Em abril de 2019, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu declarou sua intenção de anexar os assentamentos de colonos judeus na Cisjordânia (território reconhecido internacionalmente como palestino), à altura das eleições parlamentares que determinam a aliança que vai formar o governo do país. Com as eleições em abril terminando em um impasse protagonizado pelo partido de Netanyahu, Likud, e o partido de Benny Gantz, da coligação Azul e Branca, novas eleições seriam realizadas em setembro: Netanyahu anunciou dessa vez que pretendia anexar o Vale do Jordão, que é uma parte da Cisjordânia, a depender das eleições parlamentares que ocorreriam naquele mês e serviriam para formar o governo.
Efetivamente, os territórios palestinos reconhecidos como ocupados são fragmentados, com uma pequena parte sob responsabilidade somente da Autoridade Palestina, outra em responsabilidade comum entre Autoridade Palestina e Israel, e ainda uma terceira parte governada pelas forças de ocupação. Netanyahu pretende anexar parte desses territórios ocupados – a proposta contempla praticamente a anexação da terceira parte, chamada de “área C”, que equivale a 61% da Cisjordânia. O Vale do Jordão tem metade da terra arável da Cisjordânia.
No impasse das eleições de abril, o tema de dissensão foi a questão religiosa. Netanyahu, pressionado por acusações de corrupção, tentou usar o peso das questões de Estado, aquelas de ordem internacional, a seu favor, mobilizando através de uma retórica guerreira e de sobrevivência. A campanha e suas falas enfatizaram a ameaça externa: Irã, Hezbollah, Hamas. Na década passada, Netanyahu apoiou a decisão de criar um Estado palestino “mas sem exército”, com a segurança controlada por Israel (seria isto um Estado?) – agora tem um discurso mais agressivo, dizendo que seus opositores atraem o desastre pois,segundo ele, “criarão um Estado palestino”. No entanto, ao fazer declarações sobre anexações nas vésperas das eleições, ele não só trouxe mais radicalismo para a disputa eleitoral, como alterou a dinâmica internacional. Como esse tipo de declaração provocativa, Bibi movimenta as placas tectônicas da geopolítica e obriga o eleitorado se posicionar em relação às críticas e pressões que vêm de todos os lados. É por este caminho que ele aumenta as apostas, se coloca acima das acusações de corrupção, se identifica com a própria nação em perigo, como um herói irredentista lutando contra tudo e todos. O fenômeno Netanyahu não é só o do “populismo”, mas o de um cesarismo moderno, que é articulado por realidades internacionais e com apelos de mobilização.
Do ponto de vista eleitoral, sua postura se ajusta tanto aos falcões de guerra como aos nacionalistas e os religiosos. Apesar desses elementos de cálculo racional, o próprio Netanyahu é adepto desse projeto, que já vem de sua adesão a uma militância política familiar. A radicalização de posições anti-palestinas também faz parte de uma dinâmica maior do que o primeiro ministro, com forças políticas como a de Avigdor Lieberman empurrando um discurso radical de extrema direita e propostas diversas para “solucionar a questão palestina” (o que já suscitou até propostas bizarras como dividir a Cisjordânia entre pequenos emirados, além de várias formas de anexação).
A paz relativa da última década – pelo menos no que diz respeito a ações de resistência promovidas por palestinos, não no que diz respeito a ataques israelenses contra Gaza e abusos contra a população da zona ocupada – não serviu para relaxar a política israelense, pelo contrário, o clima ficou mais agressivo e ainda parece reverberar uma ideia de ameaça existencial colocada pela Segunda Intifada, revolta palestina que desmoralizou os Acordos de Oslo na sociedade israelense.
