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Piero Leirner: militares acabarão por criar ‘anomia’ da qual tanto falam

Para antropólogo Piero Leirner, militares buscam espécie de “conversão cultural” de corações e mentes do povo brasileiro.
Para antropólogo, militares buscam espécie de “conversão cultural” de corações e mentes do povo brasileiro – por Pedro Marin | Revista Opera
(Foto: Foto: Marcos Corrêa/PR)

Quando o antropólogo Piero Leirner, sob a insistência de sua orientadora, Maria Lúcia Montes, decidiu estudar o Exército, o Brasil vivia seu primeiro governo eleito por voto direto em 21 anos. A ideia de Leirner era fazer um estudo de campo em pelotões de fronteira na Amazônia, tema comum do discurso público dos militares nos idos dos anos 90. Acabou parando na Escola de Comando e Estado Maior do Exército (ECEME) no começo de 1992, onde, diz ele, foi “tratado como uma espécie de orientando ou estagiário”, posto para ler textos e fazer fichamentos, enquanto se preparava para estudar o que realmente queria. Acabou ficando lá por três anos, sem conseguir o tão desejado acesso aos pelotões de fronteira. “Um dia pensei ‘caramba, eu estou há anos aqui, indo toda hora para a Escola de Comando, e isso não é campo?’ Notei que eu tinha feito um campo; que muitas coisas sobre esse campo eram regidas pelas ideias de hierarquia militar”, diz. Transformou a experiência em um trabalho de mestrado, segundo estudo antropológico feito no Brasil sobre o tema, defendido em 1995 e publicado em 1997 pela FGV: “Meia volta volver: um estudo antropológico sobre a hierarquia militar”.

23 anos depois, num momento em que se diz cansado do Exército, o professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) volta mais uma vez os olhos aos militares, dessa vez em um cenário em que retornam ao centro do poder político, no trabalho “O Brasil no Espectro de uma Guerra Híbrida: militares, operações psicológicas e política em uma perspectiva etnográfica”, publicado pela editora Alameda.. Em entrevista à Revista Opera, Piero Leirner explica sua pesquisa e a forma como vê a ascensão militar.

***

Revista Opera: Peço que você fale dessa sua nova tese, do porquê decidiu escrevê-la e porque escolheu essa abordagem, da Guerra Híbrida.

Piero Leirner: É uma tese que fiz para o cargo de professor titular da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), que é onde dou aula, onde estou há 22 anos. Depois do doutorado eu tinha trabalhado um monte de coisas, mas o tema do Exército tinha me enchido o saco. Tinha me afastado dessa conversa toda. 

Em 2010 eu fui para a Amazônia, fui para a área dos pelotões de fronteira, e voltei em 2013 – morei lá durante um semestre, em São Gabriel da Cachoeira (AM). Mas eu estava mais interessado em etnologia indígena do que nos militares; queria estudar os índios que estavam servindo lá, no Exército, mas de novo foi muito difícil, simplesmente o comandante “sumiu”. Então decidi partir para outra, disse que não queria nunca mais saber desse assunto. Fui estudar parentesco e hierarquia entre os índios Tukano da região do Alto Rio Negro.

Mas em 2016, quando começa a história do impeachment e todas aquelas agitações, a Maria Lúcia começou a demandar que eu passasse a fazer uma leitura sobre o que estava acontecendo com os militares. E nós entramos em um grupo de discussão por internet, no blog do Romulus – que tinha acabado de conhecer quando ele ainda era comentarista do GGN –, e fui puxado de novo para a discussão sobre os militares. E de fato comecei a suspeitar que eles estavam mexendo os pauzinhos de uma maneira muito estranha – porque você deve se lembrar bem, vocês na Opera provavelmente foram os primeiros a detectar isso, ninguém mais falava que eles iriam agir como atores primários nesse processo. O que o general [Eduardo] Villas Bôas transmitia o tempo inteiro é que eles se mantinham absolutamente neutros e distantes de todo o processo político. Foi aí que eu comecei a olhar um pouco a essa literatura sobre Guerra Híbrida, mais como uma curiosidade – mas nessa época começou a cair no meu colo textos em que os próprios militares descreviam o que eles consideravam ser uma Guerra Híbrida. Tinha alguma noção do que eles falavam pois por volta de 2008 acabei estudando, em um pós-doutorado, justamente manuais de operações psicológicas, contrapropaganda, etc. Isso porque havia nos EUA um uso institucional de antropólogos nas Forças Armadas, no Iraque e Afeganistão. E eu comecei a perceber, nesse processo, que os textos que eles escreviam aqui eram instrumentos de produção de desinformação, típicos de uma Guerra Híbrida: ou seja, eles estavam produzindo uma Guerra Híbrida interna.

