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Mídia, política e o liberal nosso de cada dia

Devemos pensar como as posições tomadas por certas sensações de midia contribuem para criar um campo político.
Devemos pensar como as posições tomadas por certas sensações de midia contribuem para criar um campo político. Por André Ortega | Revista Opera
(Foto: U.S. Air Force / Kylsee Wisseman)

Dia após dia, nós temos que engolir um liberal, cada vez mais ouvindo explicações que atestam que isso seria perfeitamente normal, como se estes liberais fossem nosso pão, nosso sustento, às vezes até mesmo o nosso vinho. Neste período em particular, eles são apresentados como heróis críticos da era Bolsonaro.

Em maio, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, teve um confronto com o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, o general Augusto Heleno. O pano de fundo era a possibilidade de que o celular de Jair Bolsonaro e seus filhos fosse apreendido por uma investigação sobre interferência política na Polícia Federal. O pedido havia sido encaminhado à Procuradoria Geral da República por Celso de Mello, e Heleno respondeu publicamente dizendo que isso poderia trazer “consequências imprevisíveis”. Neste confronto, surgiu uma mensagem de Celso de Mello falando de perigos antidemocráticos, mencionando o fim da República de Weimar pelas mãos do movimento nazista; do outro lado tivemos militares apoiadores do general assinando uma carta conjunta que falava até de uma possível guerra civil no Brasil.

Mais tarde, em agosto, uma matéria da Piauí destacou que em maio Bolsonaro realmente falou em intervir no STF usando tropas do Exército, em uma reunião que se deu principalmente com ministros. De acordo com a matéria, todos os generais concordaram com o princípio que motivava Bolsonaro, mas alguns se esforçaram por dissuadir a intervenção militar contra a corte suprema. Militares, intervenções: a carta no coturno cada dia mais cotidiana.

Talvez por terem chegado à condição de banalidades, o golpismo e atuação do partido fardado nem sempre atraem muita atenção sem disputar com outras prioridades, mesmo nos espaços políticos.

Naquela mesma semana, o youtuber Felipe Neto, especialista em entretenimento mas também o que se costuma se chamar de “influenciador”, – condição que parece existir a partir da união de uma grande quantidade de seguidores em redes sociais com um contato direto com eles através de comentários semi-informais sobre um ou mais assuntos (i.e. sem usar o formato coluna, por exemplo) – foi ao antigo programa jornalístico Roda Viva, onde falou sobre suas opiniões a respeito da política nacional.

Neto suscitou uma série de admirações na esquerda e em um espectro geral de oposição a Jair Bolsonaro, por ser ele mesmo um oposicionista e ter feito ataques incisivos contra o presidente. Nem todo mundo aceitou bem os posicionamentos de Felipe Neto, no entanto: dentre os motivos, estariam tanto atitudes que marcaram o seu trabalho como comunicador – que nesse caso era criticado por ser nocivo de alguma forma  – como críticas diretas contra seu posicionamento político liberal. Sintomático desse posicionamento político foi, na entrevista, sua referência ao filósofo Carl Popper, ao defender a ideia de “não-tolerância para os intolerantes”, ou ainda sua defesa não comprometida de um centro que pode ser tanto Ciro Gomes como Amoedo.

Contra as críticas, rapidamente apareceram defensores de Felipe Neto saídos dos seus novos admiradores de esquerda, usando habilidades retóricas bem lapidadas em confrontos doutrinários. Os defensores usaram argumentos que em geral partem do pressuposto de que é positivo que uma pessoa popular ataque Bolsonaro; que não é correto criticar Felipe Neto quando ele está em uma “frente ampla” contra Bolsonaro; que Felipe Neto tem um público grande, diferente, é um comunicador muito popular; que não se deve misturar o trabalho de Felipe Neto e seus problemas para atacar ele no momento em que ele faz algo correto (atacar Bolsonaro); que atacar Felipe Neto era coisa de minorias doutrinárias e sectárias.

Semelhante debate é um acontecimento político que oferece reflexões importantes sobre formas de pensar que ouvimos aí afora.

Frente ampla ou campo político?

Esta discussão sobre figuras como Felipe Neto pode ser entendida como uma discussão sobre a adequação delas a um momento político como o que vivemos. O argumento primário dos defensores é de que é positivo para um movimento, em uma situação de pressão, que uma figura pública e uma celebridade coincidam com a sua posição, especialmente na oposição a um mal maior, que no caso seria o governo de Jair Bolsonaro. Este argumento é forte e um tanto quanto evidente, mas ele não impede a formulação de problemas posteriores – não só não impede, como não deveria impedir, nem com justificativas sobre “prioridades”.

