Durante as últimas duas semanas, a intervenção e expropriação estatal da empresa Vicentin têm sido a notícia central dos principais meios de comunicação da Argentina. A situação da empresa de Santa Fé transcendeu o mundo do agronegócio e o âmbito dos debates agrários e está hoje na boca da grande maioria do povo. “Populistas” x “liberais”, “expropriação” x “propriedade privada”, as tribunas se agitam ante uma medida que surpreendeu especialistas e leigos e que revive debates velhos e não resolvidos sobre qual deveria ser o modelo produtivo do país.
Embora seja uma das principais empresas de agroexportação da Argentina, a empresa Vicentin ganhou o debate público somente no final do ano passado, após se declarar em default. Alguns meses antes, o anúncio repentino de “estresse” financeiro – e a suspensão dos pagamentos ao Banco Nación – já antecipavam um quadro complicado para a empresa de Santa Fé que se cristalizaria alguns dias antes da sucessão presidencial.
As notícias deixaram o mundo dos negócios agrários em alerta e despertaram o interesse de mais de um dos grandes grupos envolvidos no comércio exterior de grãos. Em fevereiro deste ano, a empresa enfim entrou com um pedido de falência, o passo anterior para declarar falência.
A magnitude da dívida, que chega a 99,345 milhões de dólares, implica um número difícil de imaginar, ainda mais em um campo como o comércio exterior de grãos, óleos e derivados, que tem sido um dos setores com maior rentabilidade na economia nacional desde o início do século XXI. Da mesma maneira, considerando a situação específica da empresa, seu nível de faturamento nos últimos anos teve um crescimento exponencial, passando da 19ª posição no ranking de empresas com maior faturamento no país em 2015 para o 6º lugar em 2019, com o valor de 4,255 bilhões de dólares.
Como é possível que uma empresa localizada em um dos setores mais rentáveis da economia e com um comportamento tão auspicioso possa entrar em default da noite para o dia? Praticamente a única resposta possível é que se trata de uma fraude e uma farsa escandalosa, digna de verdadeiros especialistas no assunto. A respeito delas, os diretores da empresa, Gustavo Nardelli e Alberto Padoán, e o chefe do Banco Nación durante o mandato anterior, Javier González Fraga, devem dar explicações perante os tribunais.
No decorrer dos dias, uma série de manobras e triangulações veio à tona, demonstrando que a Vicentin S.A.I.C. as realizava com outras empresas subsidiárias e empresas offshore, pertencentes ao mesmo grupo econômico, mas localizadas em outros países, ou seja, sob jurisdição estrangeira. Isso não só permitiria que ela cobrisse os preços de transferência para reduzir os encargos e os impostos correspondentes, como o imposto de renda, mas também evitasse certos tributos específicos de nosso país, como os direitos de exportação, declarando em outros países (Uruguai e Paraguai) uma parte da produção nacional, provocando o processo de fuga de divisas.
Entre os mais de 2.600 credores envolvidos, por um lado, há uma diversidade de agentes produtivos, como produtores agrícolas, cooperativas, estocadores etc., que entregaram sua produção à empresa de Santa Fé e não receberam um único peso; nesse caso, a dívida excede a 25 bilhões de dólares. E, por outro lado, os agentes financeiros do capital nacional e estrangeiro. O primeiro acumula uma dívida de 20 bilhões de dólares; o caso paradigmático é o do Banco Nación, que, com um valor superior a 18 bilhões de dólares, representa o principal credor de toda a lista.
Quanto ao segundo grupo (bancos estrangeiros), o valor devido chega a 45 bilhões de dólares e inclui verdadeiros pesos pesados no mundo das finanças globais, como a International Finance Corporation, que integra o Banco Mundial, e outros bancos importantes, como o ING., A subsidiária do banco Tokyo, Rabobank, de Utrecht, entre outros. Essas entidades financeiras formaram um comitê de bancos credores para agir contra a Vicentin S.A.I.C. em tribunais estrangeiros por quebra de contratos internacionais.
Intervenção estatal: “Temos muitas razões”
Nesse panorama, o governo nacional, por meio de um Decreto de Necessidade e Urgência, decidiu que o Estado intervenha na gestão e administração da empresa Vicentin S.A.I.C. por um período de 60 dias e propõe enviar ao Congresso Nacional um projeto de lei declarando a empresa como de utilidade pública, e sua posterior expropriação.
Apesar dos argumentos de alguns setores ligados às principais câmaras e associações do grande empresariado e à mídia hegemônica, a medida não avança na desapropriação de nenhuma empresa, mas precisamente sobre uma empresa que está passando por uma situação extremamente delicada em termos financeiros e que, após ter entrado em default, prejudicando milhares de produtores, cooperativas, bancos públicos e privados, vai inevitavelmente à falência.
