O (neo)pentecostalismo, entorpecente de longa data do impiedoso porrete ianque, agora usa boné e toca bateria. Brasília e São Paulo no começo de fevereiro viram explodir mais um movimento que, prometendo o Espírito dos céus, sopra a águia americana nos corações de cada um – o fruto de uma teologia enlatada sabor êxtase que fornece catarses coletivas enquanto coloniza fiéis no cada vez mais estéril modo de vida norte-americano.
O The Send é um movimento fundado em Los Angeles em 2016, a partir de uma aliança entre dois movimentos evangelísticos: The Call e YWAM. Este último é conhecido no Brasil como Jovens com uma Missão (Jocum), entidade norte-americana parceira da ministra Damares Alves que esteve envolvida no polêmico filme Hakani – documentário que encena supostos infanticídios indígenas e que teve sua divulgação suspensa pelo Ministério Público Federal de Roraima por danos morais e coletivos aos indígenas da etnia karitiana. Este movimento, ao qual logo afluíram outros ministérios de evangelismo jovem dos Estados Unidos, declarou ter como objetivo “re-evangelizar a América” e “declarar guerra à inação”. Em sua edição brasileira, que durante doze horas ocupou com shows um estádio em Brasília e outro em São Paulo, houve bênçãos a Bolsonaro no palco e sermões contra as faculdades “humanistas” em meio a clamores por uma “reforma da nação”, tendo como foco as universidades.
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O evento ocorre menos de um ano após a chegada do Capitol Ministries em terras tupiniquins. Esta organização evangélica de extrema-direita, abertamente financiada pelo vice-presidente norte-americano Mike Pence e pelo secretário de Estado Mike Pompeo, já se estabeleceu em pelo menos seis países latino-americanos além do Brasil, e visa exportar sua teologia e influência para arrendatários de terras no quintal do império – entre eles Jair Bolsonaro, um dos alvos prioritários dos estudos bíblicos personalizados para políticos. “Primeiro os primeiros” é palavra de ordem na organização, que busca fazer nações à sua imagem e semelhança a partir da conversão de seus líderes ao evangelho do centro do mundo.
O Batismo Monroe
Este movimento é só a última leva de arautos do império, enviados em massa para cá desde o auge da Guerra Fria. Enquanto nascia em Medellín a primeira teologia autenticamente latino-americana, conhecida entre os católicos como Teologia da Libertação, centuriões do norte olhavam com preocupação para a hegemonia católica sobre a América Latina e seu potencial subversivo, já inclinando-se cada vez mais à esquerda. Conforme alertados pelos Relatórios Rockfeller e da Santa Fé, a Igreja Católica, devido à sua preocupação com a pobreza e desigualdade extremas que caracterizam a América Latina, era por demais permeável aos ideais comunistas, e deveria ter sua influência substituída pela de vertentes cristãs mais palatáveis à ordem capitalista ocidental.
Os alertas não foram ignorados, e a América Latina da segunda metade do século XX foi invadida por inúmeras denominações do movimento pentecostal, que surgira há algumas décadas nos Estados Unidos e pregava conversão total e absoluta aos ensinos bíblicos, promovendo adesão social através de ritos extáticos e experiências místicas. No Terceiro Mundo o movimento, representado por igrejas como a Assembleia de Deus e a Igreja Quadrangular, disputou o serviço aos pobres com as comunidades eclesiais de base católicas. Provendo assistência social, financiada pelo Norte, a populações carentes por todo o Brasil, tais igrejas cresceram exponencialmente, imiscuindo em suas doutrinas despolitização, o modo de vida americano e um visceral sentimento anticomunista. Renascidos das águas da Doutrina Monroe, seus missionários lutaram bravamente a Cruzada contra o inimigo vermelho – ateísta por não crer na águia, satanista por querer o carcará – e restauraram a paz ao cosmos, do qual somos transcendentalmente quintais a servir de cemitérios para corpos ressequidos.
A farsa do novo
Mas a história se repete; primeiro a tragédia, depois a farsa. Num cenário de crescente radicalização política, e frente à ameaça da presença chinesa, Monroe empunha novamente seu porrete – que estava apenas escondido atrás das costas – e o brande à América Latina enquanto oferece-lhe a pílula da salvação. A salvação, no entanto, é farsa estética do pior gosto: de aspecto modernoso e urbanóide, oferecendo momentos de emoção mística a quem busca sentido na dor permanente, a onda neopentecostal, encarnada em The Send e seus pares, vende o assalto que faz ao fiel e compra dele a alma a troco de bala. Tira do pobre e dá ao rico, no mais puro credo neoliberal, e substitui a assistência social de seus predecessores pelo consumo desenfreado e a promessa de sucessos futuros – se não aqui, no Céu, já que os pobres lá chegam primeiro, cedo como morrem, e por isso saem na vantagem.
Num eterno declive de moral ao qual só sobrevivem agarrando-se aos outros, as águias do Norte enviam outra vez suas serpentes para envenenar escravos com a Palavra de Mamon. As línguas do Espírito não são mais de fogo, mas pura carniça, transformando a religião comunitária na mística de condomínio, a solidariedade em competição e as relações com o próximo em autoajuda solitária. É a uberização da religião, onde só vale o espetáculo e o consumo do divino. Contudo, quer saibam ou não, carcará come cobra.
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