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A greve invisível: Poder e estratégia na greve dos petroleiros

Enquanto se cobra algo novo e se decretam mortes, a realidade oferece algo criador e vivo na forma da ação de enfrentamento: a greve dos petroleiros.
por André Ortega | Revista Opera
(Foto: Sindipetro-NF)

O Brasil vive uma grande greve: a greve dos petroleiros. Já são 17 dias de um movimento que mobiliza cada vez mais trabalhadores – já são mais de 20 mil – com adesão de 121 unidades, em um movimento que se estende por 13 estados brasileiros. As reivindicações imediatas da greve dizem respeito ao cumprimento do Acordo Coletivo de Trabalho e à suspensão de mil trabalhadores da Fábrica de Fertilizantes Nitrogenados do Paraná; a greve também pauta o combate à atual política do governo perante a Petrobras e a gestão atual da empresa.

Quando olhamos para a televisão e a obra do seu glorioso jornalismo profissional, no entanto, a greve dos petroleiros parece não existir. Greve nenhuma na tela, greve de grande impacto na rua: silêncio na mídia corporativa. Silêncio da Rede Globo, que até chegou a ser tratada por alguns como uma aliada na luta contra Jair Bolsonaro.

O silêncio da grande televisão de concessão pública é de fato grave. Essa mídia corporativa sabe que pautar a greve dos petroleiros agora é contra seu programa político, e portanto não quer oferecer esses acontecimentos ao conhecimento e o imaginário da grande massa de brasileiros que se informa pela televisão.

No entanto, a greve acontece e segue firme no enfrentamento com o governo. Conforme a situação avança, o bloqueio midiático tende a sofrer mais pressão.

Para compreendermos a importância deste movimento, é importante colocarmos ele em um quadro estratégico:

1) A ofensiva do capital estrangeiro no Brasil tem a Petrobras como objetivo primário, desde antes do governo Bolsonaro.

2) Existe um projeto de desmonte e privatização gradual da Petrobras (vide o plano de desinvestimentos), como realização da ofensiva citada acima. O processo incluí uma gestão que é mais voltada para o que chamam de “exigências do mercado” e a remuneração de investidores.

3) A aplicação política desse projeto no governo incorpora um tipo de política neoliberal.

4) Existe um interesse especial do imperialismo em promover esse tipo de status no nosso setor petrolífero, como parte de uma concepção geo-estratégica voltada para o controle de recursos energéticos no Globo.

5) A greve, portanto, bate de frente com os interesses do capital internacional e a política neoliberal que os representa.

6) A greve é fundamental para a afirmação do controle nacional do petróleo, para a afirmação da ideia de que os rendimentos do petróleo devem servir prioritariamente ao povo brasileiro, não a especuladores.

7) No contexto de um governo altamente militarizado, com uma camarilha militar fiadora do poder, essa greve se relaciona com as pretensões de poder e capacidade de gestão de crises dessa camarilha.

É esse posicionamento estratégico que nos permite entender a greve como algo para além dos trabalhadores petroleiros e de primeiro interesse nacional: como parte de uma totalidade em formação.

Se nós nos recusamos a ver a greve dos petroleiros como parte de um movimento de totalização de um conflito social que diz respeito ao Brasil, quem vai ter esse entendimento e decidir a partir dele será a camarilha militar por trás do testa-de-ferro Jair Bolsonaro. Eles ficam com algo maior do que a iniciativa narrativa: ficam com a iniciativa política.

A dimensão histórica desse conflito não é uma questão de narrativa, por mais que os reducionistas “pragmáticos” e liberais tentem resumir o movimento a um conflito setorial, ele possui um devir histórico que se impõe igualmente aos asseclas do imperialismo e às direções do estado.

Em setembro de 2019, o Gabinete de Segurança Institucional já estava “acompanhando de perto” a possibilidade de um movimento grevista.

Ainda no governo Temer, em maio de 2018, o chefe do GSI naquele momento, Sérgio Etchegoyen, falou de como o movimento grevista foi debelado graças ao decreto de ilegalidade e à ameaça de pesadas multas, fatores importantes para “dissuadir o movimento”.