Então, sobre a Guerra Híbrida, vejo muito mais como conceito nativo do que como uma realidade concreta e autoexplicativa, entende? Mas o conceito nativo começa a ser tão usado que passa a fazer sentido por ele próprio, quando os atores começam a acreditar demais naquilo que eles escrevem. Foi a partir disso que eu resolvi reunir as coisas que estava pensando de 2016 para cá e, em junho de 2019, comecei a escrever essa tese; terminei ela em setembro e defendi em dezembro.

Revista Opera: Na sua tese você cita algo que é um pouco desconhecido, no geral; essa aproximação que os militares têm mantido, pelo menos desde a redemocratização, com intelectuais, jornalistas, empresários, etc. Como você vê esse tipo de aproximação?

Piero Leirner: Logo depois do Plano Collor, eles estavam extremamente decepcionados com os rumos que o Collor tinha tomado, porque depositavam uma fé muito grande nele. Isso me era falado o tempo inteiro nessa época – e eles foram sucateados, era impressionante como às vezes eu pegava carona em viatura que servia coronel ou até general, e a porta da viatura não tinha tranca, o soldado ia segurando com o braço para fora. Estavam realmente muito preocupados e desconfiados com os rumos que a democracia estava tomando, o que casava um pouco com aquelas teorias sobre as ONGs e o interesse internacional na Amazônia, que estava começando a virar um protoplasma ideológico e algo doutrinário entre eles. Por que? Porque nesse momento, com o fim da Guerra Fria, falavam claramente que não ganharam nada no processo de alinhamento com os Estados Unidos, que na verdade saíram prejudicados, ao contrário do que aconteceu com a Europa depois da Segunda Guerra. Então pensavam que era necessário procurar um alinhamento nosso, próprio, autóctone – é daí que veio toda essa mitologia da Amazônia associada a Guararapes, ao nascimento da nacionalidade, etc. “Invenção do Exército Brasileiro” é um livro interessante de Celso Castro, no qual ele mostra como eles criam, a partir de coisas mais ou menos dispersas, essa história de Guararapes e sua associação à Amazônia.

Bom, nesse ínterim eles identificaram que não havia um projeto nacional; diziam “somos uma Força Armada procurando a nossa raiz e o nosso norte, mas a gente não tem na sociedade o mesmo tipo de movimentação. Então nós é que temos que fazer isso”. E o que fazem? Tiram da cartola, de novo, a ideia de que eles são a ossatura da nacionalidade, que vão conduzir o processo de gestão e formação da Nação. É nesse momento que eles começam a trazer, para dentro da Escola de Comando, um monte de gente; mas uma coisa meio sem critério, que ia de José Genoíno a Olavo de Carvalho. Então o que eu acho que eles estavam fazendo nessa época? Sondando as teorias que se encaixavam ali, produzindo a cacofonia que nós estamos vendo hoje, uma coisa absolutamente maluca. Juntar a ideia de soberania na Amazônia com a entrega da EMBRAER, sei lá eu. Parece algo completamente esquizofrênico – e é mesmo [risos]. Essa é a minha opinião: eles passaram por um processo de dissonância cognitiva, é o que acho que aconteceu durante anos ali dentro.

