex-jogador de futebol e pandeirista amador. Foi o grande responsável por incentivar os filhos a “gostarem de farra, rua e família”. Morreu vítima de um enfarte fulminante na noite de 19 de outubro de 2013, enquanto jogava bola com os amigos. Tinha cinquenta e quatro anos. “Minha vida nunca mais foi a mesma. Era para ele que eu mostrava meus escritos. Mas gosto de pensar que ele se foi no dia em que Vinicius de Moraes completaria cem anos. Eles tinham almas parecidas e essa associação metafísica me ajuda a encontrar sentido na perda”, revela.
Sobre a dor desta ruptura ela dedicou uma crônica tempos depois:
“Por que não avisaram que ele ia aproveitar a deixa da homenagem a Vinicius e morrer no dia do centenário do poetinha? Que coisa é essa chamada Carnaval que inventa coincidências condecorando a dor? ‘Caí nos braços de Orfeu de amarelo e de lilás’ — meu pai cantava na avenida — ‘hoje sou eu e Vinicius de Moraes’. Alguma coisa que se chamava Carnaval, meses depois, passou a ser um consolo que eu nem chutava que existia. (…) Tá vendo aquilo ali tropeçando poesia? É o coração do seu pai te soprando a cidade”.
Após a morte do pai, talvez como forma inconsciente de homenagem, Manu voltaria a jogar bola. Uma paixão antiga que herdou do velho. Futevôlei e altinha passaram a fazer parte da sua rotina na praia. O joelho “meio bichado” já não permitia que voltasse aos campos profissionais, como quando suava a camisa tricolor no sub-17 do Fluminense.
Antes disso, bem antes, a menina corria atrás de bola com pés descalços ou chuteiras improvisadas. Em todos os lugares em que morou foi em busca de um beco, uma praça, uma terreno baldio onde pudesse jogar futebol. Lembra-se com carinho do tempo vivido em Laranjeiras, quando disputava peladas no Parque Guinle com os meninos da Rua Gago Coutinho e do Morro da Pereira. Só foi jogar com meninas depois dos treze anos, quando entrou para um time feminino de futebol de areia. Chegou a ser federada e eleita a melhor jogadora do Beach Soccer do Rio em 2004.
Sua mãe é Suzana Trindade, ex-bailarina que hoje é servidora pública. Separou-se do marido quando Manuela tinha quatro anos. Era ela quem lia para os filhos antes de dormir. Entre as lembranças mais nítidas da infância de Manu está a imagem da mãe, sentada na beira da cama, com um livro infantil nas mãos. A Bolsa Amarela, de Lygia Bojunga. Se as Coisas Fossem Mães, de Sylvia Orthof. Lili Inventa o Mundo, de Mario Quintana. Tudo entranhado na memória. Descobertas até hoje refletidas em seu desejo de ouvir e escrever histórias. “Então era possível inventar uma história que nunca existiu!”. Formou-se em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
As memórias musicais, por incrível que pareça, não são tão vivas. Em casa não se ouvia muita música, rádio era para o futebol. No entanto, Manu considera determinante em sua formação a convivência com uma avó que adorava cantar marchinhas de Carnaval. “Ela cantava até a gente aprender”, recorda. Com a mãe ia ao ensaios da Imperatriz Leopoldinense. Com o pai aos blocos de rua. “Minha história com o Carnaval vem de longe”, sublinha. Tão longe que chega até a um parentesco distante com o artista plástico Hélio Oiticica, que durante um período manteve estreita ligação com a Mangueira.
Seu despertar para a composição corresponde a um dos momentos mágicos da infância. No ano passado, em sua página no Facebook, relatou como se descobriu capaz de criar belezas inéditas:
“Eu tinha uns oito anos, estava em cima de uma árvore chupando carambola. Acho que tinha sido excluída de alguma brincadeira ou tomado bronca de adulto. Tava naquela de que nada fazia sentido, metade escondida, metade vigilante, como são os que estão nas árvores. Lembro de estar me sentindo bastante solitária. Inventei um verso. Depois outro. Mais dois, uma rima e completei o refrão. Cantei espantada de ter criado alguma coisa que minutos atrás não existia. Fui buscar uma referência musical pra confirmar ou não aquela criação: Xuxa, tinha todos os discos. Projetei ela cantando e deu certo. Então era isso? Eu tinha feito uma música? Cantei e recantei. Quando desci da árvore, mostrei pra alguém e não deram bola. Encolhi. Uma ideia em construção é papel vegetal de rasgar fácil, melhor mostrar quando ela tiver lá suas cascas de árvore. Até hoje. A ideia de fazer melodias abandonei rápido, porque a cabeça não aponta pra isso e a voz esgarça. Incrementei as referências musicais. Mas quando termino uma letra, ainda sinto aquele espanto doce de carambola”.