No movimento de agora, o almirante de esquadra e Ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, declarou em Brasília no dia 10 de fevereiro que o GSI está acompanhando a situação.

A camarilha militar sabe que um movimento como este pode sair do controle e até causar um debacle do governo.  Quando o almirante de esquadra denuncia o movimento como político, não devemos só descartar a postura dele como demagogia – “afinal tudo é política” -, mas entender que ele dá voz a uma preocupação real que eles possuem, com um movimento situado num setor chave colocando demandas políticas que contradizem a direção da Petrobras, o governo, os planos de desnacionalização e a ofensiva neoliberal como um todo.

Assim, a resposta a esse potencial político pode ser uma escalada repressiva. Toda atuação da direção da Petrobras – do sr. Roberto Castello Branco, presidente da empresa – vem seguindo uma lógica de contribuir para a criminalização dos grevistas. É claro que a camarilha militar não quer saltar para a briga se expondo, tampouco quis Bolsonaro, jogando os holofotes para o movimento ao polarizar com ele. O que pretendem fazer é esgotar as opções de menor força para tentar derrotar o movimento, que vem seguindo apesar de descontos e da pressão judicial.

Em 1995, Fernando Henrique Cardoso mandou ocupar as refinarias. Hoje, a carta no coturno é mais do que uma alternativa de repressão (e existe ainda a Força Nacional), mas uma alternativa política. No mínimo, a camarilha militar quer fortalecer sua posição de administradora de crises, a grande mediadora. Entretanto, também poderíamos ver uma escalada repressiva.

O sr. General Heleno, atual chefe do Gabinete de Segurança Institucional, vê as reformas neoliberais como indispensáveis e enxerga esse tipo de situação como uma guerra, uma “guerra híbrida”. Em um governo em que a camarilha militar consolidou mais ainda o seu poder e no qual o “caos chileno” já foi usado como referência para uma possível situação de emergência, este movimento pode ser uma oportunidade para um novo salto dos que fazem “aproximações sucessivas” ao poder.

Alguns já enxergavam como uma oportunidade o caos proveniente do movimento dos caminhoneiros, a propósito.

Não adianta ser otimista por conta das boas notícias e depois, quando o teto cair sobre as nossas cabeças, se perguntar o que foi feito de errado.

Quando a camarilha militar especula com essas possibilidades, está delineando estratégia. Desenha os possíveis agregados de condições e interações, pensando em vencer, o que significa que existem derrotados. Esse tipo de olhar e obriga a cogitar meios para realizar esses objetivos e lidar com os agregados, que se sobrepõem uns aos outros e formam vórtices um tanto caóticos. 

Foi por isso que, na entrevista que Pedro Marin e eu realizamos com Guilherme Boulos antes das eleições de 2018 para o livro Golpe é Guerra, insistimos em questionamentos sobre militarismo e especialmente a respeito da oposição de uma camarilha militar, no limite golpismo, em um eventual governo de esquerda. Muitos mantinham e mantêm a atitude de “se os militares são contra, é impossível”, o que é uma forma estranha ao pensamento estratégico, uma forma de pensar baseada na ideia de política como administração cotidiana dos interesses de uns sob a hegemonia decisiva de outros. Alguns chamam isso de “disputar o sistema”.

Podemos rememorar como exemplo ilustrativo (ainda que polêmico e específico) o Podemos espanhol e a posição de seu líder Pablo Iglesias em 2016 (no programa Fort Apache de 8 de outubro), defendendo a implementação do pacote de austeridade da Troika pelo governo da esquerda grega apesar do povo ter se manifestado contrariamente em plebiscito, comparando o Syriza grego com seu próprio partido: segundo ele, se o Podemos chegasse ao governo e tivesse uma postura muito dura, teria “tudo” contra eles, incluindo o Exército e polícia. A lógica de Iglesias é de se adaptar a isso ou morrer, sem vislumbrar outra alternativa de como enfrentar esses problemas para garantir a realização de certos objetivos – trata-se de, como ele intitulou um de seus panfletos, “Disputar la Democracia“.

