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A homossexualidade e o fetiche de Canaã

O cristianismo cananita é pura idolatria, que prefere venerar trincheiras imaginárias a amar soldados com feridas de verdade.
por André Kanasiro | Revista Opera
Na Cama, O Beijo” de Toulouse-Lautrec (1892)

A Bíblia por vezes parece distante de nós, leitores modernos, deixando perguntas sem respostas e silêncios a ecoar. Uma dessas perguntas, aparentemente marginal, é suscitada em uma das primeiras narrativas de Gênesis:

“Então disse a Abrão: Saibas, de certo, que peregrina será a tua descendência em terra alheia, e será reduzida à escravidão, e será afligida por quatrocentos anos,
Mas também eu julgarei a nação, à qual ela tem de servir, e depois sairá com grande riqueza.
E tu irás a teus pais em paz; em boa velhice serás sepultado.
E a quarta geração tornará para cá; porque a medida da iniquidade dos amorreus ainda não está cheia.” (Gênesis 15:13-16)

O contexto é familiar a muitos. Abrão, patriarca chamado por Deus a sair de sua terra e ir para um lugar que Deus lhe daria por herança, recebe uma revelação das mais terríveis: a terra seria dada não a ele, mas a seus descendentes, e somente após quatrocentos anos de escravidão. A justificativa divina para esta sentença não é punição, mas misericórdia: os amorreus habitavam a terra, e sua medida de iniquidade ainda não estava cheia para que fossem expulsos. O que era a iniquidade dos amorreus, no entanto, parece jamais ser-nos dito.

Milhares de anos se passaram, e o pecado amorreu continua a escapar-nos. Isso pouco importa aos patriarcas e deuses modernos, que, em sua ânsia por poder e controle, estão prontos a encher por conta própria a medida da iniquidade de outros, sempre dispostos a expulsar ímpios de terras que passarão a ser, convenientemente, suas próprias.

Assim se explica como, para condenar a homossexualidade, tantos líderes religiosos contentem-se com tão pouco. Não querem compreender as Escrituras, mas sim usá-las para justificar seus preconceitos; são como sanguessugas que, conquanto criteriosas na escolha de hospedeiros, aceitam dormir em qualquer poça de lodo. Mais irônica mostra-se a escolha, por parte das sanguessugas, de um texto que é chave para a compreensão do pecado amorreu: o Código da Santidade em Levítico 18-20.

Entre a loucura e o descarte

O livro Levítico encontra-se facilmente entre os menos palatáveis da Bíblia Hebraica. Conjunto de leis e orientações dadas por Deus a Moisés após a inauguração do Santuário, a obra é costumeiramente evitada no dia-a-dia do cristão ocidental, seja por sua natureza enigmática ou por sua aparente irrelevância à espiritualidade moderna. Seus versos ressurgem somente quando pastores, inseguros frente à falta de cercas em seu curral, evocam regras antigas de forma a reafirmar-se contra o Outro. E entre os mais célebres versos-cerca deste livro encontra-se o seguinte:

“Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; abominação é.”
(Levítico 18:22)

A proibição é repetida verbatim em Lv 20:13, ambos os versos compondo a unidade literária conhecida como Código de Santidade (Lv 18-20). Estes versos, erguidos como bandeiras por conservadores com o mote “A Bíblia assim me diz”, tornaram-se a base sobre a qual se construiu a noção da homossexualidade como algo abominável, e encontram-se em meio a outras injunções e proibições de natureza diversa, inclusive sexuais. Arrancando os versos de seu contexto imediato, militantes e apologetas pensam eternizá-los como leis universais, entretanto logrando somente imprimi-los a pára-choques de caminhões; é somente sua loucura que lhes permite abominar o sexo entre homens enquanto vestem roupas de tecidos diferentes (Lv 19:19) e cortam cabelo e barba (Lv 19:27).

O anacronismo grita com a imposição de um conceito moderno, o da orientação sexual, a um texto milenar que trata de práticas específicas. O Código de Santidade, que supostamente proíbe relacionamentos homossexuais, nada tem a dizer sobre relacionamentos entre mulheres, e silencia sobre questões muito mais cotidianas da vida sexual e familiar do povo hebreu, tais como divórcio, herança ou fornicação. Não cabe, no entanto, descartar todo o texto como artefato ultrapassado e superado pelo Novo Testamento, pois este carrega e ressignifica os princípios da fé hebraica contida no Antigo Testamento – incluindo-se aí Levítico. É necessário compreender os princípios governantes do Código de Santidade, seja para segui-los ou para criticá-los.

