Na última semana nossas almas foram embargadas. Irados, indignados, com um nó de impotência entalado na garganta, assistimos a um espetáculo macabro sobre a já putrefata — e cada vez maior — pilha de mortos por Covid-19: uma criança de 10 anos, prestes a abortar o fruto de um estupro que punha sua própria vida em risco, teve o hospital em que era atendida atacado por uma horda furiosa que se dizia pró-vida e condenava o procedimento, colocando médico e criança no balaio dos assassinos. Enquanto segue a guerra governamental para facilitar o trabalho da Morte, outros pregam seu evangelho, antecipando-a no próprio espírito e impondo-a a outros. Pretendem que o mundo se faça à sua imagem e semelhança: mortos-vivos malcheirosos, de carne viva e espírito morto.
Mas não é o momento de, como cristãos, pressupormos o que pode ou não a mulher fazer com seu corpo — mesmo que para autorizá-la, empunhando uma autoridade que pensamos natural a nós. É o momento de nos questionarmos e definirmos nosso papel numa guerra já declarada e cada vez mais brutal.
Os debates da arquibancada
Não há como observar os confrontos dessa semana sem evocar a lembrança de Cristo, a quem foi levada uma mulher adúltera prestes a ser apedrejada (João 8:1-11). Supostamente apanhando-a em flagrante, escribas e fariseus levam a mulher perante Jesus para que seja apedrejada. Jesus, concedendo que a apedreje quem não tiver pecado, livra a mulher da condenação, dizendo que tampouco Ele a condena.
Mas não relembro essa história para discutir os pecados da mulher ou o que haveria de pecado em sua contraparte brasileira de 10 anos, pois esses são os debates da arquibancada. Enquanto uns discutem a metafísica perversa de um deus-bezerro que planeja estupros, outros discordam quanto ao aborto dos anjos; enquanto uns alardeiam o caso como exemplo da essência do cristianismo, outros se prontificam em defender a Cristo de Seus falsos seguidores. Mas o fazem sem Cristo, pois Ele não está na plateia — está na arena, protegendo Sua filha! Seus inimigos parecem ser, ironicamente, os únicos que estão de frente a Jesus, pois entenderam que de nada adianta teorizar e observar o mundo real sem atuar para transformá-lo.
O mundo real é confronto e política, algo que infelizmente nossos demônios entenderam antes que os anjos. Aos cristãos que buscam limpar o nome da Igreja: desçam ao palco e se juntem a Cristo. Quantos movimentos cristãos estiveram com Seu mestre no hospital, defendendo uma criança contra as pedras do Acusador? Quantos estiveram resistindo ao despejo ilegal de 450 famílias em plena pandemia? Quantas igrejas nessa crise têm ajudado seu próximo por enxergar nele a imagem de Deus, e não com fins proselitistas e irresponsáveis?
O cristianismo é um movimento em constante disputa, algo já antecipado pelo Terceiro Mandamento em Êxodo 20. Uma tradução mais fiel desta ordem, de acordo com Martin Buber, seria não a clássica — “não tomarás o nome do SENHOR, teu Deus, em vão” — mas uma que enfatiza a grande carga de significados presente no hebraico: “não erguerás o nome de YHWH, teu Deus, para uma falsidade”. O que está em jogo aqui não é a falta de reverência, e sim a falsificação da divindade — e há maior falsificação que arautos da Morte apedrejando um hospital em nome de Cristo? Passou da hora de destruirmos a hegemonia de falsos Messias e resgatarmos Seu nome da boca de ímpios. Mas não o faremos discutindo com outros anjos na plateia. Desçam dos céus, pisem na terra da qual nunca saíram e sujem-se de humanidade. Lá encontrarão Jesus, esperando há séculos nas trincheiras do combate entre a vida e a morte. Na guerra encontrarão a paz.