O pensamento estratégico é olhar para isso e pensar em formas de responder, neutralizar ou contornar o problema. Quando escrevemos o livro Carta no Coturno, o fizemos para mostrar como uma visão de tabuleiro estratégico mostrava um avanço dos militares ao poder, mas também com o objetivo de estimular o estudo e o debate estratégico, mesmo que num livro curto e polêmico (por isso escrevi um capítulo especial para Clausewitz para mostrar nossa forma de pensar). Nos preocupamos que em situações como a de agora apareçam com a jogada do militarismo, da carta no coturno, e por isso publicamos o livro – onde exponho também a nova doutrina de segurança nacional que informa a inimizade do General Heleno contra os grevistas e proponho que as interações estratégicas podem gerar situações inesperadas.

Ofensiva judicial

A ofensiva judicial coloca a situação estratégica em um novo patamar, com o ministro Ives Gandra Martins Filho, na segunda feira (17) declarando a ilegalidade da greve nacional dos petroleiros.

Para Gandra Martins, ministro cético em relação à justiça do trabalho e ultra-conservador da Opus Dei, a greve tem “motivação política, e desrespeita ostensivamente a lei de greve e as ordens judiciais de atendimento às necessidades inadiáveis da população em seus percentuais mínimos de manutenção de trabalhadores em atividade”.  O juiz fixou uma multa diária que varia de 250 a 500 mil reais, além de ter dado permissão para a empresa demitir grevistas.

Decisão monocrática anterior, também de Gandra Martins,  exigia que as “ao menos 90% dos funcionários da Petrobras deverão manter as atividades”. A decisão havia sido reforçada pelo ministro do STF Dias Toffolli (o juiz assessorado por general).

Curiosa a preocupação dos juízes com abastecimento e o funcionamento da empresa, quando a própria política atual da Petrobras – além de cobrar preços altos nos combustíveis – implica em redução da produção: em maio de 2018, refinarias da Petrobras funcionavam com 68% da capacidade; em julho de 2019, as refinarias operavam por volta de 70%.

O oportunismo liberal

A greve lida com questões importantes: soberania nacional e a organização da nossa economia. Além disso, ela se enfrenta com uma camarilha militar – essa greve coloca os militares no meio do jogo e o fortalecimento do seu poder na ordem de dia. Nada trivial: temos aqui uma situação grave e um momento político que deve estar entre nossas prioridades.

Em um acontecimento dessa dimensão, é inevitável que surjam narrativas liberais – especialmente da esquerda liberal – que induzem à confusão e reduzem a importância do que está em jogo.

O oportunismo liberal tenta fragmentar a realidade e chamar isso de pragmatismo, pois tem medo de expor o confronto político no centro da greve petroleira, já que isso implicaria que eles mesmos ficariam expostos no mapa do conflito como associados políticos do projeto de dilapidação da Petrobras e desnacionalização da economia brasileira. É inconveniente para eles reconhecer isso e comprometer sua própria atuação política, geralmente voltada para a formação de associados da capa tecnocrática que impõem os ditames do grande capital internacional.

Essa resposta também serve para as manifestações do oportunismo liberal como exemplificadas no artigo  “Elogiar ditadores é a melhor forma de a esquerda continuar perdendo”, publicado no The Intercept. O texto assume a conhecida faceta do pseudo-realismo ao colocar o governo Bolsonaro como a preocupação mais urgente e que não será resolvida por uma “revolução proletária” (alusão que, como sabemos, geralmente é feita como deboche), defendendo uma aliança com a “direita moderada”, especificamente o PSDB – como expressou Pedro Marin, “defendem que a partir de uma coalizão negociada com este partido, nasça o punhal que derrotará o inimigo”.

