A um dia do julgamento*, a defesa de Julian Assange corre para impedir sua extradição para os EUA. O jornalista está preso em Londres desde abril do ano passado, depois de ser expulso da Embaixada do Equador, onde ficou por oito anos. O governo estadunidense sustenta dezoito acusações contra o fundador do WikiLeaks, que, se condenado, pode pegar 175 anos de prisão. As violações de Direito Internacional e Direitos Humanos durante o processo no Reino Unido, a tortura psicológica, e a perseguição política à qual o editor é submetido há dez anos pela inteligência norte-americana são alguns elementos que tensionam a ação. Enquanto isso, há uma organização de juristas independentes que brigam para provar a ilegalidade da prisão e extradição, assim como de dezessete imputações contra ele.
Jornalista ou terrorista?
No dia 17 de agosto, a Lawyers for Assange (Advogados em defesa de Assange), publicou um parecer jurídico constatando as violações cometidas pelo Reino Unido. A carta aberta foi enviada ao primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, aos Ministros de Relações Interiores e Exteriores e ao Ministro da Justiça. No documento, os juristas pedem a liberação imediata do editor da prisão de segurança máxima Belmarsh, na cidade de Londres.
A consolidação da carta foi realizada em duas etapas: primeiro, com a assinatura de juristas que viam no processo graves distorções jurídicas e supressão de direitos básicos – como o de receber visitas na prisão. A segunda etapa, ocorrida um mês e meio depois, foi o apoio e endossamento de políticos. Sara Vivacqua, advogada brasileira e integrante do grupo, afirma a necessidade da organização para que a interferência dos EUA não abra uma caixa de Pandora da tirania absoluta frente ao trabalho jornalístico.
“O processo contra Julian Assange é flagrantemente ilegal. Sua extradição tem o poder de decidir muitas coisas importantes. Uma delas é a afirmação da jurisdição mundial dos EUA. Ou seja, poderiam indiciar alguém pela Lei de Espionagem por publicar documentos que eles consideram confidenciais e de segurança nacional.”
A lei a qual Vivacqua se refere, de 1917, nunca foi aplicada diretamente em profissionais da imprensa. Para piorar, Assange nunca publicou nos EUA; aliás, nem americano é. Tal caso inauguraria o fenômeno e facilitaria a predisposição de criminalizar qualquer um, em qualquer lugar do mundo, que atua em atividades tipicamente jornalísticas, tais como: identificar e encorajar a fonte, receber informações, retê-las e publicá-las. Outra consequência da condenação do editor seria, de acordo com a advogada, colocar o segredo de Estado como um direito absoluto, não relativizável em nenhuma circunstância, nem se contivessem crimes de guerra, tortura, e violassem todos os tratados de Direito Internacional.
“Seria colocar a segurança nacional acima de qualquer direito humano”, diz
Panorama
Quando, em 2010, a WikiLeaks liberou cerca de 400 mil arquivos com centenas de provas de violação dos Direitos Humanos pelo exército estadunidense no Oriente Médio (Afeganistão e Iraque), a estratégia de contenção de dano do governo Obama foi a criminalização imediata do jornalista. Em certa medida, deu certo: restou pouco (ou nenhum) questionamento a respeito dos crimes cometidos pelos EUA – dentre eles, tortura, estupro e assassinatos de civis – pelas autoridades internacionais. Na época, inclusive, o presidente disse que as informações vazadas não eram novidade; seu governo não foi abalado.
Por outro lado, o responsável pela notícia nunca mais teria sua vida de volta. De imediato, Assange precisou sair do país para fugir das acusações de espionagem e vazamento de informações. Em 2012, encontrou asilo na Embaixada do Equador em Londres, onde morou até ser preso. Para completar, ainda em 2010, foi aberto um inquérito pela justiça sueca para investigar duas acusações de estupro contra ele que até hoje não foram completamente esclarecidas. O caso foi arquivado, pela primeira vez, em 2017. Em maio de 2019, foi reaberto; em novembro do mesmo ano, arquivado mais uma vez. Os crimes nunca foram provados.
Após oito anos numa espécie de prisão domiciliar, o australiano foi expulso da embaixada pela polícia britânica com aval do Equador. Durante esse período, a defesa denuncia no processo, houve espionagem de uma empresa espanhola, que teria sido contratada pela CIA para enviar relatórios sobre as atividades de Assange e advogados, e plantar escutas pelo prédio. Depois de quase uma década de batalha judicial, prisão e perseguição, Julian Assange já aparenta sequelas permanentes. No início deste ano, o relator especial da ONU, Nils Melzer, confessou que o assédio sistêmico contra o jornalista, que tem 49 anos, configura tortura psicológica; segundo ele, o dano causado é irreversível.
Uma luta de todos
O fato é que Julian Assange não está sozinho. Assim como a Lawyers For Assange, a organização Don’t Extradite Assange (Não Extraditem Assange) também se movimenta para ajudar na libertação do jornalista. Nela, participam acadêmicos, defensores dos Direitos Humanos e da imprensa livre, advogados e políticos. No dia do julgamento, haverá um evento virtual chamado “The Belmarsh Tribune”. Serão discutidas as repercussões na política, no jornalismo e na democracia.
A absolvição de Assange também é necessária para países como o Brasil. O próprio conteúdo dos documentos vazados dá voz à população das regiões vítimas do imperialismo. O trabalho de pessoas como ele, lá, é fundamental para a independência aqui. Lutar pela liberdade de Julian Assange é também lutar pela autonomia dos jornalistas independentes dos países do terceiro mundo. É garantir o direito da população de ser informada e dos profissionais de entregar a notícia. É o princípio básico do ideal de Estado Democrático de Direito.
*A justiça britânica decidiu adiar a decisão de extradição para 4 de janeiro de 2021. Até lá, o editor e fundador do WikiLeaks permanece preso.