O Ocidente por vezes parece esgotado de profetas. Nosso cristianismo, paralisado pelo passado e feito cego pelo futuro, aguarda de braços cruzados o fim de todas as coisas, esperando pelos sinais previstos há séculos ou milênios por uma cepa de profetas que já estaria extinta, sendo reivindicada somente por charlatões nos dias de hoje. A profecia, no entanto, não se resume a clarividência; basta olharmos para Moisés, paradigma supremo do profeta bíblico, cujas possíveis predições do futuro são completamente marginais à sua verdadeira atuação. Em outro momento discuti o papel do profeta enquanto intermediário entre seu Deus e seu povo; falta mostrar como atua o profeta em seu povo e no mundo que o cerca. Só assim perceberemos os verdadeiros profetas em nosso meio.
Demolindo o deus imperial
O cenário no qual surge Moisés é bastante conhecido. Os hebreus, escravizados e oprimidos pelo império egípcio, clamam em alta voz (Ex 2:23); mas não clamam a seus opressores ou a seus deuses, que de tão prósperos e bem alimentados acomodaram-se em sua neutralidade desatenta. Os escravizados clamam a um Deus vivo para as realidades, não comprometido com um império que se pretende onipotente, mas verdadeiramente livre. Esse Deus os ouve, vê e conhece (Ex 2:24-25), e por isso convoca Moisés para libertá-los (Ex 3-4:17).
Moisés escandalizaria alguns que, vendo a opressão que esmaga hoje seus irmãos, lamentam-se e dão de ombros, dizendo que a injustiça só será vencida no Reino dos Céus. Esta é a religião imperial, estática e legitimadora da ordem, para a qual tudo está dado e a História está morta. Não há mais transformação a fazer, só Céu a esperar. O Deus do cristianismo contemporâneo senta-se à mesa com seus colegas egípcios para alimentar-se do sangue de Seus filhos.
Este não é o caso de Moisés, cujo chamado profético é um chamado à libertação de seu povo. O profeta-modelo, segundo Walter Brueggemann, tem a função de demolir a consciência imperial hegemônica e oferecer uma consciência e percepção alternativa da realidade a seu povo; enquanto a confiança imperial é destruída em seus alicerces, sua impotência demarcada pelas terríveis pragas do SENHOR, Moisés mostra a Israel que há outro caminho, mais difícil e por isso mais real, para a construção de um novo mundo ao lado de um Deus de liberdade. Ao mesmo tempo em que consolida as críticas e os ataques contra o Império, o profeta fomenta um espírito ativo e dinâmico em seu povo para uma nova criação aqui e agora, a qual começa quando Israel parte livre através do mar para o deserto (Ex 14).
A voz que clama no deserto
O Êxodo bíblico é o marco zero da fundação de Israel, nação que na Bíblia é fruto da vitória de um movimento de libertação dos oprimidos, e sua Páscoa é até hoje celebrada no mundo judaico-cristão. Mas nossas elites eclesiásticas, enquanto promovem a celebração de nossas memórias coletivas, esterilizam nosso solo para que não nasçam novos sonhos, e matam os poucos profetas que ousam proclamá-los. Nos colocam no deserto sem povo ou movimento, aguardando uma Israel que o mar nunca atravessa.
Nesse deserto nasceu, em 1830, Antônio Vicente Mendes Maciel, no sertão do Ceará. Logo seria conhecido como Antônio Conselheiro, o “monarquista louco e fanático” que aterrorizava a República brasileira recém-nascida e juntava pobres à sua volta. Em 1893 funda Canudos, cidade no interior da Bahia que reuniu camponeses de todo o Nordeste e seria palco de um dos conflitos mais sangrentos da história do Brasil, tendo sua população massacrada pelo Exército. O evento seria testemunhado por Euclides da Cunha, que decretaria em seu ambíguo assombro: “Arraial maldito”.