A política de assentamento como uma política estratégica, radical e ofensiva de expansão, não é nova, e foi defendida por Netanyahu ao longo de sua carreira. No primeiro ano de seu primeiro mandato, o primeiro ministro respondeu sobre os assentamentos da Cisjordânia para o jornalista Christopher Walker, correspondente do The Times: “O sr. Arafat deve dizer a seu povo, claramente e sem rodeios, que a paz não será alcançada com base nas fronteiras de 1967” e que “Israel não ficará reduzido a um frágil Estado de gueto, às margens do Mediterrâneo”. Martin Gilbert, em seu enorme livro de 1999, já falava como “Netanyahu planejou a anexação a Israel, da maior parte do território tomado da Jordânia na guerra de 1967”, incluindo os principais aquíferos da região, grande parte dos territórios de divisa e um corredor entre Jerusalém e o Rio Jordão que dividiria a Cisjordânia ao meio¹. Além disso, os momentos de expansão de colônias na Cisjordânia foram também aproveitadas por interesses capitalistas, tanto de empreendimentos agrícolas como da especulação imobiliária.
Martin Gilbert narra em A História de Israel (publicado em português pela Edições 70, em 2010):
“A política de Begin, de permitir a proliferação de colônias na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, estava dando bons resultados rapidamente. Sharon era um dos maiores incentivadores dessa política. Entre 1977 e 1983, foram estabelecidas 186 colônias, quarenta e uma delas em 1983. Isso elevou o número de colonos para vinte mil, que viviam perto, e às vezes muito perto, de uma população árabe de mais de um milhão: setecentos e vinte um mil e setecentos, na Cisjordânia, e quatrocentos e sessenta e quatro mil e trezentos, em Gaza. […] Durante os anos de 1982, o governo anunciara planos de aumentar a população das colônias para cem mil pessoas, até o fim da década. […] O aumento de colônias na Cisjordânia na década de 1980 foi estimulado por incentivos financeiros dados pelo governo a todos os que se mudavam para a Cisjordânia. A essas pessoas eram dadas casas maiores, além de benefícios fiscais, tudo o que não teriam vivendo em qualquer lugar de Israel. Isso tornava as novas colônias especialmente atraentes para diversos grupos: imigrantes russos, muitos dos quais tinham pouco dinheiro e uma atitude hostil em relação aos palestinos; fanáticos da ala direita vindos dos Estados Unidos, que se viam como marcadores de uma nova fronteira, além de pessoas sem qualquer razão ideológicas para viver na Cisjordânia, mas que encontravam um grande estímulo na habitação subsidiada, especialmente jovens casais israelenses, para quem o preço de apartamento em Tel Aviv ou Jerusalém era proibitivo.”
Em março de 1982, a Organização Sionista Mundial também anunciou, através do presidente adjunto Matityahu Drobles (membro do Likud), que no próximo ano haveria um aumento de novas colônias na Cisjordânia e que 33 milhões de libras esterlinas haviam sido reservadas pelo governo de Israel para construção de dezesseis colônias civis e quatorze para colônias de soldados. Além disso, o partido de Menachem Begin – primeiro ministro e líder da direita revisionista – o Herut, era dedicado à expansão das fronteiras de Israel e tinha suas próprias colônias em 1980, sendo quatorze delas nos territórios ocupados das Cisjordânia, que viam como objeto de um “imperativo de colonização”. O Herut se fundiu ao Likud em 1988, mas o impulso de colonização vinha com ainda mais força de outra organização política, o Partido Religioso Nacional.
Desde que Donald Trump assumiu a presidência dos EUA em 2017, a atividade de colonos construindo assentamentos na Cisjordânia aumentou em 25%, com 6800 novas unidades construídas desde então. Existem mais de 427 mil colonos na Cisjordânia de forma geral e 218 mil em Jerusalém Oriental, que já são tratados como “cidadãos comuns” por Israel. No seu último mandato, Netanyahu gastou US$ 252 milhões por ano em assentamentos. O assentamento que mais cresce na Cisjordânia é Modiin Illit, um enclave ultra-ortodoxo com mais de 60 mil habitantes. Diversos dados mostram que a taxa de crescimento populacional dos assentamentos é o dobro da média de Israel. Politicamente, colonos consideram Netanyahu um aliado pragmático, que não é radical o suficiente.