Nesse sentido, a decisão do Estado seria, em primeiro lugar, amplamente justificada a fim de preservar os mais de sete mil empregos que dependem do grupo; portanto, a Federação de Trabalhadores Azeiteiros apoiou fortemente a medida. Além do processamento e comércio exterior de grãos, óleos e derivados, a Vicentin participa de outras áreas de negócios, como a indústria do algodão, a indústria do vinho, o setor de carnes e a exportação de mel. Portanto, os postos de trabalho comprometidos não são apenas aqueles diretamente ligados às plantas azeiteiras e de óleos. Em segundo lugar, preservar os ativos e o patrimônio da empresa, já que a situação delicada pela qual a empresa está passando nos levaria a acreditar que ela corre sérios riscos de esvaziamento.
Nesse sentido, a venda de 16,67% do pacote de ações da companhia Renova pela Vicentin Paraguay S.A. para a Oleaginosas Moreno, empresa controlada pela corporação suíça Glencore, em 2 de dezembro de 2019, ocorre só três dias antes declarar default. Após essa operação, o grupo suíço passou a controlar 50% da Renova, empresa que os dois grupos agora compartilham igualmente.
Terceiro, a Vicentin é uma das principais empresas do oligopólio ligada às exportações agroindustriais, em que apenas algumas empresas controlam um dos setores mais poderosos do país em termos econômicos. Segundo informações do INDEC, em 2019, a República Argentina despachou para o exterior em grãos, óleos e subprodutos um valor superior a 28,9 bilhões de dólares – 44,5% do total das exportações do país. As quatro primeiras empresas do ranking (Cofco, Cargill, A.D.M. e Bunge), todas de capital transnacional, concentraram quase metade das exportações (48%), enquanto as dez principais empresas controlavam 91% do volume total exportado.
Durante esse período, a empresa Vicentin S.A.I.C. ocupou o sexto lugar no ranking, controlando 9% do total de exportações do setor. Dessa maneira, sua desapropriação e controle estatal implicariam em uma medida defensiva, a fim de mitigar o processo de concentração e exteriorização do capital em uma área essencial para a economia nacional. De fato, os interessados em adquirir o grupo não eram precisamente as pequenas organizações agrícolas familiares, cooperativas agrícolas que reúnem pequenos e médios agricultores ou trabalhadores organizados para estabelecer uma empresa recuperada, mas algumas das corporações que dominam o comércio internacional de grãos, como Dreyfus, Cargill ou Glencore. Da mesma forma, entre as partes interessadas, havia também propostas mistas compostas de capital local e fundos de investimento, que não seriam necessariamente progressistas para o desenvolvimento nacional.
A possibilidade de ter uma empresa testemunha no comércio exterior de grãos permitiria ao Estado nacional se sentar à mesa com os grandes capitães do oligopólio agroexportador, para obter informações em primeira mão sobre o funcionamento das operações do setor e, em particular, das manobras e triangulações por meio das quais algumas das empresas conseguem contornar os controles de impostos. Do mesmo modo, permitiria intervir no mercado de câmbio, por meio da liquidação de moedas, que tem sido um dos problemas mais prementes para a economia nacional nos últimos anos. Por último, poderia apropriar uma parte da renda agrícola para ser utilizada na busca de outras prioridades.
As reações que não se fizeram esperar
Praticamente no minuto em que se divulgaram as notícias, termos como “Argenzuela” (Argentina + Venezuela), “autoritarismo”, “populismo” começaram a inundar redes sociais, portais de Internet, rádios e canais de televisão. As classes dominantes têm um grande senso de olfato, uma política coordenada e solidariedade de classe. Além da medida específica, eles sabem que, se o resultado for satisfatório, poderia abrir um precedente para outras iniciativas desse tipo. Além disso, quando a crise internacional aprofundada pela pandemia da Covid-19 abalou grande parte da ideologia neoliberal, foram restabelecidas uma série de “velhas ideias” que, pelo menos em nosso país, por décadas, só afloraram em discussões ocasionais no âmbito das esquerdas.
Além de ativar o poder da mídia, grandes organizações empresariais apareceram para marcar o campo. Foi assim que a Associação Empresarial Argentina (AEA), o Fórum de Convergência Empresarial, a União Industrial Argentina (UIA), junto à maioria das entidades do setor agroindustrial, unificaram posições por trás da defesa da propriedade privada, condenando fortemente o Decreto de Necessidade e Urgência presidencial. É que a medida provoca uma reviravolta em uma das peças fundamentais da economia nacional. Não é uma iniciativa qualquer. Estamos falando do setor que gera o maior ingresso de divisas no país. Assim, era de se esperar que os donos da bola não ficassem assistindo o jogo com os braços cruzados.
