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Bolívia: Liberalização de exportações e retorno ao neoliberalismo

A liberalização de exportações decretada pelo atual Governo da Bolívia, a pedido do agronegócio crucenho (Santa Cruz), gerará inflação e desabastecimento.
Celag – Tradução de Leonardo Igor para a Revista Opera
(Foto: rodoluca)

No dia 28 de janeiro de 2020, foi assinado o decreto supremo para a liberalização de exportações por parte do atual Governo na Bolívia. Essa é uma das primeiras medidas da nova direção econômica que o neoliberalismo boliviano quer implantar. Isso deixa em evidência quais foram os grandes interesses que estiveram por trás do golpe institucional, no quanto essa medida parece uma devolução de favores pelo apoio que o setor agroindustrial no leste do país forneceu ao golpe. O atual Governo deve pagar a conta desse suposto apoio econômico e político liberando as exportações das commodities produzidas pelo agronegócio cruceño (região de Santa Cruz).

Em mais de 60 dias, o Governo já fez quatro anúncios sucessivos com a decisão de implantar a liberalização de exportações, mas a medida não havia sido executada; após três adiamentos, o ministro da área acabou decretando em 28 de janeiro de 2020. Vamos rever o que está em jogo e por que a desregulamentação das exportações é o primeiro grande objetivo para restabelecer os velhos poderes econômicos.

Alimentos: centralidade da política econômica de Evo Morales

Um dos eixos centrais da política econômica do Governo de Evo Morales foi o controle da inflação, em particular a inflação de alimentos. A baixa inflação cumpriu dois grandes objetivos: (i) garantir a estabilidade macroeconômica e (ii) garantir a redistribuição da renda nacional por meio de aumentos na renda real da população mais pobre que, historicamente, foi excluída de qualquer benefício estatal.

Por sua vez, a estabilidade do preço nos alimentos esteve ligada a um objetivo central na política econômica de Morales, que foi proteger a “segurança alimentar com soberania”, cumprindo assim com a Constituição Política do Estado promulgada em 2009 e que consagra em seu artigo 16 [1] que o Estado garanta o direito à alimentação de toda a população boliviana. Entende-se, assim, que não se trata apenas de que a população tenha acesso aos alimentos [2], mas que esse acesso não se converta em um mecanismo de dependência que se submeta a desígnios de economias externas; pretende-se que o povo possa ver garantido seu direito alimentar sem depender diretamente, na medida do possível, das decisões de outros governos do mundo.

A conquista da soberania como componente central da segurança alimentar se tornou a centralidade da política econômica, dada a história de submissão que o país andino havia vivido graças a destruição de sua capacidade produtiva, produto das “ajudas” de desenvolvimento dos Estados Unidos através da doação de trigo desde os anos ’50. Essas doações criaram uma grande dependência alimentar ao chamado “pan de batalla”, elaborado em sua maior parte com farinha de trigo norte-americana. Analistas bolivianos se referiram a esta questão afirmando que a “Bolívia se tornou então um país viciado em trigo” [3]. Quando a Unión Democrática y Popular (UDP) começou a governar a Bolívia em Outubro de 1982, formada por partidos de esquerda que instauraram um Governo progressista, Ronald Reagan suspendeu a doação de farinha de trigo e, como resultado da escassez quase absoluta do “pan de batalla”, a economia popular colapsou e foi difícil para a UDP – por essas e outras razões – continuar governando.

Isso explica por que o impacto da inflação de preço dos alimentos na economia popular foi, para o Governo de Evo Morales, tão importante quanto seu impacto econômico na estabilidade. Um dos mecanismos implementados para se obter o controle da inflação de preços de alimentos foi a regulamentação de exportações. Esse esforço para garantir a soberania alimentar foi reconhecido mundialmente na premiação que a FAO concedeu à Bolívia em 2015 pela redução da fome [4].

Regulamentação de exportações

A implantação do mecanismo de regulamentação de exportações não foi parte do plano de Governo que se iniciou em 2006. Surgiu inicialmente como uma medida de emergência no ano de 2008 devido à ameaça de elevação de preços dos alimentos. Até então, o setor agroindustrial boliviano, localizado sobretudo em Santa Cruz, vendia cerca de 70% da produção no mercado interno. Não obstante, naquele momento se decidiu exportar a maior parte dos produtos alimentícios do agronegócio, e rapidamente o mercado interno se desabasteceu a ponto de levar a economia popular à beira do colapso. A Bolívia revivia assim a crise de 1982, quando Reagan suspendeu as doações de trigo. Produtos como óleo comestível, açúcar, arroz, milho (principal alimento da avicultura) e outros, como carne vermelha e frango, começaram a desaparecer dos mercados, principalmente no oeste do país, enquanto o agronegócio exportava a maior parte deles.

