Dona Lyda Monteiro da Silva tinha 59 anos quando voltava do almoço ao trabalho naquela tarde de quarta-feira. O dia era 27 de agosto de 1980, e há mais de quarenta anos a secretária de cabelos curtos trabalhava na Ordem dos Advogados do Brasil. Ela passou pelo meio das grandes pilastras que sustentam o prédio da Ordem no Rio de Janeiro, na avenida Marechal Câmara, subiu até o sexto andar e pegou um envelope de papel pardo endereçado a seu chefe, Eduardo Seabra Fagundes. O abriu, e um estrondo viajou por quilômetros, uma nuvem de fumaça tomou a pequena sala e o teto do escritório desabou parcialmente. Dona Lyda, encaminhada prontamente para o hospital com um braço decepado, faleceu. Era uma carta-bomba.
Um dos responsáveis pelo explosivo vivia a pouco mais de 4 quilômetros dali. Era Hilário José Corrales, um fumante compulsivo vindo do interior de São Paulo, homem de poucos sorrisos, calado e rude, dono de um comércio de madeiras, que no ano seguinte também fabricaria, junto do sargento Guilherme Pereira do Rosário, a bomba que acabou por explodir no colo do militar na infame tentativa de atentado ao Riocentro. Era difícil desconfiar que no sobrado onde morava aquele senhor, na rua Amélia, número 51, havia material suficiente para pôr o quarteirão inteiro nos ares, e que ali se reuniam militares que há duas décadas faziam atentados terroristas, com a condescendência das autoridades militares, do Serviço Nacional de Informações (SNI) e do Centro de Informações do Exército (CIE).
As raízes: o golpismo antes do golpe
O chamado “Grupo Secreto” teve seu ápice entre 1968 e 1970, mas sua marca de nascença é bem anterior. Além de Hilário, o único civil, tiveram especial importância para a formação do grupo, que incluiu o colaborador da CIA Ronald James Watters e o ex-oficial francês Pierre Richell, oficiais das Forças Armadas engajados na política paramilitar e no golpismo desde os tempos de Getúlio Vargas.
Um deles era o coronel Alberto Fortunato, que iniciou sua carreira nas armas na Escola Militar de Realengo, no Rio de Janeiro, em 1940. Depois disso, passou a Santiago do Boqueirão, no Rio Grande do Sul, onde começou a tomar contato com o crescente movimento antigetulista e com as desconfianças no Exército em relação a João Goulart, à época dando seus primeiros passos na política gaúcha. Neste período, eram notáveis as disputas políticas no interior da tropa, que envolviam comunistas, nacionalistas, direitistas em geral (americanófilos, principalmente) e integralistas. É neste contexto que Fortunato passa a se aproximar do Clube Militar e dos seus colegas da Força Aérea Brasileira, que manteriam enérgica atividade conspiratória de 1954 a 1964.
A virada de Fortunato se deu em 1954, depois do famoso atentado contra Carlos Lacerda na rua Tonelero, no qual caiu morto o major da Aeronáutica Rubens Florentino Vaz, e que levaria Getúlio ao suicídio. Fortunato havia sido companheiro de turma de Vaz em Realengo, e, depois do episódio, “entrou de cabeça na luta contra o Getúlio Vargas”, conforme declarou aos autores do livro A direita explosiva no Brasil. Tão de cabeça que, às vésperas do suicídio presidencial, junto do general Alcides Etchegoyen – avô do ex-ministro-chefe do GSI de Temer – e dois filhos do general, impediu que tropas da Vila Militar se deslocassem para o Palácio do Catete, em apoio a Vargas.
Transferido para Salvador no ano seguinte, Alberto Fortunato continuaria a conspirar. Dessa vez, contra o presidente Juscelino Kubitschek e o então Ministro da Guerra, general Teixeira Lott, que há alguns meses havia dado seu famoso contragolpe. Em dezembro de 1959, um grupo de oficiais do Exército e da FAB, além de policiais civis e militares, liderados pelo major aviador Haroldo Coimbra Veloso e pelo tenente-coronel João Paulo Moreira Burnier, estavam prontos para pôr em prática sua trama. O plano era sequestrar aviões e levá-los para Aragarças, em Goiás, estabelecendo uma base rebelde. Depois, com o apoio de mais oficiais rebelados, lançariam bombas contra os palácios das Laranjeiras e do Catete, no Rio, e ocupariam as bases de Santarém e Jacareacanga, no Pará. A Revolta de Aragarças havia sido motivada pela decisão de Jânio Quadros de não se candidatar naquele ano, e os rebeldes também acusavam o então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, de preparar um golpe comunista no País. De acordo com Fortunato, também em entrevista aos autores de A direita explosiva no Brasil, ele tinha suficiente apoio na Bahia para, se necessário, fazer de Salvador o núcleo da rebelião. A conspiração contava ainda com o senador Octávio Mangabeira, os assessores de Carlos Lacerda e o juiz Alcino Pinto Falcão. Apesar dos revoltosos terem sequestrado cinco aviões e os levado para Aragarças, a Revolta foi derrotada. Os líderes da conspiração se refugiaram no Paraguai, Bolívia e Argentina.