Apesar de ingênuos, os primeiros versinhos insinuavam caminhos promissores. Continham até uma singela preocupação filosófica, tão ao gosto das crianças:
“Uma estrela lá no céu
Um peixe lá no mar
Uma vida sem sentido
Que não dá nem pra sonhar”
A indiferença dos adultos pela canção que havia criado marcou Manuela profundamente. “Era uma coisa tão preciosa pra mim que eu não entendia o desprezo das pessoas. Até hoje tomo muito cuidado com as minhas criações na hora de apresentar aos outros. Quando estou em processo de criação — que é momento de fazer escolhas e apostas — tento me cercar de cuidados para o caso de as pessoas não darem muita importância ao que fiz. Por isso, quando a música ainda está sendo feita, prefiro não mostrar”, confessa.
Se dependesse da opinião de Luiz Carlos Máximo — compositor de belos sambas em parceria com Wanderley Monteiro, Luiz Carlos da Vila e Paulo César Pinheiro —, Manu da Cuíca não precisaria se preocupar. “Ela (Manu) chamou logo a minha atenção pela força de suas letras. As letras dela sempre saem do lugar comum, com imagens inusitadas e retratando o que se passa no cotidiano com uma linguagem original, sensível e poética. As letras da Manu têm a marca dela, como ocorre com os grandes letristas”, diz.
Fora do Carnaval, a letra de sua lavra que mais repercutiu até hoje é Pra Matar Preconceito (em parceria com Raul DiCaprio), que virou samba em 2015 e entrou no repertório do coletivo ÉPreta, formado pelas cantoras Marina Iris, Nina Rosa, Marcelle Motta, Maria Menezes e Simone Costa. A música é hit nas rodas de samba de mulheres no Rio de Janeiro.
“Na rua me chamam de gostosa
E um gringo acha que eu nasci pra dar
No postal mais vendido em qualquer loja
Tô lá eu de costas contra o mar”
Com Rodrigo Lessa (integrante do grupo Pagode Jazz Sardinha Club), seu parceiro mais constante, iniciou relação musical em 2008. “Ele já era músico consagrado e fui na cara de pau. Tomei coragem, escrevi pra ele e me apresentei: ‘Olha, você não me conhece, faço letras de música e quero que você dê uma olhada’. Ele foi de uma generosidade artística muito grande”, conta Manu. “Eu tinha pretensões rítmicas, melódicas, mas sabia que não conseguiria criar nada. Eu precisava de um parceiro fixo para musicar minhas letras e isso era angustiante”, diz.
Passados poucos dias, o violonista retornou o contato com uma “empolgação juvenil” para falar sobre a primeira parceria dos dois. “Ele comemorou a composição como se fosse um gol”, conta Manu. Dez anos depois a dobradinha rendeu seus melhores frutos: em 2018, Marina Iris gravou o álbum Rueira, cuja totalidade das canções é assinada por Rodrigo Lessa e Manu da Cuíca. A faixa-título do disco ganhou ares de manifesto. No Carnaval daquele ano um adesivo com a frase “Eu Sou Rueira” circulou em toda a capital carioca.
“Não vim de palácio
Não sou cinco estrelas
Eu falo o que acho
Levanto bandeiras
E corro pro abraço
E rasgo coleiras”
Aldir Blanc, um dos maiores letristas vivos da MPB, escreve no encarte do disco: “Este CD nos dá arte e alegria, graças aos deuses das encruzas, quintais e butecos (com u), onde o samba come e nos alimenta”. Se não bastasse, declarou ver em Manu da Cuíca “a melhor letrista de sua geração”. Ela retribui o elogio: “Aldir é minha maior referência. Como letrista, compositor, escritor. Me debruço nas letras dele para tentar entender como recebeu aquela melodia e que caminhos percorreu até descobrir aquela letra”.
Sem fazer sombra ao estilo próprio de Manu, a influência exercida por Aldir Blanc nas letras da compositora é notável. Nelas estão presentes a acidez do humor carioca; a alma suburbana; a ode aos desvalidos; a crítica social disfarçada de poesia; o linguajar da rua revestido de lirismo. Tudo isso acrescido do olhar feminino sobre a cidade e as relações.
Em De Branco, ela toca na ferida da intolerância religiosa, provavelmente inspirada pelo caso da menina Kailane Campos, agredida a pedradas por trajar roupas brancas e guias de santo no pescoço. Ela voltava pra casa após participar de um culto de Candomblé com a família, no Rio, em 14 de junho de 2015.
