Para compreender o que se passa no Chile, é fundamental, antes de tudo, compreender o legado liberal-fascista de Augusto Pinochet enquanto personificação da dominação burguesa no Chile. Como se sabe, Pinochet subiu ao poder por meio de um golpe de Estado sobre o governo de Salvador Allende. O golpe, apoiado e financiamento pela burguesia e pelo imperialismo estadunidense ( um dos organizadores do golpe, Henry Kissinger, ganharia um Nobel da Paz em 1973), acabou com a experiência do governo de esquerda com horizonte socialista da Unidade Popular (para entender os motivos da derrota, recomendo o documentário A Batalha do Chile e o livro O reformismo e a contrarrevolução: estudos sobre o Chile, de Ruy Mauro Marini).
A ditadura de Pinochet perseguiu, matou e torturou milhares de pessoas. Foi uma das ditaduras mais violentas da história da América Latina. A dose cavalar de violência serviu, dentre outras coisas, para garantir a aplicação das propostas que foram pioneiras no neoliberalismo. A ditadura chilena foi o primeiro laboratório mundial de aplicação do neoliberalismo. Dois dos economistas mais salientes do neoliberalismo, Milton Friedman e Friedrich Hayek, deram apoio total ao pinochetismo. Hayek, em particular, declarou com todas as letras que preferia um governo ditatorial, mas liberal na economia, a um governo democrático de esquerda.
As contrarreformas pinochetistas aprofundaram o subdesenvolvimento, a dependência e o caráter monoprodutor da economia chilena (um país que vive basicamente de cobre) e jogaram a imensa maioria da população trabalhadora na pobreza e precariedade. Não faz qualquer sentido falar em “milagre chileno” como se o país fosse um exemplo de sucesso econômico. Ao final da ditadura Pinochet, quase 40% dos chilenos estavam abaixo da linha da pobreza; 22% em situação de desemprego (em 1983); quase 50% não tinha nenhuma seguridade social (problema que se mantém e aprofunda) e até em dados mais “economicistas”, como a renda per capita, os resultados não eram animadores: a renda per capita caiu durante o regime de Pinochet e o crescimento geral do PIB esteve bem longe de ser um fenômeno de crescimento.
Ao final dos anos de 1970, Pinochet tentou dar um ar de legitimidade para sua ditadura liberal-fascista. Buscou realizar um plebiscito falso de aprovação ou não do seu governo e impôs uma Constituição, em 1980 (a Constituição atual que os movimentos populares e o povo trabalhador desejam derrubar). Em 1988, de novo buscando revestir de legalidade a ditadura, acontece um novo plebiscito no Chile sobre prorrogar ou não o “mandato” do general, e depois de intensos protestos de rua e muita luta contra repressão, 55% do povo chileno diz não à continuidade do regime.
Em 1989, acontecem as eleições presidenciais e vence o democrata-cristão Patricio Aylwin. O importante é que esse processo de transição da ditadura burguesa para democracia burguesa foi ultra-conciliatório e Pinochet continuou como chefe das Forças Armadas até os anos de 1990, e senador vitalício pelo Chile (cargo que ele criou para ele mesmo). É importante destacar que nesse meio tempo, o ditador mantinha seus laços políticos e de amizade com Margaret Thatcher. Mesmo depois de acusado de corrupção e até preso em Londres, o sistema político chileno seguiu como entulho, mantendo o padrão de acumulação de capital e o modelo contrarrevolucionário montado na ditadura.
Essa parte é a mais importante. A esquerda chilena, e especialmente o Partido Socialista (que, a título de ilustração, seria algo correspondente ao PT no Brasil), nunca tentou desmontar o legado pinochetista. Os seguidos governos de centro ou centro-esquerda, incluso o de Michelle Bachelet, mantiveram intacto o legado pinochetista. Na prática, Partido Liberal, Democrata-cristão e Socialista se configuraram como administradores desse legado, fundamento do sistema político. A privatização da educação e previdência social, os altíssimos níveis de desigualdade, a precariedade das relações trabalhistas, o altíssimo custo de moradia e a ausência de políticas de moradia popular, a farra das multinacionais, em suma, tudo que é importante na economia foi mantido como estava.
Esse modelo caminhou para um esgotamento e teve dois vetores principais. Primeiro, uma recusa passiva ao sistema expresso, principalmente, no número crescente de abstenções eleitorais a partir dos anos 2000. Na eleição presidencial de 2013, por exemplo, 59% dos chilenos que podiam votar decidiram ficar em casa (em números: dos 13,5 milhões que podiam votar, somente 5,6 milhões foram às urnas) e nas eleições municipais de 2016, só 36% dos chilenos aptos a votar o fizeram. É claro, gritante, o esgotamento de legitimidade do sistema político e dominação e em particular da sua ala esquerda, o Partido Socialista, na busca de canalizar as insatisfações e demandas populares.
Segundo, foi sendo criada toda uma tradição de movimentos de massa por fora da institucionalidade. Um dos primeiros grandes sinais disso foi a mobilização estudantil de 2006, conhecida como Revolta dos Pinguins. Entre as várias demandas, estava o fim da cobrança pelo “vestibular”, fim da privatização da educação, passe livre estudantil, etc. Uma série de mobilizações populares protagonizadas pela juventude, povos originários (como o Mapuches) e movimentos feministas seguiu adiante no Chile na primeira e segunda década dos anos 2000.