O comportamento israelense em relação a territórios ocupados é condenado há décadas no plano internacional e por seus vizinhos árabes. A resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU declara que a aquisição de terras por guerra é “inadmissível”, exigindo a retirada das forças israelenses dos territórios ocupados e reconhecendo o direito dos palestinos a um Estado. A resolução 181 (II) da Assembleia Geral das Nações Unidas de 1947 defendia a internacionalização da cidade de Jerusalém; a resolução 248 do Conselho de Segurança considera ilegal a declaração de Jerusalém como capital indivisível de Israel; tanto a Assembleia Geral, como o Conselho de Segurança e a Corte Internacional de Justiça consideraram, em diversas ocasiões, Jerusalém Oriental território palestino sob ocupação israelense.
No jornal Haaretz, vemos uma coluna de opinião: se Israel anexar a Cisjordânia, então será possível realmente falar de apartheid. Antes, uma petição foi publicada na edição de 26 de junho do jornal declarando exatamente a mesma coisa, e com a assinatura de políticos centristas que dificilmente aceitaram essa definição em outras condições. Pode se criticar um certo legalismo aqui, já que não é a primeira vez que se fala de apartheid na Palestina e que os territórios ocupados trazem em si uma realidade de discriminação contra uma sociedade palestina que é subordinada pela israelense, estruturada como um gueto ligado à sociedade israelense porém de população marginalizada e policiada, havendo uma separação formal entre o que é “Palestina” e “Israel” – até sionistas que relutam em falar da situação atual como de apartheid reconhecem que no caso da anexação a palavra será inevitável. As palavras e o elemento declarativo da lei não podem ser subestimados – defensores da anexação disfarçam essa afirmação de soberania também com legalismo, como se a anexação fosse algo “cotidiano” e argumentando que “pouca coisa vai mudar”. A realização insofismável de um apartheid é enterrar o projeto de dois estados ao mesmo tempo que não se fala de um único estado democrático ou binacional, mas sim de um estado judeu – isto é, um estado judeu dominando uma massa de árabes sem Estado. A preocupação dos críticos israelenses também é demográfica: as anexações podem criar uma maioria árabe, uma população árabe que supera a população de judeus de Israel.
Para refletir sobre o que pode acontecer com um exemplo, podemos olhar para o que ocorreu depois da anexação de Jerusalém Oriental, que foi ocupada militarmente em 1967, declarada capital pelos israelenses por uma lei de 1980 e novamente reivindicada como capital por Netanyahu, que começou a tomar medidas para que tal reivindicação avançasse, a começar pela transferência de embaixadas estrangeiras. Em 14 de maio de 2018, os Estados Unidos reconheceram Jerusalém como a capital de Israel. Jerusalém se tornou uma cidade pobre e militarizada. Depois de 1967, muitos palestinos não tiveram sua cidadania reconhecida, sendo parte de uma minoria de 26% da população da cidade naquela época (a população judaica havia crescido muito desde 1920 com a terceira grande migração europeia); hoje são 40% e enfrentam discriminação. Os que tentam solicitar a cidadania geralmente fracassam, dependem de serviços precários fornecidos por Israel, vivendo em periferias abandonadas (como Kafr Aqab) e sujeitos ao controle de movimento na cidade, além de discriminação nas permissões urbanas para construção. Apesar de discursos sobre equalização de direitos na cidade, os palestinos ficaram relegados à condição de segunda e terceira classe.
Netanyahu já conseguiu muitos sucessos na política com uma estratégia agressiva. Entretanto, o unilateralismo cobra seu preço. Israel já está pagando por simplesmente falar da anexação. Já sofre resultado imediato no campo: a Autoridade Palestina cessou contatos e cooperação na Cisjordânia. Nos Estados Unidos, políticos do Partido Democrata começam a cogitar medidas como condicionar a ajuda financeira e militar que é fornecida a Israel. Mesmo que o governo de Netanyahu ou outra liderança volte atrás nesses discursos, dificilmente a situação voltará para um estado anterior ou ficará muito mais calma.