Uma posição acertada não torna a celebridade imune a críticas políticas. Não acredito nisso por causa de um princípio de liberdade de expressão em abstrato, e sim considerando que esse envolvimento é relevante para a construção de campos políticos e bases de poder. Então sim, concordamos com os que apelam para estratégia quando justificam a defesa de figuras como Felipe Neto, porém devemos ser ainda mais consequentes ao pensar no sentido estratégico dessas posições.

Se não as desprezamos como superficiais, devemos pensar que as posições que são tomadas por Felipe Neto – e outros – contribuem para a construção de um campo político. E não existe um campo político puro da “oposição a Jair Bolsonaro” que se reduz completamente à negação do presidente. Um dos campos que quer se fortalecer e se constituir atacando Bolsonaro é o do liberalismo.

A oposição a Jair Bolsonaro e a própria degeneração do governo oferecem uma perspectiva para forças que podem triunfar em cima dos escombros de Bolsonaro. E boa parte do que Felipe Neto diz parece compatível com os valores professados por um campo político liberal que sonha com uma era pós-Bolsonaro.

Reparem em valores como “centrismo, neutralidade, racionalidade, técnica”. Esse conjunto de valores não será traduzido como uma espécie de “governo de cientistas” (que já não seria boa coisa), mas se concretizará no fortalecimento do judiciário militante a la  Partido da Lava Jato, dos militares do Partido Fardado, dos austericidas aparentados do Paulo Guedes que formam a Comunidade Neoliberal e possivelmente de falcatruas oligárquicas como o Partido Novo.

Alguns podem responder falando de um setor democrático do liberalismo, e outros vão mais longe, difundindo teorias sobre como Bolsonaro seria estranho ao liberalismo pois este seria baseado em uma vocação supostamente democrática. O problema é que nenhuma das duas posições, sendo a segunda a mais equivocada, deve nos prevenir de questionar o liberalismo. Ao se concentrar em uma definição de liberalismo “democrática” contrária a Bolsonaro, perdem de vista a formação liberal do próprio bolsonarismo. A defesa dos valores individualistas, da democracia e das instituições, contra as ameaças populistas, coletivistas, comunistas e revolucionárias – esse é um discurso presente tanto no bolsonarismo, como no seus precedente militarista e no status quo liberal centrista e conservador do Brasil das últimas décadas. Os ataques contra o STF são mais sub-reptícios do que uma rejeição da democracia ou a afirmação de conspirações e fake news, mas tentam construir um discurso sobre legitimidade, aparelhamento, corrupção e liberdade; a oposição de Bolsonaro às medidas anti-pandemia foram justificadas em nome da liberdade; seu discurso liberal na economia fala mais de valores de livre mercado e autonomia individual do que de eficiência.

Assim é o Uribismo na Colômbia, um defensor do estado liberal e de reformas para a América Latina que transforme os países de acordo com o modelo de sociedade dos Estados Unidos. A pimenta não está em uma “doutrina fascista” per se, mas na oposição radical contra a guerrilha comunista e na ideologia de contrainsurgência. Bolsonaro pode não ter a inteligência, articulação ou a memória exímia de Álvaro Uribe, mas nessa formação política são iguais.

Todas as legiões de Felipe Neto

Nós poderíamos discutir figuras da política e do jornalismo que são francamente liberais, até mais liberais do que Felipe Neto, mas há uma razão especial em usá-lo como exemplo, mesmo que ele possa vir a ter posições melhores ou piores no futuro. É que ele é uma celebridade e uma figura pública cheia de seguidores na rede, o que faz com que exista toda uma categoria especial de apologia à sua posição como uma posição tão poderosa que chega a ser mágica, a posição de um homem que é capaz de tocar corações humanos.

A dedução que alguns fazem é de que Felipe Neto é famoso, portanto sua ajuda é mais do que bem-vinda, pois a fama seria alguma espécie de poder. Um poder acima das coisas físicas, uma influência, um poder mágico.

Sim, via de regra é melhor ter alcance, do que não ter; melhor ser ouvido do que ser ignorado. O emissor da mensagem, no entanto, não tem controle sobre a recepção. Independente deste problema, nosso questionamento deve se concentrar na hipótese de que Felipe Neto seja eficiente neste caso. Se ele tem uma posição poderosa, este é só mais um motivo para se ter um olhar crítico e além do curto prazo, capaz de perceber o potencial político dessa fala para além de sua oposição a Jair Bolsonaro.