Com a eleição de Jânio Quadros, em 1961, o grupo de militares voltou ao Brasil. O brigadeiro João Paulo Burnier, líder da revolta, teve sua prisão por deserção anulada pelo mesmo juiz Alcino Pinto Falcão, que ajudara quando da rebelião, pouco depois de sua volta, sob o argumento de que se tratava de um crime político, não de deserção. Logo se encontrou com o novo presidente em Brasília. “Eu lhe disse: o senhor tomou a decisão de voltar a se candidatar e nós desencadeamos a revolta exatamente com este propósito. Com sua desistência, a esperança que tínhamos de o general Lott não ser eleito presidente estava perdida. Ele me agradeceu muito e coisa e tal. De volta ao Rio, ainda brinquei com os colegas: vou passar um mês sem lavar as mãos, porque fui cumprimentado pelo Jânio. Mal sabia eu que, seis meses depois, ele renunciaria”, conta Burnier.
O brigadeiro passou rapidamente de “muito satisfeito em relação a Jânio Quadros” para a desconfiança total. A entrega da Ordem do Cruzeiro do Sul a Che Guevara foi especialmente mal recebida. “Foi uma ducha de água fria em todos nós”, conta. Mas no dia 25 de agosto de 1961, Jânio, por quem tão longe foram estes oficiais, renunciava, citando “forças terríveis” que se levantaram contra ele. Na verdade, de acordo com seu neto, o presidente tentou uma espécie de auto-golpe – como muitos suspeitaram por anos. “A minha renúncia era para ter sido uma articulação: nunca imaginei que ela seria de fato aceita e executada. Renunciei à minha candidatura à presidência, em 1960. A renúncia não foi aceita. Voltei com mais fôlego e força. Meu ato de 25 de agosto de 1961 foi uma estratégia política que não deu certo, uma tentativa de governabilidade. Também foi o maior fracasso político da história republicana do País, o maior erro que cometi […] Tudo foi muito bem planejado e organizado. Eu mandei João Goulart em missão oficial à China, no lugar mais longe possível. Assim, ele não estaria no Brasil para assumir ou fazer articulações políticas. Escrevi a carta da renúncia no dia 19 de agosto e entreguei ao ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, no dia 22. Eu acreditava que não haveria ninguém para assumir a presidência. Pensei que os militares, os governadores e, principalmente, o povo, nunca aceitariam a minha renúncia e exigiriam que eu ficasse no poder. Jango era, na época, semelhante a Lula: completamente inaceitável para a elite. Achei que era impossível que ele assumisse, porque todos iriam implorar para que eu ficasse […] Renunciei no dia do soldado porque quis sensibilizar os militares e conseguir o apoio das Forças Armadas. Era para ter criado um certo clima político”, teria confessado Jânio no seu leito de morte.
Um “certo clima político”, ainda que não aquele esperado, foi criado de fato. A presidência foi assumida interinamente pelo presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, e os ministros militares emitiram uma nota afirmando a “inconveniência” da volta ao Brasil do legítimo sucessor de Jânio, João Goulart. A ascensão de um movimento grevista para garantir a posse a Jango e a Campanha da Legalidade liderada por Brizola são fatos que, somados à imposição do parlamentarismo, aceito por Jango, garantiram sua posse. Mas naquela altura esses oficiais de direita também estavam se movimentando.
“Quando aconteceu a renúncia eu estava em Natal, praticamente em ‘estado de guerra’. Preparei seis aeronaves A-20 para combater o Brizola. Elas ‘desceram’ para Florianópolis fortemente armadas, os pilotos idem”, conta Burnier em A direita explosiva no Brasil. Fortunato, no Rio, se uniu a outros colegas, que se revezavam lendo telegramas do exterior que conseguiam interceptar. “Recebíamos muita coisa, sobretudo da região dos Balcãs: Bulgária, Romênia, etc., contendo a orientação comunista vinda através do rádio. Enquanto isso, passavam pelas nossas mãos as inúmeras mensagens em sistema numeral binário (zero ou um) destinadas à Embaixada Russa”. Os telegramas e boletins “suspeitos”, ao passar pelas mãos das Forças Armadas, tinham sua transmissão retardada em 24 horas.