Com a pressão, Netanyahu deve optar por uma proposta de “anexação gradual” ou “parcial”. Isso não quer dizer que a anexação sofreu uma derrota – pelo contrário, já que a pressão pela anexação por uma maior quantidade de terras pode ser um blefe para conseguir anexar um pouco menos; na prática, a anexação via assentamentos já vem ocorrendo e Netanyahu está transformando o status quo anterior, que já era ruim, em algo “mais aceitável” quanto à aplicação de soberania. Uma anexação, menor ou “parcial”, de toda forma é uma vitória que indica anexações futuras, principalmente se não houverem consequências para Israel.
Mesmo o plano completo (anexação da área C, que é maior parte do território ocupado) tenta usar argumentos sobre parcialidade, dizendo que o que resta será para um “Estado palestino realista”, o que parece acima de tudo retórica, já que plano de anexação unilateral já é uma sabotagem do processo de criação de um Estado palestino, inclusive essa ideia de uma Palestina ainda mais reduzida e quebrantada.
Os assentamentos já são posicionados estrategicamente para sabotar as aspirações nacionais palestinas, quebrar a contiguidade de comunidades palestinas, tomar seus recursos econômicos, além de servir como base para eventuais ataques violentos contra pessoas ou destruição de propriedades.
O status quo é frágil e pode acabar em diversos tipos de desastre. Os colonos não são pequenos grupos de aventureiros, mas uma realidade política, demográfica e sociológica – para um governo francamente expansionista como atual, eles são uma arma, a base no campo estratégico que justifica as ações governamentais; se assume um governo menos disposto, eles são um fato consumado e um impasse estratégico. Existe muito ceticismo em relação à força política de qualquer governo para retirar os colonos, e eles de fato podem criar uma situação de guerra civil no campo israelense e deflagrar uma onda de violência étnica contra os palestinos – isto pode ocorrer com um movimento “separatista” ou irredentista para criar uma “República da Judeia e Samaria”.
Os planos de anexação encontram oposição internacional e doméstica. Críticos listam consequências políticas, bélicas e humanitárias, apelando desde as razões mais utilitárias até a discursos éticos. No dia 7 de julho, o jornalista Peter Beinart publicou um ensaio no Jewish Currents renunciando à defesa de dois estados para defender a solução de um único estado binacional, em clima de reconciliação e igualdade; o texto vem causando um grande debate entre os judeus anglófonos. Para Beinart, sua posição é consequência das ações de Israel que sabotaram a criação de um Estado palestino, então cabe pensar em uma solução democrática, baseada na ideia de igualdade e inspirada em modelos de compartilhamento de poder, como aquele que conseguiu o processo de paz na Irlanda do Norte (entre unionistas e republicanos) – isto é, pensando em formas que mantivessem representação nacional para os judeus para evitar que sejam “atropelados” por uma maioria árabe em sua existência política. Para todos os efeitos, Beinart vê a opressão e a violação de valores humanos e religiosos como um preço muito caro a se pagar por um Estado nacional.
A posição de um Estado binacional é recebida com muita reticência, por trazer o fantasma do fim de uma soberania judaica, fim de um Estado judaico, a substituição dele por um Estado árabe. Em 2003, quando no discurso público ocidental praticamente não se falava de uma solução democrática de um Estado, Tony Judt escreveu um texto defendendo um único Estado, de acordo ideais liberais de superação do nacionalismo, fronteiras abertas e direitos individuais, e foi muito mal recebido por outros comentadores judeus pró-Israel – sua argumentação tinha aspectos de inocência misturada com má política, como atribuir a agência principal aos Estados Unidos da América, que para ele poderiam fornecer tropas para proteger judeus e palestinos.