Assim, as ações dos empresários agroindustriais de Santa Cruz, com acentuadas intenções políticas, serviram de base para a reação do Governo na regulamentação de exportações, precedida por uma etapa muito curta de proibição de exportações alimentícias, uma medida política que buscou pressionar a economia das empresas e romper com o oligopólio das alianças internas. Na prática, a Bolívia era um país escravo da classe empresarial, pois a maximização dos ganhos privados na exportação afetava diretamente a capacidade do mercado interno em prover bens e serviços. A população era vítima da pura racionalidade capitalista, na qual o lucro era obtido a qualquer custo, incluindo o desabastecimento do mercado interno. [5]

Dessa forma, o Governo de Morales decidiu permitir a exportação parcial dos produtos agroindustriais a fim de atender o suprimento adequado do mercado interno, sempre que o preço de exportação dos produtos alimentícios fosse maior que o preço no mercado interno. Nos últimos 10 anos, o mecanismo foi se aperfeiçoando até garantir o abastecimento no mercado interno e, ao mesmo tempo, permitir a rápida exportação de excedentes. Criou-se o “certificado de abastecimento interno a preço justo” que as indústrias recebiam para serem habilitadas a exportarem, desde que o Estado constatasse que cumpriam com o abastecimento ao mercado interno de uma parte da produção a um preço previamente acordado entre o Governo e o agronegócio, denominado “preço justo”. Além disso, o Governo monitorava o número de hectares plantados no país em cada ciclo de produção agrícola para calcular o rendimento por hectare ponderado por cada tipo de produção ou rendimento animal, segundo a tecnologia empregada. Com base nos custos de produção, se discutia o chamado “preço justo” que, no geral, adicionava aos custos de produção cerca de 15% para os lucros empresariais da agroindústria. O impasse entre o Governo e os produtores estava na definição de um ganho que se afastasse de uma estrutura oligopolista e, ao mesmo tempo, garantisse o bom funcionamento da iniciativa privada.

O processo de cálculo do preço justo de cada alimento indicava que o Estado deveria verificar e ajustar os preços de todos os insumos necessários à produção, desde sementes para agricultura, ração animal, combustível etc., passando pelos demais custos de produção. Com isso, o Governo adquiria conhecimento sobre como se formavam os preços na economia para um número significativo na produção boliviana. Dessa maneira, a regulamentação das exportações se tornou um espaço de coordenação de preços da maior parte dos insumos ao longo da cadeia produtiva dos alimentos agroindustriais. Por exemplo, para ajustar o preço final do quilo de frango, o preço do quintal de milho deveria ser acordado considerando o lucro razoável dos produtores de milho e isto, por sua vez, supunha que o preço das sementes era definido através do operador de mercado de alimentos do Governo, a empresa EMAPA.

Esse procedimento garantia que o preço justo no mercado interno desses alimentos não fosse estabelecido unilateralmente pelo Governo – o que geraria o surgimento de mercados negros dos produtos, algo que nunca ocorreu nos 14 anos – e que se levasse em conta os custos de produção do agronegócio e pequenos produtores.

A construção de consensos em torno dos parâmetros técnicos foi tão difícil de se obter que, uma vez acordados – e para não retroceder nos avanços e consolidar os acordos – foram eles incorporados em leis aprovadas pela Assembleia Legislativa Plurinacional. Exemplos disso são a Lei do Complexo Produtivo de Açúcar e a Lei do Complexo Produtivo de Leite.

Resultados da regulamentação de exportações

As críticas a regulamentação de exportações pelo agronegócio de Santa Cruz não demoraram a surgir e, desde o primeiro momento, se procurou assinalar que seria a “tumba” do agronegócio exportador boliviano, devido a venda de produtos no mercado interno a preço regulado, pois ainda que baseado em um acordo, não era um “incentivo” para a produção agroindustrial e que levava a uma grande diminuição da produção de óleo de soja, açúcar, arroz, milho etc.

Ao contrário do que foi previsto pelos exportadores agroindustriais de Santa Cruz, a produção desses alimentos foi bastante ampliada, além da sua exportação.

Esse gráfico, cuja fonte é um instituto privado financiado pelo empresariado agroindustrial, reconhece, em suas próprias palavras, que nos dez anos indicados (em que a regulamentação estava vigente) as exportações de soja aumentaram.