A partir disso eles começaram a armar essa rede, nos anos 90. Mas ela fica mais sólida quando eles acionam uma reação ao “comunismo” que estava voltando pro Brasil. Foi isso que galvanizou, a partir dos anos Lula, mas que aumenta para valer a partir de 2010, com a Dilma, que é quando eles procuram fazer costuras mais efetivas – sobretudo com empresários, por meios desses institutos, “Instituto Liberal”, “Mises”, etc., – mas também, sobretudo, botando lenha na ESG (Escola Superior de Guerra), chamando gente do próprio Estado lá para dentro. Você olha as listas a partir de 2010 dos frequentadores dos cursos da ESG e vê um monte de procurador e juiz entrando lá. O que é isso? De novo a formação daqueles complexos tipo IPES/IBAD (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais e Instituto Brasileiro de Ação Democrática) no pré-64. Igualzinho; a mesma coisa.

Revista Opera: Na tese você diz que se por um lado eles fazem esse movimento para dentro, isto é, esse processo de dissonância, há também um movimento de “domesticação do mundo de fora a partir do mundo militar”. 

Piero Leirner: Sim, é um pouco do que vi como experiência etnográfica na Amazônia. Essa noção, de que eles têm de carregar o País nas costas, no fundo ela é acompanhada pela noção de que eles são uma espécie de administradores de uma fazenda que têm como tarefa domesticar animais selvagens. O que significa isso? De certa maneira, trazer todo o campo de diferenças sociais para uma conversão, uma espécie de digestão e projeção, a respeito do que eles entendem como sendo parte da realidade. Que é uma realidade muito monótona (no sentido “narcísico” do termo), não é? Então não acho que seja um processo de tutela – tutela se faz com uma criança, na tutela você pressupõe que a criança estará sempre na mesma condição – o que eles querem é a conversão da população a uma outra forma, acho que há um projeto “cultural” de transformação da realidade, de corações e mentes alteradas. Por isso acho que é um projeto que embute, em seu interior, muito dessas operações psicológicas. Não é suficiente dizer que é só um interesse por cargos que faz eles irem nessa direção nos últimos anos.

Revista Opera: Você mencionou essa relação que os militares mantêm com setores do Judiciário. Cita na tese as relações que mantinham com gente do TRF-1, TRF-2 e TRF-4 – o que chama atenção. Como você vê agora, com esses militares do governo, essas relações? Como você vê isso tudo, levando em consideração a recente saída do Moro do governo?

Piero Leirner: A primeira coisa a se fazer é procurar escapar de uma visão trivial a respeito da posição deles em relação ao governo e a política. No processo que podemos recuar desde 2016 para cá, tudo é produzido em um movimento de pinça; sempre com estruturas mais ou menos duais. Se fôssemos resumir, eu diria o seguinte: eles usam um para-raios, tocam fogo em uma situação, e eles mesmos são os bombeiros que vão apagar o fogo que eles criaram. Em certo sentido o Bolsonaro representa esse papel. Uma coisa é falar em Bolsonaro, outra em governo – eu diria que ambos são governo, mas o governo em si é algo meio dualista.

Leia também – Bolsonaro e os militares: não há saída institucional para um governo da força

O que eu vejo, por exemplo, em situações como a saída do Santos Cruz, que virou esse personagem imaculado que a imprensa toda mima. Creio que a saída do Santos Cruz, que pareceu ser uma saída por conta de conflitos com o governo, é uma válvula de escape do próprio governo – não que ele não tenha saído do governo, mas o governo, lato sensu, botou ele em uma posição de oposição controlada, compreende? Porque agora ele assume uma voz na oposição, de sensatez – sei lá como poderíamos chamar isso – mas não deixa de ser operado pelos mesmos agentes que era antes; os militares. É a válvula de escape dos militares operando como se fosse oposição, mas não é. Eles controlam ambas as posições. 

E eu acho que, em certa medida, o Moro entra nessa chave. Eles sempre vão estar batendo com um porrete e amansando com a outra mão. Interessa para eles uma posição que é de confronto, sempre, entre o Bolsonaro e uma outra posição, e eles aparecem como mediadores mais ou menos equidistantes disso. Não sei ainda qual vai ser o desfecho da questão da Polícia Federal, mas me parece que será exatamente essa posição: não vão nem pegar o Moro, nem o Bolsonaro, e vão pegar os dois ao mesmo tempo. Esse é meu palpite. Quer dizer, deve se repetir a mesma forma de Santos Cruz; Moro passa para uma “oposição” – bem entre aspas. [A entrevista foi realizada no dia 13 de maio, portanto antes de ser revelado o vídeo da reunião ministerial de Bolsonaro].