Pudemos ler um artigo que falava de como os milhões de seguidores de Felipe Neto e outros influenciadores, artistas e famosos, somam muito mais do que qualquer meio de esquerda e, na verdade, somam números maiores até do que a votação a Jair Bolsonaro. Provocativo, perguntava: “quem é a esquerda na fila do pão?”

Há apego a uma ilusão democrática que reduz a política a índices de opinião e números. Então, “Bolsonaro tem um núcleo de apoiadores de 35 milhões, Felipe Neto tem 38 milhões de inscritos no YouTube”; isso diz muito pouco e é a matemática da má política.

As figuras midiáticas podem ser relevantes naquilo que lhes compete, a comunicação, mas essa comunicação está num plano político maior do que boas intenções ou a oposição a Bolsonaro. Quando começam a perguntar “quem é a esquerda na fila do pão?”, potencialmente estão questionando a própria existência dessa força política em prol de personalidades midiáticas que seriam mais atuais – os liberais vão ser os primeiros a fazer isso por identificar essas figuras com sua ideologia e programa político, antes de pensar na “prioridade de combater Bolsonaro”: só apelam para essa prioridade como forma de bater nos adversários políticos (a tal “esquerda”) com um porrete moral a partir da “ameaça maior”.

Felipe Neto comunica até com sua estética: o que é irônico é que boa parte desses “realistas” também só estão reproduzindo outro tipo de prioridade estética e ideológica, em que Felipe Neto, com seu jeito juvenil e progressista, parece algo aceitável – para reparar na ilusão, é só ver como se comportam perante outras figuras (como José Luiz Datena, recém filiado do Movimento Democrático Brasileiro, que não é muito elogiado e nem tem muitos advogados falando sobre o fato dele ter um programa no final da tarde que atinge altas audiências e falar com “gente de fora da esquerda”).

Como dissemos, alcance não implica em eficiência: celebridades são seguidas primariamente por causa do entretenimento, não podemos pressupor como vai ser a recepção à mensagem política delas. Entretanto, mesmo que sejam eficientes, isto não substituirá o posicionamento político consequente, bem construído, que não deve ser pensado em função de números atomizados; além disso, essa eficiência pode ser maldita e esse caráter maldito vira uma profecia auto-realizável quando passamos a sugerir que celebridades são mais importantes do que os que fazem a política.

Afinal, quem é a esquerda na fila do pão?

Não sei, quantas divisões tem essa tal de esquerda? E Felipe Neto, quantas legiões comanda?

Afinal, no Brasil estamos falando de golpe de estado e de guerra civil. É importante chamar as coisas pelo nome. Não quero reduzir a questão ao problema das armas, mas é preciso olhar por esses parâmetros. Muitos que estão fazendo a disciplinada defesa de Felipe Neto e distribuindo lições de realismo estão falando de “ameaça às nossas vidas”, de fascismo e até de nazismo, então é justo perguntar esse tipo de coisa. É um exagero perguntar das divisões de Felipe Neto, até porque influência política também conta, mas é um ad absurdum que serve para nos lembrar em que pé estamos, em que situação estamos.

A roda das ilusões

Muitas vezes, quando falamos de “celebridades com opiniões democráticas”, pressupomos um ideal de normalidade na arena pública, enquanto o tecido social vem sendo esgarçado pela introdução de um discurso violento e de limpeza (o ministro dizendo que prenderia todo mundo e que odeia comunistas).

Existe uma tendência mais forte na esquerda de se colocar a reboque do liberalismo, como sintoma de uma atitude desesperada, intimidada, acostumada a perder. O problema é que os desesperados se disfarçam de realistas. De repente, se cobra unidade a partir de questões como essa, “não poder opinar sobre tal celebridade que está contra Bolsonaro”, o que é só uma panaceia psicológica de gente aterrorizada. Me lembro do sr. Pablo Iglesías, um dos fundadores do partido espanhol Podemos, que disse em algum debate público – depois de questionado por um veterano sobre simbologia revolucionária – que estava “cansado de perder”. Por supuesto, ninguém gosta de perder – e ficar a reboque de liberais não me parece ter gosto de vitória.