Ademar de cueca e a primeira bomba
Era impossível estar ao redor do presidente João Goulart naqueles anos sem ter ouvido falar de um tal “dispositivo militar”. Comunistas, nacionalistas, reformistas, e até seus inimigos – todos eram levados a crer que o presidente tinha garantido, dentro das Forças Armadas, um esquema que impossibilitaria uma aventura golpista contra seu governo. Até Prestes, o antigo Cavaleiro da Esperança, parecia crer no esquema de Jango.
Aqueles oficiais que se rebelaram contra Kubitschek e foram perdoados por Jânio, no entanto, continuavam ativos. Tivessem os governistas atentado para certas movimentações, talvez o 1 de abril de 1964 fosse apenas mais um dia na história. As linhas dos jornais já davam conta de uma maré que se avolumava. Só nas entrelinhas da História era possível notar que o movimento era muito mais profundo. Ainda em 1962, no dia 19 de maio, o que pode ser chamado de um “pré-Grupo Secreto” fez sua primeira ação: colocou uma bomba com dez quilos de dinamite em uma das alas da Exposição Soviética de Indústria e Comércio, que fora inaugurada no Campo de São Cristovão, no Rio, duas semanas antes. Uma multidão esperava do lado de fora, e a destruição teria sido absoluta. Mas a bomba não explodiu porque um brigadeiro telefonou a Carlos Lacerda, então governador da Guanabara, prevenindo-o. No dia 13 de março de 1964, quando ocorreu o histórico Comício da Central do Brasil, militares do grupo assistiam a tudo de uma janela da 2ª Seção da Região Militar. Os jornais no dia seguinte destacavam o fabuloso discurso do presidente João Goulart, mas não davam conta do plano imaginado por aquelas silhuetas anônimas no prédio, que consideraram incendiar os arredores do comício com gasolina e óleo.
Em São Paulo, o grupo chegou a conseguir recursos com o governador Ademar de Barros – que há poucos anos tinha o apoio do Partido Comunista Brasileiro no Estado para as eleições. “Eu ia frequentemente a São Paulo e falava com o governador. Entrava no Palácio dos Bandeirantes (ali existe um lugar com muitos espelhos, próprio para se deixar guardas-chuvas, de onde é possível ingressar no interior do conjunto através da sala de segurança) e conspirava”, rememora Burnier.
O primeiro encontro se deu na casa da amante do governador, no Largo do Arouche, com o doutor Ademar de cuecas. Burnier começou a conversa dizendo que poderia arranjar armamentos e municiamento para suas tropas, mal equipadas, e indagando-o se tomaria parte na “revolução”. O governador concordou, e a partir de então entregava para o coronel, toda vez em que este ia para São Paulo, 4 milhões de cruzeiros (cerca de meio milhão de reais em valores atuais). Burnier chegou a trazer, com um contrabandista, um avião Constellation carregado de munições para a Força Pública. O avião pousou nas fazendas do “Rei do Café”, Geremia Lunardelli, onde havia uma mansão que, mais tarde, após o golpe, serviria para prestar um jantar em homenagem aos oficiais. Ao menos 50 mil cartuchos de fuzil foram trazidos.
Com a primeira “encomenda” em solo nacional, a relação com o governador se tornou mais próxima. Contrabando de armas vindas do Paraguai se incluíra nas demandas, bem como foguetes e lança-foguetes conseguidos na fábrica de um imigrante húngaro em Lorena, no interior de São Paulo. Agora, os oficiais tinham acesso direto ao cofre de uma agência do Banco do Estado de São Paulo, de onde levavam os valises e malotes deixados pelo doutor Ademar. E contavam também com doações de empresários paulistas que faziam parte da FIESP. Em um caso, por exemplo, 30 pessoas, entre militares e civis, receberam na fronteira dos dois estados jipes militares doados por empresários. Os levavam até o Rio e deixavam estacionados nas casas de viúvas de militares ligadas a Carlos Lacerda.
