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O coronavírus desencadeará uma nova Grande Depressão?

Com a dívida total da economia mundial e dos EUA em níveis recordes, o inesperado surto de coronavírus na China pode ter um impacto econômico imprevisível.
por Frederick William Engdahl* | Global Research – Tradução de Gabriel Deslandes
(Foto: Studio Incendo)

Historicamente, as maiores depressões econômicas começaram com eventos inesperados na periferia dos principais mercados financeiros. Foi assim em maio de 1931, com o inesperado colapso do banco austríaco Creditanstalt de Viena, que derrubou todo o frágil sistema bancário alemão do pós-Guerra, contribuindo para a Grande Depressão nos EUA, já que sacudiu as estruturas dos principais bancos americanos. Será outra vez um evento imprevisto fora dos mercados financeiros – o novo coronavírus e seus efeitos no comércio mundial e, especialmente, no comércio EUA-China – que desencadeará uma nova depressão econômica?

Até 20 de janeiro, quando foram divulgadas as notícias sobre o coronavírus explodir em na região chinesa de Wuhan e nas cidades vizinhas, os mercados financeiros globais e, principalmente, nos EUA estavam otimistas de que as ações combinadas do Federal Reserve – injetar mais liquidez – e do governo Trump – fazer tudo possível em um ano eleitoral – manteriam a economia positiva. Em janeiro, as ações continuaram sua subida artificial enquanto a liquidez do FED incendiava o mercado acionário mais supervalorizado da história dos EUA.

Todavia, desde então, à medida que aumentavam diariamente os números oficiais de infecções na China e as mortes atribuídas ao coronavírus, começou a ficar claro o fato de que o principal centro manufatureiro do mundo e fonte de grande parte das cadeias industriais globais poderia enfrentar consequências econômicas catastróficas decorrentes da emergência sanitária e do subsequente cordão sanitário de cidades com mais de 77 milhões de cidadãos e das indústrias a elas associadas. Isso, por sua vez, arrastaria o mundo inteiro, principalmente os EUA, para uma grave crise econômica em um momento não planejado.

Economia dos EUA já é frágil

Em geral, o que é subestimado na grande mídia é o fato de que a maior economia do mundo – os EUA – já demonstrava sinais alarmantes de declínio econômico antes do choque do vírus na China.

Um dos declínios mais alarmantes nos meses anteriores a janeiro foi o setor que muitos acreditavam ter sido o líder de um renascimento da energia americana, ou seja, o setor em expansão do petróleo e gás de xisto. Na última década, para surpresa de grande parte do mundo, os EUA emergiram como o maior produtor mundial de petróleo, passando tanto a Rússia como a Arábia Saudita. No início de janeiro, a produção de óleo americano era de 13 milhões de barris por dia. Boa parte desse aumento se deveu a poços de petróleo de xisto não convencional, a maioria deles no Texas.

A indústria americana de xisto depositou suas esperanças no recente acordo comercial EUA-China, no qual os chineses concordaram em comprar US$ 18,5 bilhões extras em produtos de energia em 2020. Isso é o dobro dos US$ 9,1 bilhões em importações dos EUA em 2017, mais um extra US$ 33,9 bilhões em 2021. Essas cotas representariam neste ano uma duplicação do recorde anterior de importações mensais de petróleo bruto, gás natural liquefeito (GNL) e carvão americano pela China, e uma triplicação dessa quantidade virá no ano que vem.

Tudo isso foi antes da erupção do coronavírus e das proibições de viagens à China pelas principais companhias aéreas, além do fechamento de um grande número de fábricas chinesas. Agora, os preços do petróleo seguem caindo acentuadamente, na expectativa de que a China – a maior importadora de óleo do mundo – diminua suas importações significativamente nos próximos meses, à medida que a economia é atingida pelas consequências da epidemia de vírus. Até o final de janeiro, a demanda chinesa de petróleo caiu cerca de três milhões de barris por dia, ou 20% do consumo total, e o preço do Petróleo Intermediário do Texas (West Texas intermediate – WTI) é inferior a US$ 50. Esse é o maior choque de demanda petrolífera desde a crise financeira de 2008.

Em janeiro, os preços do Petróleo Intermediário do Texas caíram 15%, a pior queda de janeiro desde 1991. As reportagens diárias sobre o aumento de baixas do vírus da China pareciam piorar esse quadro ainda mais. Os preços continuaram caindo, apesar do corte em janeiro na produção diária de 1 milhão de barris devido à Guerra Civil da Líbia. Enquanto os danos da epidemia na China crescerem, a demanda global por petróleo continuará a cair. Isso representa uma catástrofe para a frágil indústria de petróleo de xisto dos EUA, apesar de uma decisão emergencial da OPEP de cortar a produção.

Já em dezembro de 2019, antes das notícias sobre o vírus chinês, o número de pedidos de falências de empresas de petróleo de xisto nos EUA aumentava significativamente, e os preços continuavam abaixo da rentabilidade. De acordo com o monitoramento da indústria pela Baker Hughes, o número de plataformas de perfuração de petróleo e gás ativas nos EUA caiu para 790 – isto é, 265 plataformas a menos desde janeiro de 2019. Muitas empresas americanas de petróleo e gás estão desesperadamente aguardando um novo boom de exportações para a China. Embora isso pareça otimista, os últimos acontecimentos podem se tornar um pesadelo para os produtores de xisto americanos, que enfrentam custos crescentes e queda na produtividade.