Então eu acho que, primeiro, todas essas manifestações do Bolsonaro são provocadas, não são acidentais, estão dentro de um esquema que foi pensado – não precisa fazer muito plano para elaborar, basta bater nas costas do sujeito e dizer “vai lá, Jair, vai na manifestação e faça o que você faria normalmente”. A provocação para criar um dualismo com o Judiciário é evidente, mas ao mesmo tempo o Judiciário é refém deles faz tempo. Quem está lá? O general Ajax [Porto Pinheiro]. Olhe o vídeo do general Ajax a quinze dias das eleições. Todas as teses que estão no “Carta no Coturno” estão lá, todas, pode conferir. De que os comunistas estão prestes a transformar o Brasil na Venezuela, que o PT quer mexer dentro da sua casa, com seus valores, toda aquela paranoia. Quinze dias depois ele estava no STF, dizendo o que pode e o que não pode.

Então eu acho que o STF entrou agora nessa chave que eles estão produzindo: o STF estica a corda de um lado, o Bolsonaro estica do outro, e os militares vão aparecer como solução de ordem para algo que parece cada vez mais caótico. Porque vai chegar um ponto em que a tese que eles estão pondo, de que o Brasil está para entrar em uma situação de anomia, vai acontecer. Mas é uma anomia que foi provocada por eles mesmos. E aí eles vêm e se oferecem, “somos a solução para isso”. Você junta isso com um cenário de pandemia.

Veja bem se essa “sinergia” que eles falavam ter com o TRF-4, se acabou. Outro dia mesmo eu vi, Heleno passou a tarde tomando chá com duas desembargadoras – isso estava na agenda dele. Continuam distribuindo medalhas a torto e a direito para procuradores e juízes. Então como é essa história? Não brigou de fato com o Judiciário. Pelo contrário. Estão causando a cismogênese dentro dele, é isso que está acontecendo.

Revista Opera: Na tese você identifica um ponto-chave, entre 2013-2014, e diz perceber uma certa euforia dentro do Exército, com oficiais perdendo a calma sobre a Comissão Nacional da Verdade (CNV), a partir de 2011. Como você vê essa aparente virada, mobilizando o velho tema do anticomunismo e a Comissão Nacional da Verdade?

Piero Leirner: A virada foi um pouco antes. O que aconteceu na verdade foi que, no último ano do governo Lula, em 2010, a Casa Civil – cuja ministra era a Dilma – começou a esboçar a Comissão da Verdade. E o que acontece nessa época? Começa a ter um zum-zum-zum de militares, e temos também o primeiro militar da ativa que sai para falar a questão da Comissão da Verdade. Quem é esse camarada aí? É o general Maynard Santa Rosa, que estava no governo até pouco. O general Maynard foi exonerado da função em que estava em 2010, foi jogado para escanteio – já houve aí uma pequena reação, entende? Eles ficaram incomodados com a Dilma. Quando ela se torna o projeto do Lula para a continuação do Partido dos Trabalhadores no governo, esses caras ficam de cabelo em pé. Essa história já tinha se espalhado.

E aí ela se elege em 2010 e, no final de 2011, oficializa a CNV. Já começa a tensão entre a CNV e os militares porque, entre outras coisas, um monte de oficiais da ativa, especialmente do Exército, eram parentes de militares que tiveram participação na ditadura. Se não era algo que atingia a pessoa física deles, no mínimo atingia a “pessoa familiar”, vamos dizer. E dentro desse conceito de família militar que eles têm, que é algo complicadíssimo.