Os pilares do altar

O Código de Santidade é uma unidade literária de três capítulos (18-20) na qual Deus exorta seu povo a ser santo como Ele, de forma a se diferenciarem de seus vizinhos no Egito e em Canaã. Conforme notado pela antropóloga Mary Douglas, o Código funciona como altar entre dois pilares: estes são os capítulos 18 e 20, compostos de proibições espelhadas, enquanto o capítulo 19, altar e clímax do Código, institui novas tradições e reforça a observância de leis já outorgadas. Predominam leis referentes ao cuidado com o próximo, seja este pobre ou estrangeiro (Lv 19:9-11, 13-18, 32-36), e surge aqui a máxima do cristianismo: “amarás o teu próximo como a ti mesmo” (19:18). Todas essas práticas são introduzidas como imitação de Deus, sendo parte da construção coletiva de santidade do povo.

Os pilares, por outro lado, introduzem negativas e proíbem costumes que, segundo a retórica do texto, são tradições instituídas entre os povos do Egito e de Canaã (18:1-5), pelas quais a terra em que habitam está prestes a vomitá-los (18:24-28). Saltam as primeiras contradições, pois a atração sexual, aspecto difuso e subjetivo das culturas humanas, dificilmente poderia ser considerada estatuto ou tradição. O texto parece então sugerir práticas de outra natureza.

Antes cabe analisar, no entanto, as camadas de sentido latentes ao próprio verso em questão, assim como sua aparente redundância: bastaria a primeira parte do verso, “com homem não te deitarás” (no hebraico: et-zachar lo tishkav), para que ficasse clara a proibição. A segunda parte, “como se fosse mulher” (no hebraico: mish’k’vei ishah), poderia também ser traduzida como “em leitos de mulher”, sendo o primeiro termo uma construção extremamente rara no hebraico que só ocorre uma vez em outro contexto: na morte de Jacó.

O violador de leitos

A repetição de palavras-guia na Bíblia Hebraica pode estender-se por entre livros, convidando o leitor à intertextualidade entre suas ocorrências, mas quase convocando-o através da repetição de termos ou temas mais raros. Tal é o caso com o termo em questão (“em leitos de”/mish’k’vei), que ocorre mais uma única vez em Gênesis 49:4.

Nessa passagem, Jacó, em seu leito de morte, reúne seus filhos para transmitir-lhes bênçãos e legados. Espera-se que a Rúben, o primogênito da família, abundem bênçãos do pai, mas este não é o caso. Após chamá-lo de impetuoso, Jacó termina com uma acusação: “você subiu aos leitos de seu pai!” (no hebraico: Alita mish’k’vei avicha!)

A acusação, que soa estranha a quem não conhece a história, é prestação de contas esperada por leitores assíduos: Rúben deitara-se com uma das concubinas de Jacó logo após a morte de Raquel, esposa mais amada de seu pai (Gn 35:22). Não há literalidade na acusação do patriarca, pois seu filho não é culpado por subir fisicamente em sua cama; a culpa de Rúben está em sua violação do espaço de Jacó, em sua traição e desrespeito para com os relacionamentos do pai.

Voltando a Levítico com tal bagagem, o verso torna-se muito mais claro: numa sociedade na qual é desconhecida a instituição de casamentos homossexuais, e na qual o legado de um homem encontrava-se em sua descendência, a proibição de Lv 18:22 refere-se a alguma prática que levava homens a violar casamentos para deitar-se com outros homens. Não surpreende que no capítulo 20, que repete as mesmas proibições mas seguidas de suas respectivas punições, o sexo homossexual “em leitos de mulher” esteja no mesmo bloco de proibições que o adultério e outras formas de violação de leitos, como formas específicas de incesto (Lv 20:10-13) que transgridem o espaço de outros membros da família. Resta entender, no entanto, o significado de tais práticas em suas respectivas tradições, assim como sua relação com a misteriosa iniquidade dos amorreus.

A nudez e a terra

Conforme estabelece a moldura do Código (18:1-5; 20:22-26), todas essas práticas proibidas correspondem a tradições e estatutos dos povos aos quais Israel é comparado. A instituição destas práticas é considerada antagônica às práticas recomendadas por Deus e antítese de Sua santidade; mas a natureza comum de todas essas práticas sexuais, capaz de torná-las inimigas da santidade divina, permanece um mistério enquanto não nos atentarmos novamente a palavras-guia no texto.

Uma vez introduzido o Código, a primeira proibição individual pronunciada relaciona-se à “nudez do pai” (Lv 18:7-8). De fato, boa parte dos versos seguintes discorre a respeito de quais membros da família não devem ter sua “nudez descoberta”, termo amplamente compreendido como eufemismo para ofensas sexuais ou obscenidades. Tamanha proteção das relações familiares faz todo o sentido à luz da preocupação com a violação de leitos; mas mais do que isso, o uso dessa rara combinação (“nudez do pai”) alude a outro texto no início de Gênesis, amarrando pontas que estiveram soltas por tempo demais. Há uma referência direta a Cam, filho de Noé, e sua terrível transgressão, narrada em Gênesis 9:20-29.