“Muitos companheiros atuavam em São Paulo […] além do governador, a Polícia Militar estava metida no negócio até o pescoço. Passado algum tempo desses primeiros contatos, nós acertamos a compra de foguetes anticarro construídos em Lorena, numa fábrica existente até hoje […] Pegamos cinco ou seis caixas contendo foguetes (cada uma delas com cinco unidades). […] regressamos ao Rio de Janeiro, guardando aquele material no porão da casa do ex-tenente Antônio Carreira, Depois, já próximo da revolução e face à possibilidade de os ‘espiões do inimigo’ descobrirem, levamos o armamento para a fazenda do advogado Luís Mendes de Moraes Neto, próximo de Teresópolis”, conta Fortunato.
A aquisição dos foguetes tinha o objetivo de fazer frente ao avanço de veículos blindados, caso fosse necessário – a PM paulista, “envolvida até o pescoço”, não tinha tal capacidade. Os conspiradores fabricaram ainda lançadores de foguete ou bocais adaptadores em uma oficina da Zona Norte do Rio de Janeiro, entregues “ao pessoal do Ademar de Barros”.
No dia 31 de março de 1964, foguetes montados nestes mesmos jipes doados por empresários estariam dentro do Palácio da Guanabara, em “defesa” de Carlos Lacerda, juntos de metralhadoras, fuzis e granadas empunhadas pelos oficiais do grupo de Burnier e Fortunato, além de civis. Pedro Maciel Braga, um dos operativos do Grupo Secreto nos anos posteriores, conta que “participou ativamente” no golpe, “levando documentos para o general Olympio Mourão Filho dar a largada de Juiz de Fora.” No começo, o “Grupo Azul e Branco” que ocupava o Guanabara era formado por 70 pessoas – em pouco tempo, eram 300.
O ardil da conspiração era tal que, quando o general Olympio Mourão Filho ordenou, na noite do 31 de março, que um contingente saísse de Minas Gerais para ocupar o Estado da Guanabara, “dando a largada”, os Obuses do Iº Exército que saíram do Rio de Janeiro para confrontar as tropas mineiras estariam sabotados: peças essenciais aos disparos simplesmente tinham sumido. “Deve ter acontecido o seguinte: quando um dos oficiais mandou limpar as armas, o soldado ou cabo simplesmente sumiu com tudo antes da partida do comboio. E notem que aqueles componentes eram grandes. Daí, eles não tinham como impedir o avanço das tropas revolucionárias”, de acordo com Fortunato.
A vitória e o longo período das bombas
Seria de se esperar que, com o golpe vitorioso, esse grupo de militares terroristas que atuavam como milícias paramilitares deixassem de lado as conspirações, talvez premiados com cargos. Mas o que aconteceu para a maioria deles – com exceção de João Paulo Burnier, que se afastou do Grupo – foi justamente o contrário. Apesar de seguirem com seus respectivos cargos – em vários casos, promovidos – é a partir do golpe de 1964 e seus vários atos institucionais que o Grupo passa a atuar com mais ousadia.
É do próprio relato de Alberto Fortunato que consta que “aos poucos, outras pessoas – na maioria vinculadas ao Centro de Informações do Exército ou aos seus agentes – juntaram-se à equipe. Estavam insatisfeitas com a falta de reação do governo às investidas da esquerda (principalmente danos a carros oficiais estacionados no Centro da Cidade, e tumultos veiculados pela imprensa).”
Assim, do seio de um governo militar de extrema-direita, crescia um agrupamento paramilitar, disposto ao uso de táticas terroristas, com o objetivo de combater “a esquerda” e tentar levar o governo ainda mais para a direita. “Nós analisávamos os jornais diariamente. Nossa atenção voltava-se para a atuação da esquerda num determinado campo. Quando julgávamos que era tempo de refrear o ímpeto, implementávamos uma incursão”, conta Fortunato.