Já Clóvis Moura apresenta uma nova perspectiva a respeito de Conselheiro e seu arraial. Num Brasil nascido em sangue e injustiça, cujas terras eram antes distribuídas a amigos da realeza e depois vendidas a grandes proprietários que formaram os latifúndios e as oligarquias agrárias atuais, Canudos surge como crítica camponesa à divisão injusta e predatória da terra e da riqueza, e, ao mesmo tempo, alternativa; é movimento profético que, a despeito de suas limitações, clama e oferece a alternativa de um mundo mais justo para camponeses, indígenas e ex-escravizados, fundando uma economia comunitária e auto suficiente cuja mera existência era um desafio intolerável à ordem estabelecida.
As elites brasileiras logo respondem, pois Conselheiro, que já tivera escaramuças com a polícia em suas peregrinações e pregações abolicionistas, tem seu arraial alvejado pelas Forças Armadas. A Guarda Católica dos conselheiristas é distribuída em várias frentes de comandantes de piquetes e Canudos vence, a partir de 1896, três confrontos contra o Exército Nacional invasor. Somente no quarto conflito é que vai cair, em meio a homens, mulheres e crianças lutando para defender sua liberdade e sendo massacrados mesmo que não pegassem em armas. Mais uma vitória liberal erguida sobre montanhas de corpos. “A podridão fedia a léguas de distância, os bichos a gente via correndo pelos cadáveres, e urubu fazia nuvem,” contou o sobrevivente Manuel Ciríaco sobre os dias posteriores à carnificina.
O padrão é o bíblico. Inconformados com a naturalização da injustiça, os conselheiristas deixaram de esperar que Israel do mar viesse e fundaram seu próprio Monte Sião no Morro da Favela; saíram ao deserto e o sertão virou seu mar. Movimento profético esmagado pelo nosso Faraó do capital, legou-nos um panteão de mártires e uma memória de luta.
Os herdeiros do profeta
Uma vez degolados os profetas, a república liberal consolida cada vez mais seu controle sobre as terras do país. A ordem imperial dos campos brasileiros pouco mudou nesses 120 anos; no ano 2000, a área total dos latifúndios brasileiros era de mais de 4 milhões de quilômetros quadrados, e só aumentou desde então. Sua modernização é só a de seus próprios latifúndios, por meio da introdução de novas tecnologias e da expulsão da população camponesa para as periferias e comunidades das grandes cidades. Aos que ficam, resta muitas vezes a escravidão. Nossos hebreus estão em nossas extensas plantações, grandes desertos verdes que geram riqueza para uns e miséria para muitos. Lá clamam, e lá os deixamos.
Felizmente, enquanto os faraós do agronegócio se empanturram de soja e sangue da mesma forma que seus antecessores, nossos movimentos proféticos muito se transformaram. São muitos os herdeiros de Canudos que se levantaram contra a oferenda de suas terras a Mamon; basta olhar para o movimento do Contestado (1912-16), reação liderada pelo monge José Maria contra a penetração do imperialismo no campo, ou para o território livre de Formoso (1948-64), uma comunidade camponesa autônoma em pleno espaço latifundiário, para ver que a herança de luta está viva no solo fértil dos corações camponeses.
A transformação da luta
O clamor dos oprimidos evolui continuamente em suas críticas e demandas. Na década de 40, surgem as ligas camponesas, como associações mutualistas voltadas para interesses básicos de seus filiados. Em Pernambuco, em janeiro de 1955, a Liga Camponesa da Galileia passa a ser liderada pelo advogado e deputado socialista Francisco Julião, que dá um passo à frente do associativismo para a reivindicação dos direitos garantidos pela lei. As ligas se multiplicam e ganham destaque nacional, reivindicando a reforma agrária. A partir dos anos 1960, avançam num discurso revolucionário, bastante influenciado pela Revolução Cubana.
Mas a ordem oligárquico-fundiária não poderia permitir que suas bases fossem fragmentadas, ou que sindicatos e cooperativas rurais ganhassem poder e legitimidade. Por isso as Ligas são perseguidas desde sua fundação, e a violência recrudesce, a ponto de ocorrerem episódios como o de Goiana (PE) quando, em 1955, a polícia ataca um grupo de camponeses, que repele seus agressores à bala e faz várias vítimas.