O argumento dos pretensos realistas é um oxímoro: de um lado querem dizer que a esquerda não atinge ninguém e não se compara com as personalidades de mídia, do outro querem cobrar essa mesma esquerda por ser “irresponsável” quando critica um Felipe Neto ou algum cantor, como se sua posição tivesse um impacto decisivo no sucesso de mensagens de uma celebridade virtual.

Eles querem fingir que se preocupam com a política em primeiro lugar, que sabem organizar prioridades estratégicas, mas não percebem o quanto são moralistas e sentimentais. São eles que esquecem que política vem em primeiro lugar e confundem suas considerações morais, fruto do desespero e da sensação de isolamento, com considerações políticas, enquanto reclamam quando surgem até mesmo ressalvas morais como a de jovens familiarizados com o trabalho de Neto desde o início e que não acham sua nova face muito digerível. Podem insistir que colocam sim política em primeiro lugar, ao pensar na prioridade de derrubar Bolsonaro, mas se essa consideração prescinde do problema do campo político e das consequências, me parece que continua sendo um desvio da ordem de prioridades. A moral continua tendo dignidade na hierarquia de valores e ela vai nos orientar a ideias firmes sobre como Bolsonaro deve cair, mas a política vem em primeiro lugar como necessidade, como meio, não como fim – dizer que Felipe Neto é “bom” pois Bolsonaro deve cair é ter concordância sobre o fim e não discutir o problema do meio e as consequências não intencionadas que ele pode trazer.

Se pensarmos dessa maneira, olhando a questão de Felipe Neto como exemplar, porém só a ponta do Iceberg, poderemos perceber comportamentos similares quando pontuamos questões políticas sobre figuras como Reinaldo Azevedo. Fazer considerações básicas de identificar o posicionamento político dele hoje e lembrar do que construiu sua carreira no passado, inclusive coisas inconvenientes para uma figura pública que tenta se desviar do bolsonarismo e do olavismo. Os pseudo realistas acham que são realistas quando constroem um templo para a própria fraqueza, mas não são nem justos e nem precisos, pois são incapazes sequer de dar a devida consideração que compete a cada um.

Em sua decadência, se agarram à celebridade como um salva vidas, enquanto a difamação, os ataques e o rosnar viram lugares comuns. Essa disposição não é sinônimo de vitalidade, nem de atualidade histórica.

Se argumentam que “as pessoas estão sendo educadas”, automaticamente anulam o argumento do objetivo de curto prazo que é derrubar Bolsonaro e legitimam mais ainda um debate sobre ideologia. Estas figuram “educam” muito mais com suas imagens centrais do que com suas opiniões políticas (acessórios), sendo que Felipe Neto não conquistou sua posição espalhando virtudes republicanas, mas sim com um trabalho de fofocas, brincadeiras e ostentação consumista.

O que os liberais estão conscientes é de que isso serve precisamente para reforçar um certo establishment liberal através do glamour; os liberais desejam esse tipo de “arena pública”, eles adoram a convergência de uma Hollywood com jornalistas cretinos e intelectuais orgânicos do capitalismo para criar uma espécie de Olimpo social. Produtos ideológicos progressistas são uma forma da hegemonia liberal se reinventar, em uma lógica igualmente capitalista na produção e na lógica consumista em relação à cultura. 

Estamos lidando com um movimento histórico que não tira sua força de figuras com Felipe Neto, mas encontra expressividade através delas e nas posições políticas de esquerda. É uma corrente, em que os indivíduos são cooptáveis e substituíveis, e que se relaciona com a nossa submissão a uma globalização do modelo social dos Estados Unidos.

Se viramos para outro lado, girando nossos cabeças para recusar o alimento das ilusões conservadoras que fundamentam o bolsonarismo, seus ídolos e sua ignorância, mas nos virarmos tanto que adotamos novos ídolos capitalistas e seus valores pré-fabricados, então a roda da ilusão deu um giro de 360 graus. Nossos desejos (algo diferente de Bolsonaro) e paixões (a rejeição ao bolsonarismo) nos mantêm em um ciclo de renovação condicionada.

Sim, é bom que uma celebridade apoie uma posição correta, use sua voz contra o governo sócio da pandemia, o governo dos cem mil mortos, o governo de Jair Bolsonaro. E não, não podemos aceitar a política suja do bolsonarismo que usa as piores armas da calúnia e da difamação contra Felipe Neto, no submundo de suas redes sociais, com mentiras e ataques sujos, repulsivos. Não podemos, no entanto, deixar a fama nos confundir: às vezes, quando falamos de famosos, parece que há um excesso de comoção.

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