Foi assim que o Grupo, de 1968 a 1980, foi responsável por ao menos 32 ataques, incluindo instituições culturais (Teatro Miguel Lemos, Teatro Maison de France, Teatro Gláucio Gil, Teatro João Caetano, Livraria e Editora Civilização Brasileira, Livraria Forense, Cine Campo Grande, Teatro Opinião) veículos de imprensa (Jornal do Brasil, Correio da Manhã, Pasquim, Tribuna da Imprensa, Tribuna da Luta Operária), instituições diplomáticas e políticas (Embaixadas da Polônia, União Soviética e Tchecoslováquia, Representação Comercial Soviética, Residência do Cônsul de El Salvador, Delegacia Regional da SUNAB, Gabinete do vereador Antônio Carlos de Carvalho, OAB, ABI, Escritório do herdeiro da Coroa Imperial) e uma miríade de instituições de ensino e centros estudantis (Colégio do Brasil, Escola Nacional de Belas Artes, Centro Acadêmico Cândido de Oliveira, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Centro Acadêmico Sir Alexander Fleming). Destes, 29 foram atentados à bomba, incluindo um à residência de Roberto Marinho. Houve ainda o sequestro do bispo católico Dom Adriano Hipólito, que foi espancado, desnudado, pintado de vermelho a abandonado em uma estrada em 1976. Seu carro foi explodido em frente à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
As armas não eram problema; o grupo, afinal, era majoritariamente constituído por militares, e em alguns casos elas eram desviadas da Polícia Militar do Rio ou da Fábrica do Exército em Paracambi. As dinamites eram conseguidas em um esquema nas pedreiras e depósitos de explosivos do Rio, cuja vigilância cabia ao DOPS. “Politicamente, julgávamos que as possibilidades para controlar ‘pacificamente’ a rebeldia dos jovens e dos intelectuais que os incentivavam estavam literalmente esgotadas; a solução foi ‘apelar para a ignorância’”, rememorou Fortunato.
Sua organização era fundamentada na Teoria dos Círculos Concêntricos, isso é, o grupo contava com diversos “círculos” distanciados entre si mas vinculados a um eixo ideológico. No anel externo, pessoas que sabiam dos atentados, mas que não participavam diretamente deles, eram responsáveis por garantir que seus companheiros não fossem identificados e sofressem reprimendas. Incluía-se aí o policial Charles Borer (do DOPS) e o coronel do Exército Mendonça (codinome Camões). No círculo intermediário ficavam os “ideólogos” e “teóricos”, que não tomavam parte nas ações, mas ajudavam a planejá-las. São apontados como participantes desse círculo Pedro Maciel Braga, o general Camilo Borges de Castro, e os generais reformados Gérson de Pina e Ferdinando de Carvalho. Por fim, no último anel, aqueles responsáveis pelas ações: o ex-oficial francês no Vietnã e na Argélia Pierre Richell, apresentado ao grupo por intermédio de imigrantes anticomunistas do leste europeu, o coronel Alberto Fortunato, Hilário Corrales, Luiz Helvécio Leite da Silva, e os oficiais do CIE Alexander Murillo Fernandes, Fredde Perdigão e “Niase”. Participavam também um tenente da PM-RJ chamado “Lasmar”, o coronel Idyno Sardemberg e o general Octávio Moreira Borba.
Com Geisel na presidência, a organização do Grupo e suas funções mudam um pouco. No Rio, a periodicidade das bombas diminui (são sete atentados desse tipo de 1976 a 1980), mas o foco personalista dos atentados aumenta (sequestro de Dom Adriano, atentado contra a casa de Roberto Marinho, gabinete do vereador Antônio Carlos de Carvalho). Em Brasília, Geisel e Golbery ficam na mira do Grupo, que abastece o Brasil com panfletos veiculados contra eles, por vezes em ofícios e envelopes de instituições públicas (como a Universidade Federal de Pernambuco), com informações obtidas a partir do SNI. De acordo com Fortunato, chegou-se a traçar um plano para matar o presidente. “A ação seria desencadeada aqui mesmo em Brasília. Esse plano, aliás, era bem simples: um dos nossos subiria ao terraço de um dos ministérios, aguardaria o momento da decolagem [do helicóptero do presidente], efetuaria o disparo [de foguete portátil] e desceria calmamente até o pavimento térreo, misturando-se aos demais funcionários.”
Depois do imbróglio do atentado ao Riocentro, não se tem mais registro do Grupo Secreto. Oficialmente, foi sua última ação – já com outra configuração. A chamada democratização veio, a linha-dura pôs seu pijama, e os horrores militares – oficiais e para-oficiais – foram enterrados num grande pacto de silêncio democrático. Hoje, os militares voltam ao governo. O próprio presidente poderia ser um aspirante (ou um inspirado?) do Grupo, tomando em conta os atentados que planejara na década de 80. Fala-se em paramilitarismo, em milícias, numa estrutura clandestina que corrói as Polícias Militares. No passado recente, levantamentos policiais estranhíssimos, feitos com a condescendência de autoridades. Ações espetaculares contra a “corrupção” e a esquerda. Ataques a produtoras cinematográficas. E atentados contra a OAB assinados por “militares da reserva” no contexto da Comissão da Verdade. Linhas nos jornais, manchetes, talvez. Que será que dizem nas entrelinhas da História?