Daí está o momento que discrimina a verdade das quimeras liberais e suas pregações de frentes com a “direita moderada” para derrotar Bolsonaro – a greve dos petroleiros coloca a questão do poder na ordem do dia e pode deixar esse governo por um fio.

A insuficiência de um discurso que enfatiza o “Estado democrático de direito” e o domínio dos procedimentos também está condenado por sua insuficiência política, quando até a justiça do trabalho se converte em trono de conservador ultra-montano da Opus Dei e instrumento de perseguição contra os trabalhadores. A justiça diz ao povo brasileiro que ele deve aceitar o entreguismo e os ditames do capital internacional.

Mas de onde sai a justiça, de onde sai o direito, senão do poder? Se o direito pode se elevar aos pináculos da moral e da consciência humana, ele antes passa pelo chão das relações de poder.

A injustiça adora difamar a força que ela mesma emprega como se fosse justiça pura, limpa e imparcial. 

O direito precisa ser conquistado e defendido – no movimento atual não estamos falando de direitos garantidos por uma entidade neutra representada pela racionalidade e a técnica jurídica, mas de um combate pelo poder. A chave da compreensão está nesse combate, não nos binômios normativo-excepcional, legal-ilegal. Se queremos defender a liberdade, a verdadeira liberdade, esta liberdade não pode ser outra que não a liberdade criadora do sujeito contra as imposições do capital e seus mensageiros da toga e do coturno.

A excepcionalidade está na natureza do político e esse é um daqueles momentos decisivos que podem reorientar a constituição dos poderes estabelecidos.

Os oportunistas liberais gritam que querem, a todo custo, derrubar Bolsonaro, mas temem as implicações de um movimento político grevista.

Eles querem Bolsonaro fora, mas pelas vias parlamentares que garantam estabilidade, e não pelo caos nascido de um movimento de greve que “fuja ao controle” por perder de vista “o espaço que lhe cabe” (da reivindicação setorial dos petroleiros num “jogo democrático e plural de interesses e identidades”).

O confronto histórico implica em contradições entre o capital e o trabalho, entre o povo brasileiro e o imperialismo, entre a organização social e lógica do capital. Mesmo o sindicalista mais pelego e oportunista, ou mais economicista, não pode evitar que o seu confronto tenha no seu próprio devir a bandeira do “O Petróleo é Nosso” e uma disputa da soberania nacional contra uma ofensiva do capital estrangeiro – a realidade se impõe a ele assim como se impõe a todos, inclusive aos liberais.

O confronto se desenvolve de uma maneira em que a posição real destes liberais fica reduzida a torcer por uma reformulação do governo brasileiro que seja promovida pelo imperialismo e até mesmo operada pelos militares para retirar a mácula do bolsonarismo, colocando no lugar um governo mais “esclarecido”, no qual eles possam ser sócios em nome de um “governo da técnica” (o mesmo tecno-cientificismo que guia a política econômica de expropriação intensificada pelo neoliberalismo que hoje predomina na gestão do sr. Roberto Castello Branco na Petrobras). Promovem e aspiram a administração cotidiana dos interesses de outros sob a hegemonia decisiva de outros, mas com “benevolência”.

Esses liberais estão em uma miríade de pretensos reformistas pseudo-realistas, têm como grande ideal ser implementadores dos interesses do capitalismo, mas com um sorriso no rosto, um coração benevolente e uma consciência progressista. 

Uma greve como esta pode servir para manter uma unidade sufocante com estes liberais enquanto eles jogam seus confetes, ou pode ser uma grande oportunidade para passar por cima de suas posições inconsequentes.

Esquerda morta, esquerda ausente?

Num combate tão imperioso, qual é o papel que vem sendo cumprido por ex-candidatos e as lideranças de esquerda?

Não basta proclamar o apoio e a solidariedade. A própria greve já estabeleceu alguns parâmetros de atuação ao dirigir manifestações contra o escritório da Rede Globo e distribuir gás de cozinha por um preço mais acessível, em contato direto com a população.