Ao mesmo tempo, os comunistas – que também se envolviam na organização de ligas – passaram a se concentrar na organização dos sindicatos rurais. Disso, organizaram um movimento nacional, a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrários do Brasil (Ultab). Na década de 1960, nasceria também em Encruzilhada do Sul (RS) o Movimento dos Agricultores Sem Terra (MASTER), com o apoio do então governador Leonel Brizola, a partir da luta de trezentas famílias contra a reintegração de 1800 hectares em Faxinal.
Iniciativas que seriam esmagadas de modo terrorista após o golpe militar de 1964. Mas a luta camponesa não morreu, passando por outra evolução. Hoje muitos movimentos camponeses têm como objetivo programático não a fundação de poderes paralelos ou somente a reivindicação de direitos básicos, mas a fundação de uma nova sociedade para todos, começando com uma Reforma Agrária que distribua pela primeira vez as terras brasileiras de forma justa. Compreendem que não há salvação para o campo em nossa ordem imperial, que nos sujeita a ser eternos celeiros subalternos ao Primeiro Mundo, e que nossas elites ruralistas não vão tolerar em seu seio modelos de sociedade alternativa. Querem atravessar seu mar, mas sabem que só há paz quando caem faraós.
Mais conhecido entre esses movimentos é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que inclui 350 mil famílias assentadas em terras improdutivas de grandes senhores, os quais nada fizeram para merecê-las e se sentam sobre elas tal qual dragões sobre seu ouro roubado. A despeito de seus recuos estratégicos e de sua perda de combatividade nos governos petistas, a voz do MST ainda ressoa ao oferecer alternativas de um outro modo de vida ao nosso povo. Sua atuação tem se feito ainda mais presente na pandemia — enquanto os grandes produtores do agronegócio preferem especular com o mercado externo e encarecer seus produtos às custas do nosso povo, o MST tem doado alimentos produzidos em seus assentamentos aos muitos que passam fome nessa pandemia. Menos conhecida, mas não menos importante, é a Liga dos Camponeses Pobres (LCP), muito presente no Norte e Nordeste e que resiste heroicamente à agressão ruralista e policial contra os camponeses em seus espaços. Clamam não por Reforma, mas por uma Revolução Agrária, pois compreendem que não há reforma capaz de reverter a decadência da casa grande.
Tais movimentos criticam a ordem vigente e lutam por alternativas que não dependam da opressão e exploração de nossos pequeninos; seguindo o caminho de Moisés, seriam movimentos proféticos por excelência. Mas numa resposta triste e pouco surpreendente, nossas elites teológicas, que podem dar-se ao luxo de esperar sem pressa que o mar se abra e venha o Reino, desprezam profundamente os profetas que se levantam em suas terras. Preferem discursar de suas poltronas e púlpitos, confortáveis em seus ternos caros e seu ar-condicionado, a um povo que deseja vida em abundância mas mal pode pagar o próprio arroz. Se escandalizariam com a reivindicação de um movimento camponês, que taxam de criminoso, terrorista e social-satanista, como movimento profético — como pode ser profeta um movimento que não lhes é submisso? Como pode ser profeta quem viola o direito à propriedade, mais sagrado que o direito à vida? Rejeitariam Moisés, intruso após 40 anos no deserto, e manteriam os hebreus no Egito — são propriedade do Faraó, afinal. Outros iriam ainda mais longe e acusariam a lavagem cerebral feita por Moisés nas crianças hebreias, que não querem ser mais escravas — mas não veriam problema em traficar suas crianças para casas egípcias.
Acontece que enquanto nossos pastores discutem metafísica barata em igrejas de alvenaria, assentamentos inteiros são derrubados em nome de criminosos; enquanto pregam a vida eterna num futuro distante, ignoram os incontáveis mártires de nossos campos, assassinados enquanto lutavam por uma vida mais digna. Os camponeses brasileiros clamam; Deus ouve, vê e se lembra. Resta ouvirmos Seu chamado, tirarmos as sandálias e sujarmos os pés.