Seja como for, isso vai pegando, e quem vai se manifestando são os de sempre – sempre ao redor do Clube Militar. E aí há de considerar outro processo, que são aqueles grupos que tinham ficado de escanteio logo na abertura, que tinham passado por um processo de “limpeza” produzido pelo Geisel, que pegou todo o porão da máquina de repressão e informação e jogou para fora da hierarquia – nenhum deles subiu para general, Brilhante Ustra, etc. Muitas dessas pessoas ficaram nesses grupelhos, associações “civis” – TERNUMA, Inconfidência, Guararapes. Cada vez que acontecia de um militar entrar em atrito com a política, ele corria para esses grupos. Quando houve aquela briga do general Heleno com o Lula em 2008, por causa da Raposa Serra do Sol – que é uma briga prototípica, digamos, quase um arquétipo – Heleno correu para o TERNUMA. E esses grupos todos orbitando o Clube Militar, desde sempre, que passa a ser uma espécie de válvula de escape, um lugar onde se começa a expressar uma contrariedade em relação à Comissão Nacional da Verdade, e eles lançam um manifesto, acho que no início de 2012.

A Dilma fala para o Celso Amorim, ministro da Defesa na época, que tire esse manifesto do Clube, o Amorim ordena ao general Enzo Martins Peri fazer isso, e o general passa um pito no Clube Militar, que é uma associação da reserva, entende? Eles refazem o manifesto, agora com a indignação de terem sido “calados” por uma ordem “autoritária” – percebe como começa a inversão do jogo? – e hospedam um novo manifesto na página da internet do Ustra, “A Verdade Sufocada”. Esse movimento do porão da ditadura sempre existiu, mas era marginal – Ustra, coisas que o Olavo de Carvalho escrevia. Eles até podiam ter uma entrada dentro dos militares, mas não era algo assumido. São 800 coronéis que assinaram esse manifesto, não sei quantos generais, da reserva, da ativa, de tudo que é lugar. Aí você percebe que, bom, a guerra estava declarada.

Mas não foi só isso. Foi uma série de preocupações que eles estavam nutrindo. Por que? Somava-se isso a coisa das ONGs, da Amazônia, da “dissolução da família, dos valores”, por coisa de gays, etc. Aí vão começando a fabricar uma meleca, é assim que começam a ativar uma teoria interna, que parece ser algo que compram, mas na verdade fazem um rearranjo dela para os próprios propósitos, que é essa ideia da Guerra Híbrida. De que na verdade o centro emissor da Guerra Híbrida no Brasil eram o PT e o Governo Federal. Não é doido um negócio desses? Uma Guerra Híbrida produzida pelo núcleo do poder de um Estado? Mas é o que eles diziam: que o objetivo final do PT era dividir o País e aniquilar as Forças Armadas. E é isso o que eles pensam até hoje.

Revista Opera: Isso tem muitas semelhanças com certas leituras que eles faziam na década de 90 em relação a 1964. E é algo na verdade até anterior, porque na década de 50 eles falavam disso, usavam um termo engraçado pra quem seria pró-Getúlio, que era “Gregórios”, em referência ao Gregório Fortunato, chefe da guarda do Getúlio. Em 1964, há uma continuação, esses “Gregórios” agora chegam ao poder com João Goulart, e eles querem “comunizar o Brasil”, etc. Você vê essas semelhanças?

Piero Leirner: Sempre fazendo microatualizações, mas a coisa vem sempre em uma linha de continuidade. Em 1935, por exemplo, a Intentona Comunista vira uma espécie de “mito de origem” na cabeça deles. Em 1961 eles começam a falar de Guerra Revolucionária, e conseguem plasmar o anticomunismo nessa história. Aí vem 1964, depois a coisa esfria – mas a Amazônia está ali, entendeu? Ressuscitam a questão, mas invertendo o sinal: dizendo que o Exército teria que agir como uma resistência colonial contra os interesses das grandes potências. E o que fazem a partir de 2010? Começam a inventar a ideia de que o comunismo internacional estaria plasmado com o globalismo, que é um pouco essa ideia do Olavo de Carvalho. Então a resistência teria que ser contra esse comunismo que estaria embutido, “invisível”, eles gostam de dizer “homiziado” – têm uns termos assim – no interior da ideologia globalista, mas com os propósitos de fazer um “comunismo 2.0” vingar aqui no Brasil.