Esses não são atos somente de agitação e divulgação. A função deles não é primariamente comunicativa, “furar o bloqueio midiático”, mas impor a presença da greve. A distribuição de gás é um grande exemplo, pois é uma ação de poder, de presença física.

Quem mais possui recursos e alguma logística para fortalecer o movimento de greve?

Já não perderam outras oportunidades? O ENEM escandaloso, as filas de desempregados, as filas criminosas do INSS, a própria reforma da previdência? É compreensível que falte força, mesmo para partidos grandes, para organizar mobilizações – mas já existe uma mobilização e é inaceitável não apostar nela aquilo que pode.

Quando uma vanguarda avança rápido demais e se descola do apoio, dos flancos e da retaguarda, temos um problema. Não temos esse problema aqui. Problema maior é quando uma vanguarda é abandonada por aqueles que devem apoiá-la. Temos esse problema? Torceremos para que os grevistas corram sozinhos até a posição inimiga para fincar a bandeira, sem oferecer sequer fogo de cobertura?

Parece que quando contemplamos um avanço acabamos por vislumbrar vários recuos. Veremos ainda se, nessas condições, chegará a vez deles de recuar, talvez a partir de uma decisão de ilegalidade a partir das instâncias judiciárias superiores, sufocados pelos limites da legalidade. Apesar de eu ter me dirigido à chamada esquerda organizada nesse texto, caso isso ocorra deveríamos nos perguntar a respeito da própria greve: até que ponto evitar “ações ilegais”, como piquetes e bloqueios, é positivo se a justiça cairá em cima do mesmo jeito? Pergunta genuína e por isso enfatizo “até que ponto”, já que há a resposta plausível de que até agora o movimento pode se manter de pé e crescer gradualmente, ao invés de queimar a largada com ações radicais que atrapalhem a organização e tornem a greve inviável.

Essas considerações valem para o movimento dos caminhoneiros, que se divide entre posições efetivamente anárquicas, reformistas e algumas sujeitas à cooptação policial. Apesar da força logística de seu movimento, se enfrentaram com a realidade de não ir na raiz de seus problemas, que se encontra na política de preços da Petrobras, no sr. Roberto Castello Branco e na ideologia que ele aplica na direção da empresa. A adesão de caminhoneiros ao movimento petroleiro pode ser uma grande escalada (isso vai depender da extensão), obrigando a redoma verde (militar) a se comprometer mais, mas o ideal em termos de guiar a reação dos inimigos agora é realmente quebrar a perspectiva de “normalidade e tranquilidade”, de crise administrada que os militares querem manter, de preferência provocando uma reação que jogue a extrema-direita folclórica e histérica a se posicionar, acima de tudo que Bolsonaro dê um posicionamento, mesmo que mínimo, sobre o assunto. 

Envolver o histrionismo de Bolsonaro e a politização-patifaria do bolsonarismo, incluindo a indústria de fake news, é ótimo para o movimento, e quebraria a dinâmica de responsabilidade e administração de crises da camarilha militar.

Esquerda, ideologia e comunicação

É de se recear uma tendência que reduz o problema da comunicação e o cerco midiático como as questões mais relevantes dessa greve, em detrimento das considerações estratégicas. Há uma preocupação excessiva ou até exclusiva com o problema da comunicação.

Nós precisamos discutir poder concreto. Mesmo um general sem tropas precisa de uma estratégia. Serve como exemplo anedótico o jovem Napoleão Bonaparte, empobrecido e sem comando, arrastando seu sabre por Paris em busca de uma oportunidade estratégica, tendo recusado um comando real com tropas e salários na Vendeia pacificada, ao mesmo tempo que em evitava se meter na pequena política. A oportunidade estratégica apareceu em um momento decisivo quando ele aceitou o comando das tropas que reprimiram a insurreição monarquista do Vendemiário – notem que o general não confundiu realismo com aceitar a proposta mais imediata de posição e nem com a politicagem.