A história surge como epílogo pacato. Noé e sua família, únicos sobreviventes da catástrofe diluviana, plantam uma vinha; mas Noé, por razões que o narrador jamais nos revela, embriaga-se de tal forma com o vinho de sua plantação que tira a roupa e fica nu em sua tenda. Aqui ocorre a atrocidade. Cam, um dos três filhos de Noé, “vê a nudez do pai” e vai contar a seus irmãos, que, horrorizados, andam de costas até o pai e cobrem sua nudez.

A natureza exata do ato de Cam é desconhecida; o eufemismo de uma expressão tal como “ver a nudez” sugere qualquer tipo de obscenidade, que pode ir de seu sentido literal às mais sombrias violações sexuais. O que importa aqui é que Cam atribui um significado e poder intrínseco à sua transgressão, de tal forma que faz questão de informá-la a seus irmãos; a sexualidade funciona para ele como espécie de fetiche e instrumento de poder e dominação a ser usado em seu favor.

Ao despertar, Noé fica a par do que seu filho lhe fizera e, furioso, profere uma maldição, não contra seu filho Cam, mas contra seu neto Canaã. A maldição de Noé reproduz um raciocínio que perpassa toda a Bíblia e que é vital para a compreensão do Código de Santidade: o filho conta a história e leva o legado de seus pais, e assim se sucede de geração em geração. O livro de Gênesis, que trata dos pais de nações inteiras, confere ainda mais importância a este princípio, e as nações e tribos que surgem de seus personagens serão por vezes vistas cometendo os mesmos erros de seus pais. Canaã, herdeiro do pecado de seu pai, será pai dos amorreus (Gn 10:15-19), que serão chamados em Levítico pelo nome de seu pai ao perpetuarem as mesmas transgressões que seus antecessores.

O fetiche de Canaã

Qual é, então, a iniquidade dos amorreus? A mesma que une todas as ofensas sexuais listadas no Código de Santidade e atribuídas aos povos de Canaã, cujos rituais seriam supostamente repletos de promiscuidade: a transformação da sexualidade em fetiche, com valor e poder intrínsecos e vontade superior à dos homens. Tal transformação serve, em última instância, como forma de dominação e opressão do outro, conforme as práticas de Cam e Rúben. Para além da santidade, o sexo torna-se instrumento para manutenção – ou usurpação – de hierarquias: não surpreende que tantos versos em Lv 18 sejam dedicados à proteção da nudez de parentes próximos de indivíduos (Lv 18:6-17), impedindo que a sexualidade humana torne-se mera moeda de troca em disputas por poder. 

Para que seja santo como Deus, o povo de Israel é chamado a santificar a sexualidade; assim contrastariam com seus vizinhos, que usavam-na como ferramenta para a aquisição de santidade. Os que caminham com Deus são chamados a recuperar seus papéis como sujeitos e soberanos sobre a sexualidade, que faz parte de sua natureza, ao invés de deixarem-se ser comandados por ela. No fim, mais uma vez, o problema é a idolatria.

Hoje o dito pecado de Canaã permanece onipresente no mundo. Sua presença, no entanto, não se dá mais em meio à promiscuidade pós-moderna; esta é rebeldia iconoclasta, que esvazia de sentido algo que tem sido há séculos transformado em ídolo em nossas igrejas. O cristianismo cananita, na forma de instituições hegemônicas desde a Idade Média, fetichizou mais uma vez o sexo, transformando-o novamente em talismã e ídolo para a aquisição de santidade; mas a tragédia agora é farsa, e o fetiche, que antes conferia valor por sua prática, hoje transmite poder por sua ausência. A sexualidade, dádiva divina que deveria ser parte natural de nossas vidas, foi transformada em cerca a distinguir entre um “nós” e um “eles”. Ironicamente, o texto escrito para combater a idolatria do sexo foi incorporado a um novo ídolo, adorado por crentes que pensam conquistar santidade através da heterossexualidade ou do sexo depois do casamento – traçam limites dentro dos quais estão salvos, e não hesitam em chutar para fora qualquer um que viole ou mesmo questione os muros construídos. O cristianismo cananita é pura idolatria, que prefere venerar trincheiras imaginárias a amar soldados com feridas de verdade.

Seja na orgia ou na castidade, o sexo permanece instrumento de poder e dominação, e assim continuará até que se encha novamente a medida de nossa iniquidade – e os amorreus sejam novamente vomitados da terra.

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