Transporte americano em crise

Ao contrário do mercado acionário que pode subir à medida que as empresas usam a liquidez do FED para simplesmente recomprar suas próprias ações, em vez de investir em novas instalações e equipamentos, a economia real depende da circulação de mercadorias. Nos EUA, o transporte de caminhões é importante. Os indicadores americanos não eram positivos muito antes dos eventos do coronavírus na China. Em dezembro passado, um dos maiores grupos de caminhoneiros, o Celadon of Indiana, entrou com pedido de proteção contra falência com mais de três mil motoristas – a maior falência da história dos caminhoneiros dos EUA. Nos três primeiros trimestres de 2019, quase 800 transportadoras de caminhões faliram, mais que o dobro das falências de 2018, segundo a Broughton Capital, empresa de dados do setor de transportes.

E a diminuição dos embarques de mercadorias dos EUA não foi apenas no transporte rodoviário. Foi do outro lado da linha. De acordo com o grupo comercial, o Cass Index for Freight Shipments, em uma comparação ano a ano, o volume total de mercadorias transportadas por trem, barco, ar e terra nos EUA caiu 7,9% em janeiro. Esse foi o 13º declínio mensal e a queda mais acentuada desde a crise financeira de novembro de 2009. A conta não inclui mercadorias a granel como grãos, mas abarca itens como automóveis e autopeças.

O frete ferroviário caiu 9,2%. Uma das principais razões para essas quedas é a fraqueza na indústria americana. Apesar das recentes alegações, os empregos não estão voltando da China para os EUA – pelo menos, em números significativos. Em vez disso, o Índice de Atividade dos Gerentes de Compras (PMI) Industrial de dezembro caiu para 47,2% – 0,9% em relação a novembro. Foi o quinto mês consecutivo de contração e a mais rápida desde junho de 2009. Os empregos, novos pedidos de exportação, a produção, a reserva de pedidos e os estoques estavam todos em contração.

Além disso, está a frágil situação dos agricultores norte-americanos, após severos danos climáticos em 2019 e o corte das exportações para a China como resultado da guerra comercial. A tão negociada Fase 1 do acordo comercial EUA-China em dezembro pede que a China importe cerca de US$ 50 bilhões em produtos agrícolas dos EUA, o que, se for verdade, resultaria em um grande impulso aos agricultores americanos. Em 2017, os EUA exportaram US$ 19 bilhões em produtos agrícolas, incluindo soja e milho para os chineses. Agora, da forma como o coronavírus se espalhou pela China, a probabilidade de efetuar um aumento das exportações agrícolas diminui a cada dia. Pequim já deu a entender que solicitará uma reconsideração do novo acordo comercial em decorrência dos impactos do vírus. Em 2019, as falências agrícolas dos EUA foram 24% maiores que em 2018 em meio a uma das piores crises desde os anos 1980. A perda do imenso mercado de exportação da China em 2020 será um golpe devastador para milhares de agricultores que mal conseguem sobreviver.

Tudo isso por si só não cria uma catástrofe econômica. Contudo, o choque inesperado da maior crise da história recente, interrompendo as cadeias de suprimentos do centro da indústria global – a China –, terá consequências incalculáveis ​​para empresas americanas como Boeing, GM, Apple e inúmeras outras, caso a crise continuar crescendo, o que, infelizmente, todos os sinais indicam acontecer.

Para milhões de americanos comuns, o crescimento do mercado de ações nos últimos dez anos, com taxas de juros baixíssimas, tem sido a principal fonte de suas economias para aposentadoria. Agora, com as bolsas de valores em todo o mundo vendendo muito por causa do medo do impacto do coronavírus na economia mundial, a liquidação pode se transformar rapidamente em pânico, fazendo desaparecer a economia de milhões de americanos. Com apenas 41% das famílias americanas com até US$ 1.000 em caixa em caso de emergência, o impacto pode ser grave.

Ao contrário das crises de 20 anos atrás, a diferença é o impacto dramático da globalização da economia mundial, com a China recebendo a maior parte da terceirização da indústria do Ocidente, especialmente dos EUA. As principais montadoras sul-coreanas, Hyundai e Kia, anunciaram a suspensão da produção na Coreia, pois sua cadeia vital de fornecimento de componentes na China permanece fechada por conta do coronavírus. A indústria alemã se tornou fortemente dependente das exportações chinesas de autopeças para máquinas-ferramentas, agora no limbo. França, Itália e outras economias da União Europeia também serão duramente atingidas.

Stephen Innes, da AxiCorp, alerta que “qualquer choque econômico nos colossais motores industriais e de consumo da China se espalhará rapidamente para outros países graças ao aumento das interligações comerciais e financeiras associadas à globalização”. E poucos países são mais vulneráveis a esses choques do que os EUA. Mesmo com a crise do SARS de 2003 na China e Hong Kong, o nível da globalização chinesa era de magnitude menor.

Com a dívida total da economia mundial e também americana em níveis recordes, a inesperada catástrofe da saúde na China pode ter um impacto econômico que poucos poderiam ter imaginado há apenas algumas semanas. Não temos um relatório preciso de quanto a indústria chinesa se encontra fechada até o momento ou por quanto tempo, e a interrupção das cadeias de suprimentos globais está só começando. Isso tem potencial para abalar o mundo, mas os mercados financeiros alegremente ignoraram tudo.

* Frederick William Engdahl é consultor de risco estratégico e conferencista, é formado em Política pela Universidade de Princeton e é um autor best-seller de petróleo e geopolítica.

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