Não é de se impressionar se pensarmos que existe um substrato ideológico que representa a política nos termos de normalidade democrática estranha à lógica da guerra, em que existem no máximo adversários disputando narrativas e interesses setoriais buscando representação. Vemos a greve dos petroleiros enquadrada como parte de um “jogo democrático”, uma disputa judicial-pública; palavra atrás de palavra tentando diluir os conflitos profundos que existem no Brasil. 

A greve diz respeito a somente uma coisa: poder. O olhar estratégico é adequado para esses conflitos por poder. A estratégia lida com um agregado de interações e condições diversas. Falar de conflito é falar de posições e manobras, o que é distinto de falar de solidariedade a um setor que “merece justamente receber esses direitos”. Ainda assim, no discurso típico do reformismo liberal, a greve dos petroleiros é representada como um acontecimento econômico e setorial. 

“Eles querem promover de forma premeditada o desabastecimento nacional para culpar os petroleiros”, disseram os petroleiros sobre a intenção da patronal – isso não é só sobre desmoralizar os petroleiros, porque desmoralizar o movimento não é um fim em si mesmo: isso é sobre poder. Não “poder simbólico” ou “poder narrativo”.

Avisem a todos que não estamos em uma “grande conversa social”. Não são “ações comunicativas” e nem “performances” ditadas pela gramática.

Não “Somos Todos Petroleiros”, essa palavra de ordem parte de uma avaliação errada, centrada na concepção de solidariedade e disputa narrativa com o bloqueio midiático, quando antes do bloqueio midiático é importante impor a presença física (já que a greve já parte de uma exposição – não são guerrilheiros se escondendo, oferecendo um vazio ou uma “ausência”, nem a sabotagem da assim chamada “guerra híbrida” de forças imperialistas).

Existe uma ofensiva de desmonte da Petrobras que vem se aprofundando na última década. Os petroleiros se colocam na vanguarda de um movimento político em defesa da nossa soberania. A integridade da Petrobras ou sua tomada pelos grandes financistas é um problema mais amplo dos que os cortes que são feitos contra os trabalhadores da empresa, portanto não podemos reforçar discursos e concepções da greve petroleira como uma luta setorial, um problema dos petroleiros.

Temos semanas de greve em que declarações se resumem a relatar o aumento de adesões, alguns dados econômicos e se felicitar pelos petroleiros como uma gota de notícia boa em um mar de iniquidades. Isto parece mais um sintoma de uma cultura estratégica subdesenvolvida. 

Atentem para as locuções de solidariedade, que tendem a isolar o movimento como um “movimento justo dos trabalhadores em defesa de seus direitos econômicos” e que é digno da “solidariedade” de militantes políticos por este ou aquele motivo (vide locuções de notas partidárias que dizem que se “solidarizam pois nós sempre defendemos a Petrobras estatal”). Os trabalhadores são retratados como uma parte da sociedade se defrontando com uma questão setorial e imediata, não como um destacamento avançado do povo em uma luta mais ampla contra a ofensiva do imperialismo no país.

Nos perdemos dizendo o que nós ou os petroleiros merecem, nos esquecendo que somos aquilo que tomamos e podemos tomar. Debater a greve dos petroleiros para além da solidariedade parece uma zona proibida. É permitido arrancar os cabelos para discutir candidatos no Brasil ou mesmo nos Estados Unidos – enfrentamentos e elucubrações criativas pululam para discutir apropriações e expectativas a respeito de Bernie Sanders. É a isso que estamos reduzidos? Reciclar esperanças, nos felicitar por uma nova greve e esperar a salvação das eleições no coração do imperialismo?

O debate fica reduzido a uma perplexidade permanente e decretos ideais: “a esquerda precisa de uma renovação total”, “uma nova concepção de partido”, “uma reforma política para além da esquerda”, “uma união nacional para viabilizar o país antes de tudo”, “a prioridade é defender a democracia e derrubar Bolsonaro”.

O que existe não é um ente abstrato, coerente e permanente chamado “esquerda” que precisa de uma renovação total, de “novas ideias” (discurso que é dogma corrente nas organizações políticas de esquerda não desde 2013, mas desde 1979). O que existe é a luta de classes, que está se desenrolando na nossa frente.