Então eles vêem a Dilma, o aspecto direto, e o aspecto indireto na ideia de que ela estaria disposta a vender o Brasil para a China. O que eles tiram do chapéu, para dar conta dessa realidade? A história da Guerra Híbrida. Pegam os paladinos das Forças Especiais, como o general Álvaro Pinheiro, que foi na Comissão da Verdade, porque participou no Araguaia, e que é alguém que estava introduzindo essa ideia sobre a Guerra Híbrida. Como eles lêem a Guerra Híbrida? Pensam como algo que gera a dissolução entre as fronteiras da guerra e da política, e que dilui militares e civis, galvanizando terrorismo, organizações criminosas e interesses anti-nacionais globalistas. Vira tudo uma coisa só, e eles começam a dizer que há uma suposta associação entre PT, FARC, Hezbollah e PCC, como um “grande projeto” de transformação do Brasil em uma espécie de Colômbia sob domínio chinês, onde as oligarquias instituiriam um comunismo chinês 2.0. Então tem essa história toda que começa a ganhar corpo. Um comunismo difuso, ressuscitando várias teorias, e agora pondo esse verniz novo da Guerra Híbrida, como se adicionassem um personagem numa historinha, para dar consistência a ela. Quando cruza a ideia de que o PT seria uma organização criminosa, é tudo que eles precisavam, porque casa com a teoria que eles estavam lendo a partir de Washington.

Revista Opera: Sobre esse cenário caótico, de vários acontecimentos que por vezes sequer conseguimos recompor, uma coisa que me chamou atenção na sua tese é que você menciona como o general Heleno diz que ao longo da carreira ele consolidou uma “longa experiência” trabalhando com a imprensa, foi até consultor de um grupo, parece. Isso é interessante porque aquela briga com o Congresso, que começou pouco antes da chegada da pandemia, foi justamente por causa de um “vazamento” de uma conversa em que ele dizia que o Congresso estava chantageando o governo. A senha para esse conflito entre governo e Congresso, que agora chega até o STF, foi dada por ele.

Piero Leirner: Claro. E ele soube o momento certo de recuar e parar de aparecer. Antes o que ele estava fazendo? Assumiu o protagonismo, estava sempre à direita do Bolsonaro, sentado, dando a palavra final. Quando a corda começou a esticar para valer, ele recuou. Botam o Braga Netto em uma chamada posição de “presidente operacional”, e o Bolsonaro começa a elevar o grau de tensão dos raios que caem na própria cabeça. É impressionante o jogo do Heleno. Há uma entrevista para estudantes de jornalismo em que ele diz que “tomou muito gosto por esse negócio de comunicação”.

Agora, a bomba mesmo eu vi recentemente, algo que eu nunca tinha me dado conta. O discurso de saída do general Rego Barros para assumir como porta-voz da Presidência da República, em fevereiro de 2019. A frase é simplesmente inacreditável: “Coube ao Exército mergulhar de cabeça no submundo das mídias sociais – Facebook, Instagram, Twitter, Whatsapp, portal responsivo, e-blog, etc., e se tornar o órgão público com maior influência no mundo digital no Brasil. Exigiu sangue frio e interlocução sem rosto, típica da internet […]”. Literalmente dizendo que o Exército foi para o submundo do Whatsapp. Esse negócio do “gabinete do ódio” é uma lorota. Botam o Bolsonaro e os filhos como os bois-de-piranha. Para mim ficou claríssimo que esse problema todo, que está no STF agora por conta das fake news do Whatsapp, em que o Bolsonaro aparece querendo proteger os filhos, no fundo interessa a quem? Interessa ao Exército. Porque os camufla de terem feito uma operação nessa coisa do Whatsapp. Está claro no discurso do Rego Barros, é impressionante.