O problema é a vontade de israelenses e palestinos em se comprometer com uma solução desse tipo, ainda mais quando levamos em conta as desproporcionalidades em jogo (a posição de força dos israelenses em um campo, sua desvantagem demográfica em outro, por exemplo). Por mais que existam forças políticas de alguma relevância defendendo cooperação, paz e ideias democráticas, basta olhar à realidade que temos agora: os palestinos enfrentam uma perspectiva ainda mais desoladora. Existem israelenses dispostos a pegar em armas para tomar terras palestinas, inclusive às custas de cometer crimes contra seu próprio país. Mesmo Beinart cita em seu ensaio pesquisas que mostram que algo entre um terço e a metade dos judeus israelenses acreditam que palestinos deveriam ser encorajados ou forçados a sair da Cisjordânia. O historiador de esquerda Shlomo Sand, por sua vez, já declarou ceticismo nesse tipo de solução por “Israel ser uma das sociedades mais racistas do ocidente”.
O intelectual Yehuda Kurtzer publicou uma resposta para Peter Beinart na revista Tablet, argumentando que a soberania política é uma virada histórica revolucionária do povo judeu e que não devem abrir mão dela, mas levá-la a sério, “o controle da praça pública a sério”, o que incluiria as relações morais com os palestinos, que constituem um outro povo com uma outra sociedade. Nesse caso, ele defende a auto-determinação política e militar, mas diz que a “redenção do povo judeu, e a integridade de nossa história nacional, não pode ser completa com a opressão contínua do povo palestino, a negação da sua história e cultura, e impedimento de sua própria redenção”.
Mais profunda do que as divisões entre intelectuais judeus norte-americanos da diáspora é a divisão na própria consciência israelense, que passa por uma disputa de identidade. A identidade europeia pensada pelos primeiros sionistas está em crise e não só pelas contradições da dimensão colonial do projeto e sua violência. Uma massa de novos imigrantes, oriundos principalmente da antiga URSS a partir dos anos 90, trouxe consigo outras visões e costumes, populações que sofreram discriminação (principalmente religiosa) mas que serviram de base para o renascimento da extrema-direita nacionalista. O grupo religioso ultra-ortodoxo Haredi também suscita outras dúvidas e tensões, sendo seguidores estritos da lei religiosa judaica que não se referem à ideologia sionista secular, se recusando a prestar serviço civil e militar; 30% dos colonos judeus na Cisjordânia são ultra-ortodoxos. De forma geral, o discurso religioso passa a entrar mais na vida pública e a influenciar movimentos como o de colonização de terras palestinas ocupadas (que têm aderentes haredi, mas uma representação maior de judeus ortodoxos modernos, referidos na sua identidade religiosa como dati).
Em seu livro Herança: Civilização e os Judeus, de 1984, o diplomata e acadêmico israelense Abba Eban disse que o controle territorial trazido pela ocupação da Cisjordânia trazia benefícios estratégicos para Israel, mas também implicava no controle de habitantes de uma entidade nacional distinta, separada de Israel, o que mudaria o caráter da sociedade israelense para uma “mantida pela força física”. Para ele, era uma escolha entre expansão territorial ou ter um “Estado mais compacto” para manter um certo tipo de sociedade, algo que seria a grande escolha dos anos 80 – sucessivos governos israelenses fizeram essa escolha desde então, com a balança pendendo para o lado expansionista.
Independente das crises de identidade, o futuro do projeto sionista na Palestina depende de confrontos políticos pela soberania. Por sua singularidade histórica, a situação na Palestina e a consecução do projeto sionista geram uma espécie de grande laboratório político – pelo menos, um laboratório de observação. Indissociável da questão da estatalidade, vemos uma imagem que nos permite pensar em soberania como um movimento, de maneira distinta da compreensão da filosofia política clássica e de nossa própria tendência de pensar nela como um atributo inerte, “ter ou não ter soberania”. O problema da soberania aparece como dinâmica e potência, além de se desenvolver em momentos decisivos que são construídos em função das exceções – isto é, a situação excepcional que se impõe e demanda a decisão como resposta, ou a situação excepcional que é imposta a partir da decisão de um dos atores.