“Silêncio na calçada
O sangue devagar da yaô
Os gritos e a pedrada
Na pele temperada de tambor”
Com seu olhar de cronista, Manu da Cuíca descreve o céu do subúrbio, apinhado de pipas (“pingentes de Deus“), na delicada canção Pingente:
“Pipas são como notas
Da canção incompleta
Beleza sem meta
Solta por aí
Que só precisa
De vento pra existir”
No samba Cabeça de Porco, destaca-se uma frase lapidar que poderia muito bem ser aplicada ao modo como a letrista encara a importância da palavra e o valor que atribui a ela em sua obra:
“Tem que pesar cada palavra
Como ouro e prata
Já que falar muito é não dizer nada”
Por fim, a melhor letra de Manu da Cuíca é também a que mais se aproxima do universo blanquiano. Copacabana, a Valsa é um passeio pelas ruas do bairro mais famoso do Brasil, acompanhado de doses caprichadas de non sense.
“Entre a Galeria Alasca e o Beco das Garrafas
Passa o metrô
Que leva pro show na praia, a gente se esmigalha
Entre os camelôs
Do Chopin ao Pavão
Do Anísio ao Drummond
Só um Cervantes pra entender
Se é curva ou corpo de mulher
Essas pedras que caminham
Onde o mar faz seu desenho
No Beco da Fome
É samba, funk ou fox?
Água fluorescente
Em frente à Fosfobox
Banda Sá Ferreira
Ele vai de ela
O Posto 6 de mito da caverna
Ele que nunca teve que existir
Esse ar tumultuado é um pouco de mormaço
E de insensatez
Vai que o alfaiate mora defronte
Da Santa Clara, 33
Do prazer de aluguel
À turma lá da Miguel
São mil conjugados de babel
Ou 500 metros de sinteco
Quem que liga pra tamanho?
Basta um bar do Alfredinho
Somos filhos dos
Dezoito lá do Forte
Sangue de Colombo
Na sessão do Roxy
Se o tempo aprendeu
Com o time do Juventus
Firmou as veias com areia dentro
Copacabana sempre vai cantar”
“A luta continua, Alfredinho!”
Copacabana tem lugar de destaque na vida de Manuela Oiticica. Sua iniciação na boêmia passa pelo calçadão da praia e desemboca na Rua Almirante Gonçalves, nº 50, onde está localizado um minúsculo botequim chamado Bip Bip. Foi nele que ela aprendeu a tocar cuíca com Jovenito e Zé da Cuíca, figuraças que sempre apareciam para dar uma canja nos sambas acontecidos ali. “Eles me emprestavam a cuíca depois da roda e explicavam a anatomia do instrumento, os macetes todos. Arrebentei várias varetas, mas tiveram muita paciência comigo e consegui aprender”, conta.
O Bip Bip, nas palavras de Manu, foi o seu “maior lugar de formação como compositora, instrumentista e pessoa”. Ela não é a primeira a se referir ao bar como um centro de formação cultural e política da juventude carioca da Zona Sul. Se essa nunca foi a intenção de seu proprietário, o popular e sui generis Alfredinho, é assim que muita gente passou a enxergar o diminuto e democrático espaço.
Inaugurado em 13 de agosto de 1968, exatamente no dia em que a Ditadura Militar decretou o AI-5, o botequim se tornou reduto da “esquerda festiva” de Copa, mas só começou a se consolidar como tal em 1984, ano em que nasceu Manu da Cuíca e que Alfredinho comprou o ponto, dando ao lugar personalidade própria.
Comunista de carteirinha e amante da música brasileira, Alfredo Jacinto Melo (conforme o RG), abriu as portas para que os músicos pudessem tocar à vontade, sem correr o risco de serem expulsos. Passou a receber a visita de sambistas ilustres como Cristina Buarque, Beth Carvalho, Nelson Sargento, Zé Keti e Elton Medeiros, que se tornaram clientes e amigos. Além deles, várias gerações de instrumentistas também passaram pelas mesas do Bip.
Em texto publicado no livro Bip Bip 40 anos — Histórias de um Bar, lançado em 2008 como parte das comemorações pelo quadragésimo aniversário do botequim e que contou com a participação de vários autores, Manu deitou suas impressões sobre o ambiente:
“Não dá pra fazer das palavras os dezoito metros quadrados de um fim de semana qualquer. Pequeno assim para caber no abraço, aí entra o cara de patins em pleno Nelson Cavaquinho e pergunta se tem Gatorade. (…) Vista de cima, Copacabana é uma curva só. Por dentro, ela é a única explicação para todos nós existirmos juntos – a cem metros de onde o ônibus rasgou o asfalto, tem alguém lembrando uma valsa. (…) Lugar de papo despretensioso, porque só assim é papo, porque é como nascem idéias: política, música, literatura. Uma boa escola para se aprender a colocar apelido. Quem não entender isso, na hora da bronca do Alfredo, vai ficar invocado e já na segunda faz planos: beber sangue, doar água e economizar cerveja”.