Revista Opera: A despeito das diferenças pessoais que cada militar tem em relação a outro militar, eles têm uma noção de espírito de corpo que é bastante diferente do que vemos em partidos, por exemplo. Me pergunto se para eles é necessário realmente que conquistem a presidência, porque não precisam disso em última instância para operacionalizar a política. Como você vê as demissões de militares, que muitos argumentam ser uma derrota deles? E precisamos de fato ter o Mourão como presidente para ter um “governo militar”?

Piero Leirner: Primeiro as demissões: como disse sobre Santos Cruz, eles têm um mecanismo de válvula de escape, que já está um pouco pré-programado; com ou sem os demitidos terem ciência disso. Eu não sei por exemplo se o Santos Cruz é esse gênio todo, como dizem, para saber que ele estava indo em direção a uma fogueira que já estava armada. Aos poucos eles vão enxotando alguns militares e colocando outros em posições-chave – como se estivessem na oposição, para acentuar a ideia de que têm um aspecto técnico e neutro. Essas pessoas viram uma oposição controlada e potencial, para o futuro – sabe Deus se em 2022 ou o quê. Esse é o primeiro ponto: Moro e Santos Cruz são quase duas faces da mesma moeda.

E aí lucram nessa operação, jogando no colo do Bolsonaro e na família dele a ideia de que são completamente irascíveis, de que a loucura parte deles, que há um problema de personalidade, de que é tudo reflexo de uma chamada “ala ideológica” que é incontrolável e irracional, enquanto, por contraste, os militares são iluminados como salvadores da Pátria.

O que engata na segunda pergunta: agora estão em uma posição em que não aparecem como os emissores do caos, mas como a solução de ordem – como se eles não estivessem lá. E para isso eles têm de ocupar todas as posições do cenário.

Qual é o plano, então? Se eu fosse pensar em uma metáfora, que é aquela com a qual eu finalizo a tese, é que se isso fosse um sistema de computação, eles farão uma espécie de reinicialização, em que o computador é reiniciado em modo de segurança, são os administradores, que dizem o que pode e o que não pode operar no sistema. Não é todo programa que está instalado que vai rodar, entende? Primeiro a tomada do aparelho do Estado – aparelhar o Estado o máximo possível, isso eles já estão fazendo. Segundo, o processo – que é mais complicado – de “conversão ideológica” das pessoas. Algo mais complexo, mas considerando que eles tentam se colocar como elementos de mediação, de meio-termo, de bom senso, sensatos, nós vamos ver crescentemente eles aparecendo como “meio” entre dois polos radicais. Não é à toa que há quem esteja nesse esforço desesperado em dizer que Bolsonaro e Lula são a mesma coisa, para sugerir que o Brasil tem de “sair dos extremos” e eles se colocarem como força de coesão ideológica.

Então eu acho que é isso: primeiro um processo de aparelhamento de fato e depois vão para uma solução cultural de estilo “gramsciana” (falo ironicamente). Acho então que, a princípio, era melhor para eles manter o Bolsonaro até o fim do mandato, porque esse edifício continua todo de pé. Agora, é óbvio que em um campo cheio de incertezas, como a gente está, talvez não dê para segurar ele. As pessoas me perguntam: “Ele vai cair? Vai ter golpe?” – essa é a pergunta mais absurda, se vai ter golpe. Eu sempre falo: “Amigo, você acha que aconteceu o que? Recua aí na tua cabeça e se pergunte se teve!”. Então tendo a achar, sim, que o melhor seria manter a solução como está – mas concordo com você, meio que tanto faz. O ponto para eles é controlar o processo todo, como administradores do sistema; quem entra e quem sai. Aí, de fato, a posição de presidente é a que menos conta.

Revista Opera: Um outro ponto abordado na tese é a posição que o general Etchegoyen manteve dentro do governo Temer. Porque quando o Temer entra, ele reergue o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e o Etchegoyen fica responsável por isso. No meio de uma crise gerada por aquela gravação do Joesley, algo que no mínimo seria um descuido do GSI, é justamente Etchegoyen quem sai como homem forte e, até certo ponto, mantém o governo em pé.