Isto não é uma afirmação principista ou um moralismo disfarçado de “materialismo duro” que decreta a “primazia da luta de classes”, “porque o Marxismo diz”, “porque a base econômica determina tudo”, mas porque a própria realidade do conflito histórico se apresenta assim nesse momento – na verdade, esse é um dos momentos em que a importância da base econômica é explicada, exposta, pelo arranjo estratégico de um conflito, não devido uma centralidade inerente e ontológica no processo produtivo.

A greve expõe um elo fraco da corrente de poder e concentra as demandas democráticas.

Em abstrato, existem outras duas posições que tentam se afirmar no plano ideológico nesse tipo de momento:

a) Uma se pretende realista e dura, pragmática, com traços economicistas;
b) A que se pretende crítica, reformadora, a partir de perspectivas às vezes chamadas de “pós-modernas”, voltada para ideia de identidades constituídas por narrativas. 

As duas posições vão contra a concepção da realidade política como uma totalidade.

Os pretensos realistas confundem seu economicismo com realismo no momento em que reduzem o movimento de greve dos petroleiros às pautas econômicas dos trabalhadores do setor, como um fenômeno parcial, uma “parte da sociedade postulando demandas”, sendo que a posição realista é enxergar esse movimento como parte de um mais amplo, que articula várias posições do jogo de poder. É característico dos pragmáticos fatiarem a realidade e característico dos liberais reformistas pensar de acordo com uma lógica reduzida a grupos de interesse.

Do outro lado, dentre os inovadores “críticos”, o balbucio intelectual que diz que não “existe totalidade” e que essa é só uma luta parcial, que no máximo pode ser “enquadrada por um discurso” que reúna as parcialidades em uma grande coalizão opositora. No máximo uma expressão de “mais uma luta dos oprimidos” a ser enquadrada em um “significante” povo, num grande jogo de palavras.

Geralmente essa posição é acompanhada por uma concepção abstrata de poder desligada de suas formas políticas, do seu conteúdo histórico e da questão de onde reside a violência organizada do estado, desligada da questão do poder como força concreta para mover meios para realizar algum objetivo ou impedir outros, mas que afirma um poder difuso, de dimensão psicológica, que se espalha por todo o tecido social em formas de “opressão”.

O jogo político que descrevemos como combate inclui ofensivas e defesas dos dois lados, e é diluído na mitologia da resistência, em que não há conflito propriamente mas uma relação unilateral, uma defesa absoluta, onde tudo é poder e resistência, onde a greve é só mais uma expressão de “subversão do poder”, como “liberação da repressão” através do ato dos “corpos em greve”, uma liberação permanente. Não existe possibilidade de desenhar vitória para esse tipo de concepção, é impossível delinear estratégia, pois tudo é afogado na resistência permanente.

O niilista usando a capa do intelectual de esquerda pode dizer que é impossível dizer que qualquer coisa tem um sentido em relação ao todo fora de uma infinita fragmentação de narrativas que devem ser compiladas e indiciadas. Ele segue o mesmo caminho do pragmatismo burguês que usa o discurso do caos irredutível da realidade para dizer que só existem respostas nas estatísticas que exponham a diversidade do todo em números. As duas posições são hostis ao pensamento estratégico e frequentemente se fundem nos “inovadores da esquerda” – o mesmo radical pós-moderno preocupado com política identitária vai reproduzir discursos tecnicistas sobre a economia e a necessidade de “realismo parlamentar”.

Os que falam de “superação do trabalho”, “fim do trabalho produtivo”, “superação de confrontos econômicos” como referências centrais para organização política devem reconsiderar as posições perante acontecimentos como este. 

É do interesse primário dos grandes capitalistas e do imperialismo o desmonte da Petrobrás na forma de sua privatização. O “capital fictício” e especulativo opera em cima dos programas de dilapidação da Petrobras e um projeto que significa a desnacionalização do nosso setor petroleiro como um todo, o que por sua vez fecha com as prioridades geoestratégicas dos Estados Unidos de controlar o setor mineral-energético mundial.