Na definição de Aldir Blanc, Alfredinho alcançou um milagre tipicamente carioca: “Ser o mais simpático e o mais irascível dono de bar da cidade”. Ao mesmo tempo em que dava esporros homéricos em conhecidos e desconhecidos (detestava que conversassem durante a música ou que pegassem instrumentos sem permissão), era um velho socialista desapegado de bens materiais e um católico praticante capaz de grandes gestos de generosidade.
Segundo Chiquinho Genu, um dos frequentadores assíduos do bar, metade (ou mais) do que Alfredo ganhava no Bip Bip era doada aos pobres em cestas básicas. A ceia de Natal, que oferecia todo ano aos moradores de rua, era a sua maneira de dizer que alguém tinha de fazer alguma coisa para combater a desigualdade social que tanto o afligia, ainda que por meio da caridade. Morria de medo de ficar rico vendendo cerveja. Dizia ter comprado o botequim para “beber de graça” e “ajudar o próximo”.
Solteiro e sem filhos, Alfredinho morreu dormindo, aos 75 anos. Os amigos o encontraram sozinho em seu apartamento, num sábado de Carnaval, no dia do desfile da Mangueira, a escola do seu coração. Seu corpo foi velado dentro do próprio Bip Bip e depois seguiu em cortejo até o cemitério São João Batista, em Botafogo. Os músicos e clientes do bar acompanharam o caixão cantando o samba-enredo de Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo. “Saímos do enterro para o desfile”, recorda a letrista. Naquela mesma noite ela seria vista no Sambódromo segurando um cartaz de papelão onde se lia a seguinte frase: “A luta continua, Alfredinho!”.
“Se esse bar nunca tivesse existido, talvez eu não fosse a Manu da Cuíca”, pondera. “Comecei a tocar cuíca lá, porque queria continuar indo aos blocos de Carnaval, que sempre frequentei como foliã, mas que de repente começaram a ficar muito cheios. Eu precisava de um lugar onde não tivesse tanto empurra-empurra — e esse lugar era a bateria”, explica Manu.
Ninguém sabe dizer ao certo por que há poucas mulheres tocando este instrumento, mas é possível deduzir. “Como vários outros gêneros, o samba reproduz as restrições da sociedade. Historicamente, ele delimitou algumas funções para as mulheres: cantoras, flautistas, musas e pastoras. Nunca cuiqueira”, diz ela.
Nas palavras de Manuela, o samba é uma das “trincheiras do feminismo”. Ela vê com bons olhos o movimento feminista que tem se articulado a partir de grupos de samba formados só por mulheres. “Que ninguém ache estranho ter uma roda só de mulheres, porque ninguém acha estranho uma roda só de homens. O melhor dos mundos é termos uma roda misturada. Mas isso só vai acontecer quando a sociedade permitir que mulheres se sintam encorajadas a assumir instrumentos que em geral são vistos como masculinos”, afirma.
Apesar de ser a compositora do momento no Rio de Janeiro, Manu revela que a música sempre foi e continua sendo uma “atividade paralela” em sua vida. “É muito difícil ganhar dinheiro como compositora ou instrumentista no Brasil”, diz. Mantém as mesmas atividades de quando começou a trabalhar, no tempo de estudante: como professora de redação e de português, de pandeiro e de cuíca. E agora também tem exercido, sem remuneração, o ofício de mãe. “O melhor e mais importante de todos”.
Procurando em seu blog um texto, uma frase, um instantâneo pessoal que pudesse resumir a nossa conversa, deparei-me com este poema sem data. Não sei se foi feito antes ou depois do nascimento de sua filha, mas acho que não poderia haver outro que definisse tão bem a letrista Manu da Cuíca — a de ontem, espantada com a descoberta da poesia nos galhos de um pé de carambola; e a de hoje, pavimentando com arte e com luta o caminho por onde passarão Havana e as futuras meninas do Brasil.
“Você é uma menina.
Aproveita a chance e corre, menina. Mas corre abrindo bem as pernas.
Até rasgar a saia.
Até tropeçar, quebrar um dente, abrir o dedão, ficar de canela roxa, queixo aberto, cabelo embaraçado, pele grudenta de suor.
Corre da mãe.
Corre do machismo. O mesmo que não deve deixar seu irmão chorar.
Corre da beleza, dos bons modos, das unhas pintadas. Seu compromisso é com a infância.
Corre. Você é uma menina.
Vão querer fazer disso um cárcere.”
Texto atualizado às 12h05 (16.02) para correções.