O movimento revisionista, de direita e iniciado por Lev Jabotinsky, se diferenciou do utopismo e da política prefigurativa da esquerda sionista ao enfatizar como prioridade uma mentalidade totalmente formada por uma “Razão de Estado” do movimento nacionalista judeu – apesar das correntes liberais e socialistas também buscarem a formação estatal, o revisionismo depura e destila o sionismo para esta direção (em nome do que Jabotinsky chamava de “monismo”). O movimento pensava em função de fronteiras e a aquisição de força armada, rejeitando propostas sociais inovadoras, por isso sua atuação, cristalizada acima de tudo na militância de universitários, priorizava a organização militar e intervenções decisivas na forma de ações armadas. O sionismo de esquerda, entretanto, não estava alheio aos problemas da soberania, só lidou com eles de outra forma, também rejeitando a atuação diplomática dos velhos liberais da Organização Sionista Mundial e da Agência Judaica. Enquanto se multiplicavam iniciativas prefigurativas de diversos tipos de colônias rurais, como os kibbutzim – e que já implicavam na formação de milícias -, Ben Gurion dirigiu uma estratégia de organização política baseada na federação sindical Histadrut, que serviu como estado paralelo e base para a organização de uma milícia nacional (Haganah).
O mesmo pode se observar nas formas diversas do movimento palestino: a OLP (Organização de Libertação da Palestina) como um estado paralelo, inclusive exilado de seu território, mas organizando palestinos em campos de refugiados e preparando um exército para retomar a Palestina; a luta palestina como uma luta nacional árabe contra um projeto colonial, articulada por movimentos e governos de diversos países, fonte de legitimidade para partidos de outros países; a Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) transformando sua luta em nexo a uma luta internacional contra o imperialismo, organizada em uma rede internacional; o Hamas e sua combinação de resistência com islamização como forma de transformação da sociedade.
A Autoridade Palestina saída dos Acordos de Oslo é um órgão provisório, um “mini-estado”. Sua territorialidade é questionável – menos do que controlar território, ela tem uma atuação limitada, porém tem uma pequena burocracia, algum dinheiro e um serviço de segurança; acima de tudo, possui considerável legitimidade internacional, política e diplomática. Então, pode não ter a soberania como atributo definitivo, como auto-determinação política e militar livre de intervenção, mas possui uma condição ligada à soberania, como potência.
Ainda que as críticas feitas tanto por movimentos radicais rejeicionistas como por intelectuais libertários ao estabelecimento da Autoridade Palestina possam ter validade, devido a uma série de vantagens que Israel tirou de seu estabelecimento, não se pode pensar que a AP é fruto de uma conspiração perfeita do sionismo, feita sob medida para atender interesses israelenses. Neste caso, não precisamos recorrer à história das negociações e à formação desta entidade, mas adotar uma compreensão da política em contraposição ao erro comum de confundir o princípio do cui bono (quem ganha?) com organização perfeitamente intencional da realidade. A Autoridade Palestina é produto do confronto entre vontades, que se traduz concretamente no choque entre intenções racionais, o ajuste de expectativas após o choque e adaptação das intenções de acordo com a realidade estratégica dada pelo confronto – a escalada do conflito produz situações e resultados inesperados, com a sorte e sentimentos como a hostilidade exercendo um papel próprio além dos cálculos racionais e medidas de força.
Mesmo a menor das anexações é uma movimentação de soberania – não só a ampliação da soberania, do poder de jure e de facto da entidade estatal israelense, mas um golpe contra as possibilidades de soberania e legitimidade de um Estado palestino.