Também devemos rechaçar protestos “pragmáticos” sobre a representação numérica desses trabalhadores da Petrobras frente à massa de brasileiros precarizados, mas o problema do poder e da hegemonia não se codifica através de números. A posição de vanguarda dos petroleiros não vem do seu número, mas do seu posicionamento central na luta de classes como é colocada agora. 

Se de fatos não podemos apreender a totalidade no imediato, podemos apreender o movimento que a conforma, ou seja, o movimento de totalização. As mediações não estão antes de tudo na produção de uma nova gramática da esquerda ou no processo pedagógico de longo prazo que eduque novos sujeitos para a ação comunicativa democrática, mas são oferecidas pela própria prática concreta agora mesmo na greve.

Não é uma luta que merece vencer, mas o ponto central de um grande enfrentamento. Não ganhamos nada com uma análise que diz que é uma relação entre muitas outras, sem reconhecer esta como uma relação central por dois aspectos: sua posição perante o capital internacional e sua posição perante o Estado como aparato armado especial, garantidor dos interesses desse capital.

Vladimir Safatle foi ao El País decretar que a esquerda morreu, descrevendo a “inoperância completa do que um dia foi chamado de ‘a esquerda brasileira’ enquanto força opositora”, como produto de uma incapacidade de “impor outro horizonte econômico-político”. 

O professor Safatle, quando proclama a morte da esquerda, provavelmente é confiante, como um bom terapeuta, de que o reconhecimento dessa morte vai trazer um renascimento e que a mudança permanente é libertação.

Enquanto se cobra algo novo e se decretam mortes, a realidade oferece algo criador e vivo na forma da ação de enfrentamento. A resposta está dada.

Não podemos nos assustar com o silêncio da mídia corporativa, só precisamos entender que existe uma guerra lá fora. Se existe uma lacuna entre o discurso dominante e a realidade, é precisamente nessa lacuna que o revolucionário atua. No vão entre o poder repressivo-controlador da camarilha militar e a totalidade social, é onde o revolucionário pode se movimentar. O movimento cria uma série de oportunidades e amplia o vão, mesmo para quem não participa diretamente dele – a distância entre núcleos distantes que são solidários e o movimento grevista em si deve ser encarada como uma abertura fértil. Aí reside um tipo autêntico de liberdade – aqui está a criação, a inovação real.

No limite, é impossível controlar vários focos ao mesmo tempo e a oligarquia é um inimigo fixo.

Não desprezo o trabalho intelectual, mas a ação política aqui não deve ser conceitualizada como um modelo e sim a partir da situação estratégica, as exigências que estão em jogo. Essa primazia da estratégia, do confronto entre amigo e inimigo, deve ser afirmada mesmo contra certas posições aparentemente mais radicais, que vão apresentar esse movimento como um processo de “auto-emancipação” de trabalhadores que estão em um processo pedagógico e de experiência de democracia direta, entendendo isso como um aprimoramento daquele coletivo de indivíduos que gera um “modelo”, ao invés de entender aquilo como produto histórico de um conflito, um momento de uma luta geral ditado por exigências estratégicas e políticas mais amplas (do Brasil todo), produto dessas exigências e da relação que elas mantém com a atual ofensiva capitalista e a futura violência reacionária.

Precisamos de algo maior do que mais uma narrativa ou uma pequena utopia: precisamos de um mito. Não precisamos de uma utopia – “um outro horizonte econômico-político” – tanto quanto precisamos de um mito, e mitos implicam em ação. O mito de que a greve pode destituir governos e virar o mundo de cabeça para baixo – e se a greve for derrotada, mais fortes outros se levantarão. Precisamos quebrar o mito-prisão da normalidade, da administração cotidiana da pequena política, da ideia-prisão de que somos dependentes de um lento ritmo de atualização intelectual. Se não acharmos um caminho por aqui, vamos criar um novo.

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