Piero Leirner: Sim. Isso em 2017, até que eles arrematam isso em 2018 com a intervenção no Rio. Aí não sobra nada em pé, porque neutralizam completamente o governo Temer, e toda possibilidade do PSDB, por exemplo, conduzir uma transição para uma eleição em que eles estariam capitalizados. Porque durante a intervenção não tem mais Congresso para fazer votação de Reforma da Previdência, e esse era o grande ativo. Essa enorme psy-op (operação psicológica) no Rio de Janeiro serve para eles irem testando a ideia de intervenção militar como solução. Isso já está colocado no inconsciente das pessoas. E não é à toa que o Braga Netto, que era interventor, esteja hoje na posição que está. Interessantíssimo também o discurso de despedida do cargo do Villas Bôas, algo que não tinha me dado conta, onde ele diz que o Brasil tem três heróis nacionais: Bolsonaro, que tinha permitido nos livrarmos do comunismo, o Moro, que estava limpando a corrupção, e o Braga Netto – que ele deixa suspenso no ar. Ninguém deu bola para isso, quando ele falou isso o Braga Netto não era ainda o chamado “presidente operacional” do Brasil [risos]. Isso sugere que foi parte da armação, realmente começaram a construir isso, viram a janela de oportunidade para valer com o Temer assumindo.

Revista Opera: Como você avalia a postura dos últimos governos petistas em relação aos militares? Porque vendo o processo histórico a partir de 2016, fica evidente que o PT manteve, durante todo o tempo, uma postura quase que de anestesia em relação aos militares, como se eles não pudessem mais aparecer como atores na política. E mesmo quando apareciam – por exemplo com os tuítes do Villas Bôas, ou com a movimentação sobre a Comissão da Verdade – parece que ninguém levava isso a sério, o governo não levou a sério.

Piero Leirner: Você usou a palavra certa: é anestesia. Se blindaram para olhar o mundo, não viram um monte de coisas. Mas com os militares é talvez a postura mais absurda de todas; porque eles acharam, de fato, que poderiam prescindir deles. E talvez o que tenha acontecido tenha sido um processo narcísico tão absurdo, por conta de um governo que estava dando certo, que eles não perceberam que o tapete estava sendo puxado debaixo. Uma coisa é dizer: “Mas o Lula ouvia o conselho dos generais”. Mas ele tinha um serviço de informações decente? Ele tinha gente que falava o que estava se passando de A a Z? Tinha preocupação em ver o que estava sendo ensinado dentro das academias militares? Tinha preocupação em participar dos eventos militares, que é algo que para eles é dar doce para criança? Os militares diziam isso, em 2013, 2014: falavam de eventos em que os cadetes ficaram horas esperando debaixo do sol esperando alguém do governo chegar… Isso ia criando um ódio dentro deles. E eles começaram a sabotar. E então veio a Lava-Jato, o pessoal abrindo a porteira para a espionagem norte-americana. Furaram o que já era uma peneira, não é? E isso culminou com a Dilma querendo peitar eles; extinguindo o GSI, etc. E aí veio aquele grampo – que eu acho que era ambiental, não era no telefone do Lula, porque se ouve tudo o que estava se passando no gabinete antes do Lula atender a ligação – um absurdo, a imprensa obliterou isso, e não vi sequer o PT fazendo o escândalo que merecia. É a mesma história do Joesley; o GSI permitiu esse furo, que acabou com o governo do Temer. Então eu não sei, creio que foi de uma irresponsabilidade completa. Não leram Maquiavel: é preciso ter boas leis e boas armas. Fizeram leis terríveis e não deram bola nenhuma para as armas. Sobrou o que sobrou. Se eu acho que tem alguma coisa nesse sentido, de que é necessário a eles tirar os esqueletos do armário e fazer a autocrítica, é essa: “não prestamos atenção nos setores essenciais”. Vai além, mas aí é só ir tirando uma carta de cima da outra. Deixaram uma juristocracia condescendente tomar conta do partido, se estabelecendo como hegemônica, e ao mesmo tempo não prestaram atenção na questão mais essencial que poderia segurar o governo, como segurou o governo Temer até o fim. Por que Temer não caiu? Porque eles não deixaram. Só por isso. E foi assim que se instalaram no Planalto.

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