No entanto, apesar dos resultados conseguidos durante 10 anos de regulamentação de exportações, o agronegócio de Santa Cruz exigiu do atual Governo a sua total liberalização, a fim de aproveitar os bons preços que possuem as commodities no mercado internacional.

Com a liberalização das exportações desses alimentos, a primeira reação dos empresários será aproveitar qualquer preço bom externo para exportar toda sua produção e isso desabastecerá o mercado interno, fazendo a alimentação dos bolivianos depender da capacidade de importação que se dará a preços do mercado internacional. Mas, por outro lado, com o fim do mecanismo de ajuste de preços, que era usado para fixar conjuntamente preços justos no mercado interno, os preços de todos os insumos se desregularão, ao que – somado a escassez – trará um descontrole total de preços de alguns alimentos básicos, com o respectivo descontrole da inflação.

O anúncio da decisão governamental de suspender o controle de exportações e implantar a liberalização plena das exportações de produtos agroindustriais teve reações adversas nos mais variados setores da sociedade, porque se considera que o controle de exportações nestes 12 anos impediu o desabastecimento e a subida de preços dos alimentos. O controle de exportações funcionou como um mecanismo efetivo de distribuição de riqueza das elites exportadoras para a população, que consome alimentos no mercado doméstico.

O possível impacto será o desabastecimento no mercado interno e a seguinte elevação de preços, que constituirão um atentado contra a economia popular e contra a segurança e soberania alimentar que se estava construindo desde 2006.

Por outro lado, fica claro que, para a liberalização de exportações ser adequadamente utilizada pelo agronegócio de Santa Cruz, deverá ser acompanhada por medidas de ajuste da taxa de câmbio, que resultará em impactos negativos adicionais no funcionamento do modelo econômico que se havia instaurado no país.

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Notas:

[1] Constituição Política do Estado, Título II Direitos fundamentais e garantias Capítulo Segundo, Direitos Fundamentais. Artigo 16. I. Toda pessoa tem direito à água e a alimentação, II. O Estado tem a obrigação de garantir a segurança alimentar, através de uma alimentação saudável, adequada e suficiente para toda a população.

[2] Segundo a FAO, os componentes do conceito de Segurança Alimentar são: 1) a disponibilidade física de alimentos; A segurança alimentar trata da parte correspondente ao “suprimento” dentro do tema de segurança alimentar e é uma função do nível de produção de alimentos, níveis de estoque e comércio líquido. 2) o acesso econômico e físico aos alimentos. Uma oferta adequada de alimentos a nível nacional ou internacional, não garante em si a segurança alimentar a nível doméstico. 3) O uso de alimentos é a maneira pela qual o corpo tira proveito dos vários nutrientes presentes nos alimentos e 4) A estabilidade ao longo do tempo das três dimensões anteriores.

[3] A especialista em comércio exterior María Luisa Ramos diz: “Desde o início, 90% da ajuda alimentar total que chega à Bolívia vem do programa PL-480 e é composto de trigo e farinha de trigo. A ajuda alimentar dos EUA diminui em governos que não favorecem os interesses políticos e econômicos dos Estados Unidos. Isso diminuiu durante o governo do general Juan José Tórrez (1970-1971), que era de tendência esquerdista. Por outro lado, os governos que possuíam uma orientação favorável aos Estados Unidos, tiveram grande apoio, como é o caso do governo ditatorial do general Hugo Banzer (1971-1978) e do Dr. Víctor Paz Estenssoro (1985-1987), que iniciou a entrega do país através da privatização de grandes empresas”. María Luisa Ramos Urzagaste: La ayuda alimentaria y la política estadounidense en Bolivia. ECOACCION – FOBOMADE.

[4] Por Roma/EFE, “A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), com sede em Roma, premiou hoje a Bolívia, Costa Rica e República Dominicana por redução da fome nos últimos 25 anos, em acordo aos compromissos internacionais” 7 de Junho de 2015. “O relatório, publicado em 27 de maio, mostrou que a Bolívia reduziu a porcentagem de fome de 38% entre 1990-1992 para 15.9% na projeção para 2014-2016, e as pessoas com desnutrição reduziram de 2.6 milhões a 1.8 milhões nos últimos 25 anos.”

[5] A regulamentação de exportações foi implantada considerando também que o agronegócio recebe um subsídio público através do preço do Diesel que usa como combustível. O subsídio de diesel custava ao estado 490,0 milhões de dólares em 2011, e 12,6% de diesel subsidiado era entregue ao agronegócio.

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