Como previsível, os setores dominantes também tentaram mobilizar suas bases organizando algumas iniciativas para repudiar a intervenção. Além de uma grande reunião na cidade de Avellaneda, em Santa Fé, sede do feudo Vicentin, as iniciativas no resto do país foram absolutamente pontuais – reunindo o habitual público dos antiquarentenas e alguns outros “libertários”, desorientados das hostes dos economistas liberais Javier Milei ou José Luis Espert – até o último sábado, quando finalmente conseguiram mobilizar parte de sua tropa em diferentes pontos do país.
Isso implica um avanço em termos de soberania alimentar?
Não há dúvida de que a participação do Estado no setor de agroexportação implicaria um avanço em termos de soberania econômica e política, porém, no que se refere à questão da soberania alimentar, surgem algumas questões. Com base no fato de que o termo soberania alimentar se refere amplamente ao direito das pessoas de tomar decisões fundamentais sobre produção e consumo de alimentos (o que produzir, como produzir e para quem), fica claro que a medida é insuficiente. Contudo, de acordo com a citada definição, alcançar a soberania alimentar exigiria discutir as condições da produção de alimentos, sua distribuição e o controle dos meios de produção, entre outros; em suma, implicaria uma série de reformas estruturais somente possíveis dentro da estrutura de um processo revolucionário. Por esse motivo, é difícil que uma medida isolada finalmente resolva o problema.
Dito isto, mesmo que o Estado assuma a administração da empresa Vicentin S.A.I.C. para manter as operações atuais, isso não implicaria necessariamente num revés em termos de soberania alimentar. Já que, a partir da entrada e o controle de divisas, seria possível impulsionar e financiar nós alternativos de produção em transição para a agroecologia, o desenvolvimento de inovações tecnológicas para tais sistemas de produção, circuitos curtos de comércio e o desenvolvimento da produção pública de agroinsumos (fertilizantes, sementes, etc.) para baratear os custos de produção – seriam medidas fundamentais e necessárias para a soberania alimentar.
Além disso, a empresa sob controle estatal poderia melhorar as condições de financiamento para os produtores que lhe enviam sua produção e, inclusive, no que diz respeito ao preço que recebem pelos grãos entregues. Por outro lado, também poderia intervir indiretamente no preço de alguns alimentos no mercado doméstico em que o grupo já possui desenvolvimento (indústria de óleos e azeites, carne, vinho, etc.).
Por esse motivo, essa medida implica a possibilidade de fazer um pequeno (mas fundamental) avanço em termos de soberania econômica e política de nosso país, que, a depender do tipo de projeto da empresa estatal que a impulsione e fundamentalmente de como ela se concretizará na prática, poderá implicar avanços concretos na busca pela soberania alimentar.
Algumas perguntas: expropriação sim ou não?
Finalmente, depois de dias muito intensos repletos de informações cruzadas, operações midiáticas e disputas judiciais, a proposta de expropriação foi colocada em dúvida. Omar Perotti, governador de Santa Fé, apresentou no dia 19 de junho uma proposta ao presidente Alberto Fernández para tentar resgatar a empresa no âmbito do concurso, sem a necessidade de recorrer à desapropriação. Fala-se em uma empresa “nacional mista”, com a participação de produtores e cooperativas.
Por outro lado, um grupo heterogêneo de setores apoia a desapropriação de todo o grupo Vicentin – incluindo todas as suas atividades e não só aquelas relacionadas à firma Vicentin S.A.I.C. – e a formação de uma empresa pública não estatal com participação na gestão de organizações de agricultura familiar, cooperativas de pequenos e médios produtores e trabalhadores vinculados ao setor agroindustrial. Eles também levantam a necessidade de investigar minuciosamente os atos da corrupção pública e privada em torno do caso.
Como sempre, o resultado dependerá, em grande medida, da correlação de forças dos diferentes setores em conflito, tanto aqueles localizados na oposição ao governo nacional, como dentro da Frente de Todos. No momento, diante da mobilização da oposição, não houve reação das próprias forças sociais. Veremos como se desenrolam os eventos nesse filme que parece ainda ter um final em aberto.
* Engenheiro Agrônomo, doutor em Ciência Social; FCAyF-UNLP; membro do Coletivo Crisis Socioambiental – Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.