O Partido Socialista, no geral, ficou alheio a esse processo de renovação dos movimentos populares e da juventude e o Partido Comunista (PCCh), até certo ponto, conseguiu incorporar e acompanhar essas demandas, sendo muitos comunistas lideranças de movimentos estudantis e feministas – a exemplo da comunista Camila Vallejo. A vitória do direitista Sebastián Piñera em 2010 foi muito mais um repúdio da classe trabalhadora e das juventudes ao Partido Socialista, que uma virada à direita do povo trabalhador chileno.
A partir de 2019, em particular, o ritmo e a intensidade dos movimentos de massa, protestos de rua, luta dos povos originários, foi se intensificando. Não tratarei em detalhes todas as mobilizações e a resposta repressiva e assassina do governo Piñera. A Revista Opera soltou uma série de matérias muito boas sobre a luta de classes no Chile em 2019 e neste 2020 que ainda não acabou.
O certo é que todo esse caldo histórico de falência de legitimidade do sistema de dominação política, perda de eficácia do reformismo liberal do Partido Socialista e formação, na luta, nas ruas, na radicalidade, de uma nova geração de militantes e lutadores/as sociais criou uma situação de impasse. Mesmo com um governo de direita e todo apoio do imperialismo, mídia, Igreja Católica, sistema de educação privado, etc., os movimentos de massa jogaram a popularidade do presidente no chão e conseguiram manter o Chile em protestos quase que ininterruptos por um ano seguido.
Esse ponto é importante: a constituinte não é uma manobra de cima da burguesia para abafar os movimentos de massa. A presidência e toda burguesia do país tentaram ao máximo impedir uma nova Constituição e esperou que o isolamento social necessário por causa do covid-19 fosse jogar o movimento de massas em refluxo. Isso não aconteceu. Mesmo com a covid-19, o povo trabalhador – e repito: com destaque para juventude, povos originários e movimentos feministas – manteve a pressão política nas ruas e não deu sossego ao governo que usou e usa a repressão em doses sempre crescentes.
Destacar a força das ruas, o esgotamento da força social do liberalismo de esquerda, a falência do sistema político e a formação radical de toda uma nova geração de militantes é fundamental para não fazer uma análise institucionalista da Constituinte. Não é a Constituinte em si que mobilizou o povo trabalhador. Ela é uma mediação tática de unificação de um conjunto histórico de lutas, mobilização, aprendizado político e rebeldia. E toda análise que isola a mediação tática do processo histórico é necessariamente falsa.
No último domingo, vimos 78,27% dos chilenos dizer não à atual Constituição – o que significa que o movimento conquistou, também, amplos setores das camadas médias. A assembleia constituinte exclusiva terá também paridade de gênero e elementos de representação de povos originários. Esse ponto é importante. A Constituição brasileira de 1988, não foi fruto de uma eleição exclusiva. O Congresso, montado durante a ditadura-empresarial militar, se transformou em Constituinte. No Chile, teremos novas eleições para montar um Congresso Constituinte. Nessa eleição, podem se candidatar figuras não filiadas a partidos políticos.
A partir de agora, o centro da luta de classes será o conteúdo, a forma política estatal-burguesa que sairá desta Constituição. A burguesia, através do seu governo, aparelhos ideológicos, repressão e muito dinheiro, vai tentar reduzir ao máximo o conteúdo radical da futura carta constitucional. Deve se intensificar a perseguição às lideranças, a repressão, o terror fiscalista (propaganda dia e noite dizendo que certas propostas, como saúde e educação públicas e universais, não cabem no orçamento) e o uso de todo tipo de instrumento para a direita ganhar na constituinte.
É um cenário aberto de, repito, luta de classes. Do ponto de vista das classes trabalhadoras, duas questões se colocam: a) a capacidade de manter as mobilizações, a temperatura política das ruas e a capacidade de transformar em força institucional toda a falta de legitimidade do modelo pinochetista e o velho sistema político; b) a forma como as camadas médias e os velhos partidos do sistema, como o Partido Socialista, vão se comportar. Afinal, a unidade em prol da nova Constituição pode se romper na hora de tentar oferecer o conteúdo dessa nova Constituição.
Nós temos alguns sinais positivos. Daniel Jadue, militante do Partido Comunista Chileno e prefeito de Recoleta, é o favorito em todas as pesquisas eleitorais à presidência no Chile, como noticia o Opera Mundi. Aliado a isso, não me parece que a burguesia chilena tenha encontrado até agora uma tática para barrar a ascensão do movimento de massas. A resposta centrada em repressão, repressão e mais repressão não tem dado o resultado esperado.
Por fim, ao mesmo tempo que é necessário controlar o esquerdismo e desprezo ou ignorância pela experiência concreta de luta do povo trabalhador do Chile (como se conseguir a constituinte fosse pouca coisa), é importante também segurar a emoção. Não, o neoliberalismo ainda não morreu e muito menos o legado de Pinochet. Esse é mais um passo de um longo processo de luta. Vamos acompanhar com esperança e solidariedade militantes os próximos capítulos da luta de classes no Chile.